top of page

WAGNER, Richard. A arte e a revolução. Trad. José M. Justo Lisboa: Antígona, 1990.

 

Cap. 2 (p. 37-40), Cap. 3 (p. 44-48), Cap. 4 (p.59-64), Cap. 5 (p. 79-83), Cap. 6 (p. 84-90)

 

 

 

 

Cap.2

[37] “É impossível dar um passo na reflexão sobre a nossa arte sem encontrar de imediato o problema do seu relacionamento com a arte dos Gregos. De fato, a nossa arte moderna é apenas um elo na cadeia do desenvolvimento da arte no conjunto da Europa e esse desenvolvimento começou com os gregos.”

[39] “[...] o poeta trágico repartia pelos diferentes elementos das artes singulares [...] a palavra audaciosa e unificadora, a intenção poética arrebatada, capaz de a todas reunir naquele ponto focal em que ganha existência a mais elevada obra de arte que é possível conceber, o drama. "

 

Cap. 3

[44] “O declínio da tragédia coincide precisamente com a desagregação do Estado ateniense. Tal como o espírito coletivo se desintegrou em mil e uma tendências egoístas, também a tragédia, essa grandiosa obra

de arte global, se dissolveu nos elementos nela contidos. No seu riso louco, Aristófanes, o comediógrafo, chorava sobre as ruínas da tragédia. E por fim todo o impulso artístico cessou perante a gravidade do sentido de uma Filosofia que refletia sobre as causas da transitoriedade da beleza e do vigor humanos. Os dois milênios que transcorreram desde o ocaso da tragédia grega até aos nossos dias não pertencem à arte, mas sim à Filosofia”.

[45] “O que a arte não conseguia ser, era a expressão livre de uma comunidade livre. Porque arte verdadeira é a mais elevada liberdade e a arte não pode anunciar outra coisa senão essa máxima liberdade; não pode dar lugar a ordens, a decretos, em suma, não pode dar expressão a nenhum objetivo extra-artístico”.

[47] “Arte é alegria de ser, é júbilo pela existência presente, pelo contexto geral a que se pertence. Pelo contrário, [48] nos finais do Império Romano vigorava o desprezo- próprio, a repulsa pelo caráter visível da existência, o horror face à sociedade. A expressão desse estado de coisas não podia ser, portanto, a arte. Tinha que ser o Cristianismo. O Cristianismo oferece justificação para uma existência miserável dos homens sobre a terra, destituída de honra e de utilidade. Vai buscar uma tal justificação à maravilha de um amor divino que, ao contrário do que pensavam os belos gregos, não criou o homem para uma existência terrena de alegria consciente, antes o teria encerrado num catre repugnante, preparando-lhe assim para depois da morte um esplendor eterno de comodidade e inação como recompensa do desprezo por si próprio interiorizado nesta vida”.

 

Cap. 4

[59] “É esta a arte que hoje infesta o mundo civilizado! A respectiva essência reside na indústria, a sua finalidade moral é o lucro financeiro e a eficácia estética é o entretenimento dos entediados.”

[60] “Esta arte fez do teatro o seu lugar de eleição, tal como tinha acontecido com a arte grega florescente. E conquistou esse direito porque é a expressão da vida pública vigente no nosso presente. [...] E deste modo, revestindo a forma de uma arte cênica de enorme expansão, a arte moderna parece ser o que há de mais característico no florescimento de nossa cultura, como a tragédia caracterizava o apogeu do espírito grego. Mas esse florescimento é o da podridão de um estado de coisas vazio, destituído de espírito e contrário à natureza”.

[61] “Bastará examinar com rigor o conteúdo e o modo efetivo de funcionamento público da arte do nosso tempo, em particular no que respeita precisamente ao teatro, para reconhecer nela, como no espelho mais fiel, o espírito dominante de nossa sociedade. [...] Estamos de fato longe de poder reconhecer na arte dos nossos teatros públicos a verdadeira arte dramática, a obra única, indivisível e grandiosa do espírito humano. O nosso teatro limita-se a oferecer um espaço complicado para uma apresentação atraente de fatos cênicos isolados, superficialmente interligados, defeituosamente artísticos ou, para ser mais exato, artificiosos. A própria separação em dois gêneros, o dramático e a ópera, que subtrai ao drama a expressão idealizante da música e retira em absoluto à ópera o núcleo verdadeiramente dramático e intencional, mostra bem a incapacidade em que se encontra a arte cênica dos nossos dias para efetuar a unificação dos diversos ramos estéticos numa expressão mais elevada e mais perfeita, ou seja, na verdadeira arte [62] dramática.”

 

Cap. 5

[69] “Confrontemos agora nos seus traços mais importantes a arte que publicamente se pratica na Europa moderna e a arte pública dos Gregos, para podermos pôr a nu a diferença característica que as separa. A arte pública dos Gregos, que atingiu o apogeu na tragédia, era expressão do que havia de mais profundo e mais nobre na consciência popular.[...] Para o homem grego a representação de uma tragédia era uma celebração religiosa e sobre o palco movimentavam-se deuses que ofereciam aos homens a sua sabedoria”

[70] “Nos vastos espaços do anfiteatro grego era a totalidade do povo que participava nas representações. Pelo contrário, nos nossos mais distintos teatros preguiçam apenas os ricos”.

[71] “Se o artista grego era recompensado antes de mais pelo seu próprio prazer na obra de arte e depois pelo sucesso e pela aprovação públicos, o artista moderno está amarrado a um contrato e a um salário. Estamos então em condição de caracterizar com rigor a diferença essencial: a arte pública dos Gregos era de fato arte, ao passo que a nossa é salariato artístico”.

[79] “Pelo que a diferença se resume no seguinte: entre os Gregos a arte estava presente na consciência pública, ao passo que hoje apenas existe na consciência do indivíduo e em contraste com a falta de uma consciência estética pública. É por isso que o apogeu da arte grega foi conservador, uma vez que se apresentava à consciência pública como expressão válida da mesma, enquanto hoje a genuína atividade artística é revolucionária, já que só pode existir em oposição aos valores correntes.O drama grego, entendido como obra de arte perfeita, era a síntese de tudo o que na essência grega havia de representável.[...] qualquer desarticulação das forças reunidas num [80] ponto único, qualquer separação dos elementos por diferentes direções particulares, só podia prejudicar essa esplêndida unidade da obra de arte – tal como a do Estado, constituída à sua imagem. [...] Com a posterior decadência da tragédia, a arte foi perdendo cada vez mais a sua qualidade de expressão da consciência pública. O drama desmembrou-se nas respectivas partes constitutivas; a retórica, a escultura, [81] a pintura ou a música abandonaram o bailado unitário em que se moviam até então para seguirem cada uma o seu próprio caminho e se desenvolverem por conta própria, sujeitas a uma solidão necessariamente egoísta.”

[82] “A obra de arte perfeita, a expressão grandiosa e uma de uma sociedade livre e bela, o drama, a tragédia, não renasceu [...] pela simples razão de que não pode renascer e, pelo contrário, tem que voltar a nascer por inteiro. Só a grande Revolução da humanidade [...] [83] nos pode vir a dar uma tal obra de arte.”

 

Cap. 6

[84] “Ora, é precisamente a Revolução e não a Restauração que nos pode devolver essa suprema obra de arte. [...] Se a obra de arte grega sintetizava o espírito de uma nação bela, a obra de arte do futuro tem que abarcar em si o espírito da humanidade livre, para lá de todos os limites respeitantes às nacionalidades”. [85] “Não. Não queremos voltar a ser gregos. Porque sabemos hoje o que os gregos não sabiam e que resultou precisamente na sua queda. [...] Queremos libertar-nos do jugo escravizante e desonroso do salariato generalizado e da alma pecuniária que o faz viver, para nos elevarmos ao plano de uma humanidade livremente criadora e dotada de uma alma universal radiante. [86] Queremos deixar o esforçado fardo do trabalho quotidiano na indústria para nos tornarmos todos homens fortes e belos, senhores de um mundo transformado ele também em fonte inesgotável do mais elevado gozo artístico. Para atingir esse objetivo precisamos da força todo-poderosa da Revolução”.

 

 

WAGNER, Richard. Beethoven. Trad. Anna Hartmann Cavalcanti. Rio de Janeiro: Zahar, 2010

 

 

p. 32-37. Se, prosseguindo na analogia do sonho alegórico, mencionada inúmera vezes, quisermos considerar que a música, suscitada pela mais íntima visão, é levada a comunicar essa visão para o exterior, devemos supor um órgão particular para esse propósito, análogo ao órgão do sonho, uma capacidade cerebral que permita ao músico perceber o em si íntimo, inacessível a toda forma de conhecimento, por meio de um tipo de olho interior que, dirigido para o exterior, converte-se em ouvido. Se quisermos apresentar, em sua reprodução mais fiel, a imagem íntima (de sonho) do mundo percebida pelo músico, podemos fazê-lo do modo mais impregnado de sentimento ao escutarmos uma daquelas célebres composições eclesiásticas de Palestrina. Aqui o ritmo só se torna perceptível devido à alternância da sucessão harmônica dos acordes, ao passo que sem esta última, como sucessão simétrica no tempo, para si, o ritmo não poderia de forma alguma existir; por conseguinte, a sucessão temporal encontra-se ainda tão ligada à essência da harmonia, independente em si de tempo e espaço, que não é possível recorrer às leis temporais para compreender uma tal música. A sucessão temporal de uma tal peça musical  manifesta-

se quase unicamente nas variações mais delicadas de uma cor fundamental, que nos apresenta as mais diversas transições na conservação de sua vasta afinidade, sem que possamos perceber nessa alternância as linhas do desenho. Porém, considerando que a própria cor não aparece no espaço, recebemos uma imagem quase sem tempo ou espaço, uma revelação inteiramente espiritual, que nos invade com uma emoção indescritível ao trazer má nossa consciência, de um modo muito mais claro do que qualquer outro, a essência mais íntima da religião, livre de toda dicção e conceitos dogmáticos.Se agora imaginarmos, ao contrário, um trecho de música de dança, um movimento sinfônico de orquestra desenvolvido conforme um motivo de dança ou, enfim, uma verdadeira cena de ópera, perceberemos que nossa fantasia é, de imediato, cativada pela disposição regular da repetição dos períodos rítmicos, através dos quais a capacidade de penetração da melodia é definida, sobretudo, em virtude de sua plasticidade. A música formada desse modo foi denominada, com muita propriedade, “mundana” em oposição à “espiritual”. Sobre o princípio dessa formação, já tive oportunidade de me pronunciar com suficiente clareza em outro trabalho, de modo que tratarei aqui dessa tendência apenas no sentido, abordado anteriormente, da analogia do sonho alegórico. De acordo com essa analogia, tudo se passa como se o olho do músico, agora desperto, aderisse de tal modo aos fenômenos do mundo exterior que estes se tornam imediatamente compreensíveis segundo sua essência interior. As leis exteriores segundo as quais se consuma tal adesão aos gestos, enfim, a todo processo impregnado de movimento de vida, transformam-se para ele em leis do ritmo, mediante as quais constrói períodos que se opõem e retornam. Quanto mais esses períodos são tomados pelo espírito singular da música, tanto menos seus sinais arquitetônicos desviarão nossa atenção da pura impressão que a música produz. Em contrapartida, sempre que esse espírito interno da música, já suficientemente descrito, enfraquece a manifestação que lhe é mais peculiar em proveito dessa ordem arquitetônica das partes rítmicas, nos sentiremos presos unicamente por aquela regularidade exterior e necessariamente diminuiremos nossa expectativa em relação à música, aos nos relacionarmos com ela apenas através daquela regularidade. A música abandona aqui o estado de sua sublime inocência; perde a força de nos libertar do pecado do fenômeno, ou seja, não é mais a anunciadora da essência das coisas, mas é ela própria enredada na ilusão da aparência das coisas fora de nós. Pois nesta música quer-se agora ver algo e este algo para ver torna-se o principal, como bem o mostra a ópera, onde o espetáculo, o balé, etc. constituem o elemento mais sedutor e cativante, o que evidencia claramente a degradação da música empregada neste sentido.

 

p. 67-74. Se examinarmos o avanço que, do ponto de vista da história da arte, a música alcançou com Beethoven, podemos atribuir decididamente a ele a conquista de uma faculdade que anteriormente foi negada à música: foi em virtude de tal aquisição, que vai muito além da região do belo estético e penetra na esfera do inteiramente sublime, que ela se libertou de toda limitação das formas tradicionais ou convencionais, ao penetrar e dar vida a essas formas, com toda plenitude, a partir do mais íntimo espírito da música. Essa conquista mostra-se, de imediato, a cada espírito humano através do caráter dado por Beethoven à forma principal de toda música, à melodia, pela qual é reconquistada agora a mais elevada simplicidade da natureza, a fonte na qual a melodia se renova a cada necessidade e em todos os tempos, nutrindo-se da mais elevada e da mais rica diversidade. E isso deve ser resumido em uma noção compreensível por todos: a melodia foi emancipada por Beethoven da influência da moda e do gosto efêmero para ser elevada ao tipo eternamente válido, puramente humano. A música de Beethoven será compreendida em todos os tempos, ao passo que a música de seus antecessores só nos será compreensível, em sua maior parte, por intermédio de uma reflexão sobre a história da arte.Mas é possível identificar, ainda, um outro progresso, de importância decisiva, no caminho em que Beethoven alcançou esse enobrecimento da melodia: a significação nova que hoje a música vocal adquire em suas relações com a música instrumental pura.Essa significação era, até então, desconhecida para a forma mista de música vocal e instrumental, e esta forma mista, que só era encontrada nas composições sacras, pode ser considerada, sem hesitação, uma música vocal deteriorada, na medida em que a orquestra é empregada apenas como reforço ou acompanhamento das vozes do cântico. As grandes composições sacras de Bach só podem ser compreendidas através do canto coral, sendo que este era tratado já com a liberdade e a mobilidade de uma orquestra instrumental, o que sugeria, naturalmente, a introdução da orquestra para fortalecê-lo e apoia-lo. Encontramos, paralelamente ao gradual declínio da música sacra, a mistura do canto italiano de ópera com o acompanhamento da orquestra segundo preferências que variavam conforme a época. Estava reservado ao gênio de Beethoven tratar o complexo artístico que se formava a partir dessa mistura a grande Missa solemnis temos, diante de nós, uma pura obra sinfônica do mais genuíno espírito beethoveniano. As vozes do cântico são tratadas, inteiramente, como instrumentos humanos, no sentido em que Schopenhauer, muito acertadamente, pretendeu ter-lhes atribuído; nessas grandes composições sacras, o texto que subjaz ao canto não é compreendido por nós segundo seu significado conceitual, mas serve, no sentido da obra de arte musical, unicamente como material para o coro de vozes, e só não se comporta de modo perturbador para nossa sensação determinada musicalmente porque não suscita em nós, de forma alguma, representações racionais, mas nos comove, por seu caráter religioso, com fórmulas de fé bem conhecidas e simbólicas.A constatação de que a música nada perde de seu caráter quando serve de suporte a textos muito diferentes mostra-nos, por outro lado, o caráter inteiramente ilusório da relação entre a música e a poesia – pois, quando se canta juntamente com uma música, o que apreendemos não é o pensamento poético, que especialmente nos canto corais não é perceptível de forma articulada, mas, quando muito, o que esse pensamento despertou no músico, como algo musical ou que pode se tornar música. Uma união da música e da poesia deve, por conseguinte, resultar em uma tal produção subordinada desta última que nos surpreendemos ao ver como também nossos grandes poetas alemães sempre voltaram a se ocupar e a até mesmo a tentar resolver o problema da união dessas duas artes. Eles foram, evidentemente, instigados pelo efeito da música na ópera; e, de fato, este parecia ser o único campo no qual era possível uma solução para o problema. As expectativas de nossos poetas ligavam-se, de um lado, à exatidão formal da estrutura da música, de outro, a seu efeito profundamente vivo e acolhedor, permanecendo evidente que a única possibilidade que vislumbravam era a de se servir dos aparentemente poderosos recursos musicais para darem à intenção poética uma expressão mais precisa, profunda e penetrante. Talvez pensassem que a música lhes prestaria de bom grado esse serviço, se colocassem à sua disposição em vez de um tema ou de um texto trivial de ópera uma concepção poética elaborada com seriedade. O que talvez os impedisse de realizar uma séria tentativa nesse sentido era o receio obscuro, porém legítimo, de que a poesia, como tal, em sua atuação conjunta com a música, não fosse em geral despertar muita atenção. Pensando mais cuidadosamente, eles não deviam ignorar o fato de que na ópera, além da música, o que prende a atenção é a ação cênica e não o pensamento poético que a explica; em particular a ópera dirige para si, alternadamente, o escutar algo e olhar para. Que nenhuma dessas faculdades receptivas possa encontrar uma perfeita satisfação estética resulta do fato de que a música de ópera, como foi dito anteriormente, não pode nos conduzir e harmonizar com aquele estado de recolhimento – o único apropriado à música – no qual a força da visão fica tão enfraquecida [depontenziert] que os olhos não veem mais os objetos com a intensidade habitual; nesse caso, ao contrário, devemos considerar que somos tocados pela música de forma superficial, que somos mais excitados do que preenchidos por ela, somos levados a ver algo, - mas, de forma alguma, a pensar; pois somos inteiramente privados da capacidade de pensamento em virtude desse desejo antagônico de entretenimento, de uma distração que, por razões profundas, luta contra o tédio.A partir das considerações anteriores foi possível nos aproximarmos suficientemente da natureza particular de Beethoven para compreender, de imediato, a atitude do mestre em relação à ópera, da forma mais categórica, a compor um texto de ópera de tendência frívola. Fazer música para balé, procissões, fogos de artifício, voluptuosas intrigas amorosas, era algo que ele procurava afastar de si, com horror. Sua música deveria pode impregnar o todo de uma ação com nobreza e paixão. Que poeta seria capaz de lhe estender a mão? Uma única tentativa neste sentido o colocou em contato com uma situação dramática que, ao menos, nada tinha daquela frivolidade que ele detestava e que, além disso, ao enaltecer a fidelidade feminina, correspondia bem ao dogma humanitário que o guiava. E, no entanto, esse tema de ópera continha tantos elementos estranhos à música e inassimiláveis que, de fato, somente a partir da grande abertura Leonore tornou-se realmente claro como o drama teria sido compreendido por Beethoven. Quem poderá escutar essa peça arrebatadora sem ser tomado pela convicção de que a música encerra em si o drama mais completo? Que outra coisa será a ação dramática do texto, na ópera Leonore [Fidélio], senão um aviltamento quase repulsivo do drama vivido na abertura, algo como um enfadonho comentário de Gervinus de uma cena de Shakespeare?Mas essa impressão que se impõe ao sentimento de cada um pode tornar-se perfeitamente clara a nosso conhecimento, se retomarmos a explanação filosófica da própria música.A música, que não apresenta as ideias contidas no mundo dos fenômenos, mas, ao contrário, é ela mesma uma ideia do mundo, e uma ideia da maior amplitude, compreende naturalmente em si o drama, enquanto esse, por sua vez, expressa a única ideia do mundo adequada à música. O drama ultrapassa os limites da arte poética do mesmo modo que a música ultrapassa os limites de todas as demais artes, particularmente os das artes plásticas, pelo fato de seu efeito residir unicamente no domínio do sublime. Assim como o drama não descreve os caracteres humanos, mas faz com que eles se representem a si mesmos, diretamente, também a música nos apresenta em seus motivos o caráter de todos os fenômenos do mundo segundo seu em si, seu núcleo mais íntimo. O movimento, formação e transformação desses motivos não são apenas aparentados e análogos ao drama, mas o próprio drama e a ideia nele contida só podem ser compreendidos com perfeita clareza por meio daqueles motivos da música que se movimentam, se formam e se transformam. Não estaremos, pois, errados, se reconhecermos na música o que torna o homem a priori capaz de dar forma ao drama em geral. Assim como construímos o mundo dos fenômenos através do emprego das leis do espaço e do tempo, prefiguradas de modo a priori em nosso cérebro, assim essa representação consciente da ideia do mundo no drama seria, por sua vez, prefigurada nas leis internas da música, leis estas que se impõem tão inconscientemente ao dramaturgo quanto as leis da causalidade para a apercepção do mundo dos fenômenos.

 

p. 81-82. O fato de Beethoven, em sua Sinfonia nº 9 ter simplesmente voltado à forma da cantata coral com orquestra não deve nos induzir ao erro ao avaliar o notável salto da música instrumental para a música vocal; já avaliamos, anteriormente, a significação dessa parte coral da sinfonia e reconhecemos que ela pertence ao terro mais próprio da música: além do enobrecimento da melodia, ao qual havíamos nos referido, não há nada, quanto ao aspecto formal, que possa nos surpreender. É uma cantata com palavras, com a qual a música se relaciona da mesma forma que com qualquer outro texto cantado. Sabemos que não são versos de um poema, seja ele Goethe ou Schiller, que determinam a música: somente o drama possui tal poder – não o poema dramático, mas o drama que se movimenta realmente diante de nossos olhos, como a imagem correspondente e visível da música, no qual a palavra e o discurso pertencem somente à ação e não mais ao pensamento poético.Não é, pois, a obra de Beethoven, mas o extraordinário ato artístico nela contido que devemos considerar o ponto alto do desenvolvimento de seu gênio, assim como afirmamos que a obra de arte que recebeu desse ato toda vida e toda forma deve apresentar, também, a mais perfeita forma artística, justamente aquele forma na qual, para o drama e, especialmente, para a música, todo caráter convencional deveria ser inteiramente suprimido, Esta seria, ao mesmo tempo, a única forma artística nova que corresponderia àquele espírito alemão vigorosamente individualizado em nosso grande Beethoven, uma forma humana pura criada por ele, mas que lhe pertencia originalmente, e que até hoje falta ao mundo moderno quando comparado ao antigo.


                                              

 

 

 

 

  Richard Wagner (1813-1883)

© 2023 by  Limo Service. Proudly made by Wix.com 

  • w-facebook
  • Twitter Clean
  • w-googleplus
bottom of page