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Platão. Timeu. Trad. do grego, introdução e notas R. Lopes. Coimbra: Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos (Un. de Coimbra), 2011.

 

27-38; 47,67,80,87,88,90 (as notas foram suprimidas)

 

 

[27-38]Timeu: É bem certo, ó Sócrates, que todos quantos partilhem o mínimo de bom-senso, sempre que iniciam algum empreendimento, pequeno ou grande, invocam sempre, de algum modo, um deus. Quanto a nós, que nos preparamos para produzir discursos sobre o universo – sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir –, caso não tenhamos perdido por completo o discernimento, é inevitável que invoquemos deuses e deusas, bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto e esteja em concordância com o nosso. E no que respeita aos deuses, seja esta a nossa invocação. No que nos toca, convém que os invoquemos para que vocês aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possível o que penso sobre o assunto que tenho perante mim.Na minha opinião, temos primeiro que distinguir o seguinte: o que é aquilo que é sempre e não devém, e o que é aquilo que devém , sem nunca ser? Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxílio da razão, pois é imutável. Ao invés, o segundo é objecto da opinião acompanhada da irracionalidade dos sentidos e, porque devém e se corrompe, não pode ser nunca. Ora, tudo aquilo que devém é inevitável que devenha por alguma causa,

pois é impossível que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa. Deste modo, o demiurgo põe os olhos no que é imutável e que utiliza como arquétipo, quando dá a forma e as propriedades ao que cria. É inevitável que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo. Se, pelo contrário, pusesse os olhos no que devém e tomasse como arquétipo algo deveniente, a sua obra

não seria bela. Quanto ao conjunto do céu ou mundo – ou ainda, se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado, chamemos-lhe esse –, temos que apurar primeiro, no que lhe diz respeito, aquilo que subjaz a todas as questões e deve ser apurado logo no princípio: se sempre foi, sem ter tido origem no devir, ou se deveio, originado a partir de algum princípio. Deveio, pois é visível e tangível e tem corpo, assumindo todas as propriedades do que é sensível; e o que é sensível, que pode ser compreendido por uma opinião fundamentada na percepção dos sentidos, devém e é deveniente, como já foi dito. Dissemos também que o que devém é inevitável que devenha por alguma causa. Porém, descobrir o criador e pai do mundo é uma tarefa difícil e, a descobri-lo, é impossível falar sobre ele a toda a gente. Mas ainda quanto ao mundo, temos que apurar o seguinte: aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arquétipos: daquele que é imutável e inalterável ou do que devém. Ora, se o mundo é belo e o demiurgo é bom, é evidente que pôs os olhos que é eterno; se fosse ao contrário – o que nem é correcto supor –, teria posto os olhos no que devém. Portanto, é evidente para todos que pôs os olhos no que é eterno, pois o mundo é a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo é a mais perfeita das causas. Deste modo, o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pôs os olhos no que é imutável e apreensível pela razão e pelo pensamento. Assim sendo, de acordo com estes pressupostos, é absolutamente inevitável que este mundo seja uma imagem de algo. Mas em tudo, o mais importante é começar pelo princípio, de acordo com a natureza. Deste modo, no que diz respeito a uma imagem e ao seu arquétipo, temos que distinguir o seguinte: os discursos explicam aquilo que é seu congénere. Por isso, os discursos claros, estáveis e invariáveis explicam, com a colaboração do intelecto, o que é estável e fixo – e tanto quanto convém aos discursos serem irrefutáveis e insuperáveis, em nada devem afrouxar esta relação. Em relação aos que se reportam ao que é copiado do arquétipo, por se tratar de uma cópia, estabelecem com essa cópia uma relação de verossimilhança e analogia; conforme o ser está para o devir, assim a verdade está para a crença. Portanto, ó Sócrates, se, no que diz respeito a variadíssimas questões sobre os deuses e sobre a geração do universo, não formos capazes de propor explicações perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas, não te admires. Mas se providenciarmos discursos verosímeis que não sejam inferiores a nenhum outro, é forçoso que fiquemos satisfeitos, tendo em mente que eu, que discurso, e vós, os juízes, somos de natureza humana, de tal forma que, em relação a estes assuntos, é apropriado aceitarmos uma narrativa verosímil e não procurar nada além disso. Sócrates: Excelente, ó Timeu: Devemos sem dúvida alguma aceitá-lo, tal como propões. Acolhemos o teu prelúdio com admiração, mas agora termina a ária sem interrupção. Timeu: Digamos, pois, por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu. Ele era bom, e no que é bom jamais nasce inveja de qualquer espécie. Porque estava livre de inveja, quis que tudo fosse o mais semelhante a si possível. Quem aceitar de homens sensatos que esta é a origem mais válida do devir e do mundo estará a aceitar o raciocínio mais acertado. Na verdade, o deus quis que todas as coisas fossem boas e que, no que estivesse à medida do seu poder, não existisse nada imperfeito. Deste modo, pegando em tudo quanto havia de visível, que não estava em repouso, mas se movia irregular e desordenadamente, da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que esta é sem dúvida melhor do que aquela. Com efeito, a ele, sendo supremo, foi e é de justiça que outra coisa não faça senão o mais belo.Reflectindo, descobriu que, a partir do que é visível por natureza, de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto, e que seria impossível que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma. Por meio deste raciocínio, fabricou o mundo, estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo, realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza. Assim, de acordo com um discurso verosímil, é necessário dizer que este mundo, que é, na verdade, um ser dotado de alma e de intelecto, foi gerado pela providência do deus. Dito isto, devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir: à semelhança de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu. Assumamos que não foi à semelhança de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espécie particular – pois nada do que se assemelha ao que é incompleto pode tornar-se belo. Estabeleçamos em vez disso que o universo se assemelha o mais possível àquele ser de que os outros são parte, quer individualmente, quer como classe. De facto, esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligíveis, tal como este mundo nos compreende a nós e a todas as outras criaturas visíveis. Assim, por querer assemelhá-lo ao mais belo de entre os seres inteligíveis, ao mais perfeito de todos, o deus constituiu um ser único que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza. Então, será correcto declarar que há um único céu ou será mais correcto dizer que há vários ou até infinitos? Há um único, já que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arquétipo. É que aquele que abrange todos os seres inteligíveis não pode, de modo algum, vir em segundo lugar, a seguir a outro. Caso contrário, deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois, do qual esses dois seriam uma parte, e seria mais correcto dizer que o mundo não se assemelharia a esses dois, mas sim àquele que os abrangia. Portanto, foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade, que aquele que fez o mundo não fez dois nem uma infinidade de mundos; deste modo, o céu foi gerado como unigénito – assim é e assim continuará a ser. É forçoso que aquilo que deveio seja corpóreo, visível e tangível; mas, separado do fogo, sem dúvida que nada pode ser visível, nem nada pode ser tangível sem qualquer coisa sólida e nada pode ser sólido sem terra. Daí que o deus, quando começou a constituir o corpo do mundo, o tenha feito a partir de fogo e de terra. Todavia, não é possível que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira, pois é necessário gerar entre ambas um elo que as una. O mais belo dos elos será aquele que faça a melhor união entre si mesmo e aquilo a que se liga, o que é, por natureza, alcançado da forma mais bela através da proporção. Sempre que de três números, sejam eles inteiros ou em potência, o do meio tenha um carácter tal que o primeiro está para ele como ele está para o último, e, em sentido inverso, o último está para o do meio como o do meio está para o primeiro; o do meio torna-se primeiro e último e o último e o primeiro passam ambos a estar no meio, sendo deste modo obrigatório que se ajustem entre si e, tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si, serão todos um só. Ora, se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfície plana, sem nenhuma profundidade, um só elemento intermédio teria sido suficiente para o unir aos outros termos. Porém convinha que o mundo fosse de natureza sólida, e, para harmonizar o que é sólido não basta um só elemento intermédio mas sim sempre dois. Foi por isso que, tendo colocado a água e o ar entre o fogo e a terra, e, na medida do possível, produzido entre eles a mesma proporção, de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a água, e o ar estivesse para a água como a água estava para a terra, o deus uniu estes elementos e constituiu um céu visível e tangível. Foi por causa disto e a partir destes elementos – elementos esses que são em número de quatro – que o corpo do mundo foi engendrado, posto em concordância através de uma proporção; e a partir destes elementos obteve a amizade, de tal forma que, tornando-se idêntico a si mesmo, é indissolúvel por outra entidade que não aquela que o uniu. Assim, a constituição do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade. Foi a partir da totalidade do fogo, da água, do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu, não deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma, pois este era o seu desígnio: em primeiro lugar, que fosse, acima de tudo, um ser-vivo completo e perfeito, constituído a partir de partes perfeitas; em seguida, que fosse único, posto que não sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza; e ainda, que estivesse imune ao envelhecimento e à doença, pois ele tinha perfeita consciência de que o calor, o frio e outras forças violentas, cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele, dissolvem-no e, impondo-lhe doenças e envelhecimento, causam a sua destruição. Foi por este motivo, e com base neste raciocínio, que a partir da globalidade dos todos produziu um só todo perfeito, imune ao envelhecimento e à doença. Além disso, deu-lhe a figura adequada e congénere. De facto, a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres vivos será aquela que compreenda em si mesma todas as formas. Por isso, para o arredondar, como que por meio de um torno, deu-lhe uma forma esférica, cujo centro está à mesma distância de todos os pontos do extremo envolvente – e de todas as figuras é essa a mais perfeita e semelhante a si própria –, considerando que o semelhante é infinitamente mais belo do que o dissemelhante. Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por várias razões. É que este ser-vivo não tinha necessidade de olhos, pois fora dele não restava nada para ver, nem de ouvidos, pois não havia nada para ouvir; não havia ar à sua volta que fosse preciso respirar, nem precisava de ter qualquer órgão através do qual absorvesse alimentos para si próprio nem, por outro lado, que segregasse o que tinha anteriormente filtrado. Na verdade, nada entrava nele nem nada saía dali, pois não havia mais nada. Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua própria consumpção, de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz é em si mesmo. Aquele que o compôs achou que, para ser mais forte, seria melhor que fosse auto-suficiente do que tivesse necessidade de outros. Quanto a mãos, não sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo, considerou que não seria necessário aplicar-lhas, nem pés, nem, de um modo geral, nenhum apetrecho para andar. Quanto ao movimento, atribuiu-lhe aquele que é característico do corpo: dos sete, aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento. Foi por isso que, ao pô-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local, fez com que se movimentasse num círculo, em rotação, tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imóvel em relação a eles. Como para esse percurso não eram precisos pés, engendrou-o sem pernas nem pés. Este foi, de um modo global, o desígnio do deus que é eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia; tendo assim raciocinado, fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme, em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos. Depois, no centro pôs uma alma, que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora, cobrindo-o com ela. Constituiu um único céu, solitário e redondo a girar em círculos, com capacidade, pela sua própria virtude, de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa, pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente. Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado. No que respeita à alma, ainda que só agora vamos tratar de falar dela, não é posterior ao corpo. O deus não os estruturou desse modo, como se ela fosse mais nova – ao constituí-los, não permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo. Ao passo que nós somos muito afectados pela casualidade e, consequentemente, falamos também ao acaso100, já o deus, graças à sua condição e virtude, constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele, para o dominar e governar – sendo ele o governado – a partir dos seguintes recursos e do modo que se expõe: entre o ser indivisível, que é imutável, e o ser divisível que é gerado nos corpos, misturou uma terceira forma de ser feita a partir daquelas duas. E quanto à natureza do Mesmo e do Outro, estabeleceu, de igual modo, uma outra natureza entre o indivisível e o divisível dos seus corpos. Tomando as três naturezas, misturou-as todas numa só forma e pela força harmonizou a natureza do Outro – que é difícil de misturar – com o Mesmo. Procedendo à mistura de acordo com o ser, formou uma unidade a partir das três, e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir, sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo, de Outro e de ser. Então, começou a dividir do seguinte modo: em primeiro lugar, retirou uma parte do todo; em seguida, retirou outra que era o dobro da primeira; uma terceira, que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira; uma quarta, que era o dobro da segunda; uma quinta, o triplo da terceira; uma sexta, oito vezes a primeira; e uma sétima, que corresponde a vinte e sete vezes a primeira. Depois disto, preencheu os intervalos duplos e triplos, subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras, de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros: um que transpõe um dos extremos e é transposto pelo outro na mesma fracção, e outro que transpõe o extremo que lhe é numericamente idêntico e também ele é transposto. Destas ligações foram gerados nos intervalos atrás referidos outros intervalos de um e meio, um e um terço e um e um oitavo. Através do intervalo de um e um oitavo, preencheu todos os de um e um terço e deixou uma parte de cada um deles, tendo este intervalo sobrante sido definido pela relação entre o número duzentos e cinquenta e seis e o número duzentos e quarenta e três. Foi deste modo que a mistura, da qual retirou aquelas partes, foi utilizada na sua plenitude. Então, cortou toda esta composição em duas partes no sentido do comprimento e, sobrepondo-as, ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra (semelhante a um X) dobrou-as em círculo, juntando-as uma à outra pelo ponto oposto àquele pelo qual tinham sido ligadas, e impôs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local; destes dois círculos, fez um exterior e outro interior. Então, determinou que o movimento exterior corresponderia à natureza do Mesmo, e o interior à do Outro. Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita, girando lateralmente, e que o do Outro se orientasse para a esquerda, girando diagonalmente, e deu preeminência à órbita do Mesmo e do Semelhante, pois a ela só deixou ficar indivisa. Por outro lado, a órbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete círculos desiguais, fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo, de tal forma que havia três tipos de intervalos. Definiu que os círculos andariam em sentido contrário uns aos outros, três dos quais com velocidade semelhante, e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros três, mas movendo-se uniformemente. Logo que a constituição da alma foi gerada de acordo com o intelecto de quem a constituiu, este passou à fabricação de tudo quanto dentro dela é corpóreo, e, ajustando o centro de um ao centro do outro, uniu-os. Deste modo, entrelaçada em todas as direcções, desde o centro até à extremidade do céu, abarcando-o d exterior num círculo, e ela girando em torno de si mesma, a alma deu início ao começo divino de uma vida inextinguível e racional para todo o sempre. Assim foi gerado o corpo do céu, que é visível, e a alma, invisível e que participa da razão e da harmonia e é a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que são eternamente. Constituída pela mistura dessas três partes da natureza do Mesmo, do Outro e do ser, dividida e unida segundo a proporção, ela gira em torno de si própria e, sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser não pode ser dividido, é movimentada na sua totalidade; ela informa a que entidade isso é semelhante, de que entidade é diferente, e, principalmente, em relação a que entidade e em que circunstâncias acontece afectar o que devém e o que é eternamente, e por cada um destes é afectada. Este discurso, que é ele próprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro, sempre que é levado sem voz nem som para aquele que é movimentado por si próprio, converte-se num discurso sobre o sensível; e o círculo do Outro, que se move em linha recta, dissemina-o por toda a alma, e geram-se opiniões e crenças firmes e verdadeiras. Todavia, sempre que se aplica ao racional e sempre que o círculo do Mesmo, que se movimenta com destreza, revela isto, é forçoso que daí resulte saber e intelecção. No que respeita àquilo em que se geram estes dois modos de conhecer, se alguma vez alguém disser que é outra coisa que não a alma, esse alguém estará a dizer tudo menos a verdade. Ora, quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representação dos deuses eternos, animada e dotada de movimento, rejubilou; por estar tão satisfeito, pensou como torná-la ainda mais semelhante ao arquétipo. Como acontece que este é um ser eterno, tentou, na medida do possível, tornar o mundo também ele eterno. Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna, e não era possível ajustá-la por completo ao ser gerado. Então, pensou em construir uma imagem móvel da eternidade, e, quando ordenou o céu, construiu, a partir da eternidade que permanece uma unidade, uma imagem eterna que avança de acordo com o número; é aquilo a que chamamos tempo. De facto, os dias, as noites, os meses e os anos não existiam antes de o céu ter sido gerado, pois ele preparou a geração daqueles ao mesmo tempo que este era constituído. Todos eles são partes do tempo, e “o que era” e “o que será” são modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignorância. Dizemos que “é”, que “foi” e que “será”, mas “é” é a única palavra que lhe é própria de acordo com a verdade, ao passo que “era” e “será” são adequadas para referir aquilo que devém ao longo do tempo – pois ambos são movimentos. No entanto, aquilo que é sempre imutável e imóvel não é passível de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que é agora nem no que será no futuro), bem como em nada daquilo que o devir atribui às coisas que os sentidos trazem, já que elas são modalidades devenientes do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo como número. Além destas, há ainda as seguintes: o que aconteceu “é” o que aconteceu, o que está a acontecer “é” o que está a acontecer, o que acontecerá “é” o que acontecerá, e o que não é “é” o que não é; sendo que nenhuma destas afirmações é exacta. Mas este não seráo momento oportuno e adequado para nos determos nestas questões. Assim, o tempo foi, pois, gerado ao mesmo tempo que o céu, para que, engendrados simultaneamente, também simultaneamente sejam dissolvidos – se é que alguma vez a dissolução surja nalgum deles. Foram gerados também de acordo com o arquétipo da naturezaeterna, para que lhe fossem o mais semelhantes possível; é que o arquétipo é ser para toda a eternidade, enquanto que a representação foi, é e será continuamente e para todo o sempre deveniente. A partir do raciocínio e do desígnio de um deus em relação à geração do tempo, para que ele fosse engendrado, gerou o Sol, a Lua e cinco astros, que têm o nome “planetas”, para definirem e guardarem os números do tempo. Tendo construído os corpos de cada um deles – sete ao todo –, o deus estabeleceu-os nas órbitas que o percurso do Outro seguia, em número de sete delas: na primeira a Lua, à volta da Terra; na segunda o Sol, por cima da Terra; a Estrela da Manhã e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol, ainda que lhes tenha cabido em sorte um ímpeto contrário ao dele. Daí decorre que o Sol e a Estrela da Manhã (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcançados mutuamente. Quanto aos outros astros, se alguém quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles, essediscurso, que é secundário, causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em função do qual seria desenvolvido. Quanto a este assunto, pode ser que mais tarde o abordemos com a atenção que merece.

 

[47] Em meu entender, a visão foi gerada como causa de maior utilidade para nós, visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros, o Sol e o céu. Foi o facto de vermos o dia e a noite, os meses, o circuito dos anos, os equinócios e os solstícios que deu origem aos números que nos proporcionam a noção de tempo e a investigação sobre a natureza do universo. A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia, um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espécie mortal, oferecido pelos deuses. Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos. Por que razão havemos de celebrar os outros que são inferiores a estes, pelos quais só um não-filósofo choraria, se ficasse cego, com lamentos em vão? Quanto a nós, declaremos que esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo: o deus descobriu e concedeu-nos a visão em nosso favor, para que, ao contemplar as órbitas do Intelecto no céu, as aplicássemos às órbitas da nossa actividade intelectiva que são congéneres daquele, ainda que as nossas tenham perturbações e as deles sejam imperturbáveis. Só depois de termos analisado aqueles movimentos, calculando os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza, e de termos imitado esses movimentos do deus, absolutamente impassíveis de errar, podemos estabilizar os que em nós são errantes. Quanto à voz e à audição, o raciocínio é mais uma vez o mesmo: os deuses concederam-no-las pelas mesmas razões e com os mesmos fins. Na verdade, foi com o mesmo fim que nos foi atribuída a fala, que tem um papel fundamental na nossa interacção; tudo quanto é útil à voz no contexto da música, isso nos foi dado por causa da harmonia da audição. Com efeito, para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto, a harmonia, feita de movimentos congéneres das órbitas da nossa alma, não é um instrumento para um prazer irracional – como agora se julga ser – mas, em virtude de as órbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geração, aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pôr em ordem e em concordância. E o ritmo, por a maioria de nós ser privada de medida e falta de graça, foi-nos concedido como auxiliar, pelas mesmas razões e com os mesmos fins.

 

[67] Analisemos agora a terceira parte sensível que há em nós: a que diz respeito à audição. Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressões que lhe dizem respeito. Estabeleçamos que, de um modo geral, o som é uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos, cérebro e sangue até à alma, enquanto que a audição é o movimento dessa pancada que começa na cabeça e termina na região do fígado. Quando o movimento é rápido, o som é agudo; quando é mais lento, o som é mais grave; se o movimento for constante, o som é uniforme e suave; no caso contrário será áspero. Se o movimento for possante, o som será amplo; caso contrário, será breve. No que trata à harmonia entre os sons, é inevitável que falemos dela em discursos posteriores.

 

[80] Devemos em igual medida procurar também a explicação para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais, com a deglutição e com os projécteis – quer os que são lançados para o ar, quer os que são lançados para a terra – e também de todos os sons, rápidos ou lentos, que nos aparecem como agudos e graves, os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhança do movimento que geram em nós, ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhança. De facto, os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais rápidos chegaram primeiro e, quando esses movimentos estão a cessar e atingem a constância, chocam com os últimos e põem-nos em movimento. Contudo, quando osapanham, não lhes incutem um outro movimento que os transtorne. Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais rápido, quando este está a abrandar na altura em que atingiu a semelhança, o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa só impressão; daí que cause prazer aos insensatos e boa disposição aos intelectuais por representar a harmonia divina em movimentos mortais. O mesmo se passa com todos os fluxos de água, a queda de raios, as maravilhas da atracção do âmbar e da pedra de Héracles. A atracção não intervém dequalquer modo em nenhum de todos estes objectos, mas será evidente para quem os investigar adequadamente que é por causa destes acidentes (em virtude de não existir o vazio e de eles se empurrarem em círculos entre si, por vezes separando-se e por vezes combinando-se, trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes é próprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenómenos admiráveis.

 

[87] - No entanto, é adequado proceder a reflexões inversas àquelas: por acção de que meios a saúde do corpo e do intelecto pode ser cuidada e conservada; é mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal. Tudo o que é bom é belo, e o que é belo não é assimétrico; estabeleçamos que um ser vivo, para ter estes atributos, terá que ser simétrico. Mas entre essas simetrias, reconhecemos e distinguimos as pequenas, enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas. No que respeita à saúde e à doença, à virtude e à maldade, não há simetria ou assimetria maior do que a da própria alma em relação ao próprio corpo; não temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura frágil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa, e quando os dois são unidos de acordo com a relação inversa, o conjunto do ser-vivo não será belo – é assimétrico em relação às simetrias principais. No entanto, quando está na situação inversa, mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradável de todas as maravilhas. (...)

 

[88] Por isso, o matemático ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual deve compensá-la com o movimento do seu corpo, associando-lhe ginástica; em sentido inverso, aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma, servindo-se da música e de tudo quanto diz respeito à filosofia, se espera que se diga, com justiça e correctamente, que é simultaneamente belo e bom.

 

[90] Quanto à espécie de alma que nos domina, é necessário ter em conta o seguinte: um deus deu a cada um de nós um daimon, aquilo que dizemos habitar noalto do nosso corpo – e dizemo-lo muito correctamente – e nos eleva desde a terra até àquilo que é nosso congénere no céu, porque somos uma planta celeste e não terrena. Foi desse lugar, onde se engendrou a primeira génese da alma, que a parte divina fez depender a nossa cabeça, que é como uma raiz e mantém todo o nosso corpo da posição erecta. Assim, quando alguém se entregou aos apetites e às ambições e cultivou excessivamente esses vícios, é inevitável que todos os seus pensamentos sejam mortais; em tudo se tornou mortal, tanto quanto possível, e nada nele deixa de ser mortal, pois foi essa a natureza que desenvolveu. Por outro lado, para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros, exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo, é absolutamente inevitável que nele surjam pensamentos imortais e divinos, já que se ateve ao que é verdadeiro. E tanto quanto é permitido à natureza humana participar da imortalidade, dessa condição não deixe de lado nem a mínima parte. Ao cuidar sempre da parte divina que contém em si, tenha em ordem o daimon que habita dentro de si, bem como seja particularmente feliz. Para todos os seres há somente um cuidado a ter em atenção: atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes são próprios. Os movimentos congéneres do que há de divino em nós são os pensamentos e as órbitas do universo. É necessário que cada um os acompanhe, corrigindo, através da aprendizagem das harmonias e das órbitas do universo, as órbitas destruídas nas nossas cabeças na altura da geração, tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado de acordo com a natureza original, e, depois de ter feito esta assimilação, atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro.

 


 

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