top of page

In: IRIARTE, R. (Org). Música e literatura no Romantismo alemão. Org. trad. e notas R. Iriarte. Trad. Antonieta M. A. Lopes et alli. Lisboa: Apáginastantas, 1987.

 

 

 

Sinfonias


Ouço muitíssimas vezes pessoas que se consideram amadoras da Arte falar com muito fervor da simplicidade, de um estilo nobre, simples; ao mesmo tempo, essas pessoas, para se manterem fiéis à sua doutrina, perseguem tudo o que consideram colorido, estridente ou grotesco. Entendo que tudo pode e deve coexistir lado a lado e que nada constitui uma negação tão mesquinha da Arte e da sublimidade, como quando se traçam prematuramente linhas divisórias e fronteiras entre os diferentes domínios da Arte. Estes adoradores dividem um território que não lhes pertencem e cujos idiomas nacionais a maioria nem sequer compreende.

Assim, alguns pretendem amar os Antigos, ao perseguirem tudo o que provém dos Modernos. Outros só querem enaltecer os Italianos e privar os restantes povos de toda a Arte e de toda sensibilidade artística.

Não pretendo com isso ver abolidas todas as diferenças: mas quem quisesse falar sobre este tema, deveria possuir uma alma tão rica, dotada de uma sensibilidade tão multifacetada que, pelo menos, entendesse tudo de uma certa maneira e se sentisse perto das coisas, para então distinguir e separar.

Tal como acontece com a Religião, assim acontece também com todas as coisas elevadas e sobre-humanas: poderia até dizer-se que tudo o que é grande e excelso deveria ser Religião. É próprio da essência do Divino que o homem tenha de crer n’Ele, antes de poder compreende-l’O; no entanto, se começa pela compreensão, isto é, pelo julgamento, embrenha-se apenas em labirintos nos quais, insensatamente, considera o seu errar como a verdadeira maneira de ser sábio. O que existe de mais elevado e nobre está constituído de tal forma, que o entendimento comum, sobre o qual a maioria das pessoas tanto se preza de saber, fica relegado para o plano do meramente supérfluo; pois se tu o sentires plena e profundamente e o conservares dentro de ti próprio, não te apercebes de qualquer carência, não experimenta necessidade alguma de compará-lo com as restantes coisas e de colocá-lo na sua devida categoria.

Mas vós pensais que tudo existe apenas para que possais exercitar o vosso juízo e sois suficientemente frívolos para acreditar que não há nada de mais elevado, ou simplesmente diferente, do que a arte do raciocínio, ou seja, o seu exercício mecânico. Vós não sentis a necessidade, o anseio do espírito puro e poético, no sentido de ser redimido da discórdia dos pensamentos confusos, numa terra silenciosa, serena, tranqüila.

Sempre aspirei a este redenção e, por isso, é com prazer que me encaminho para a terra tranqüila da Fé, para o verdadeiro território da Arte. Neste, o modo de compreensão é completamente diferente do anterior: a mais bela satisfação nasce aqui e nos aquieta, sem a intervenção do juízo ou do silogismo: não chegamos lá através de uma série de observações e de reparos pacientemente relacionados, mas tudo acontece de um modo que o não iniciado, aquele que não possui sensibilidade artística, nunca compreenderá.

Verifica-se aqui a formulação de pensamentos, sem aquele penoso desvio das palavras; aqui, o sentimento, a fantasia e a força do pensamento formam uma unidade: a harmônica concordância surpreende-nos com encanto mágico, a alma encontra a sua pátria na obra de arte, a obra de arte e rege-se no nosso íntimo, estamos em acordo com tudo, uma mesma melodia une o nosso espírito com a alma do artista e não nos parece, de forma alguma necessário apresentar provas e fazer extensos discursos a este respeito.

Esta fé interior pode também dispensar a persuasão, pois aquilo que na vida assim designamos deverá ser encarado muito mais como uma fé mais débil ou como um substituto insuficiente da Fé. A persuasão é a demonstração prosaica: a Fé é a fruição, a compreensão de uma obra de arte sublime: esta nunca pode ser demonstrada e aquela nunca pode ser recebida pela via da Arte.

Por conseguinte, precisamos de humilhar-nos perante os grandes espíritos que reinaram na Arte, antes de querermos senti-los plenamente e depois julgá-los.

Por falta desta humildade acontece, repetidas vezes, que o excelente é repudiado, porque os homens se persuadem com freqüência infundadamente de que sabem até onde se estendem as fronteiras da Arte. Dado que as obras dos artistas sem sensibilidade artística podem ser objeto de demonstração, acontece que muitas pessoas, mesmo a maioria, de bom grado as tomam por obras de arte, numa atitude de boa vontade e de mal interpretada benevolência; e fazem-no sem quaisquer reservas, pois podem dar largas aqui à sua faculdade de julgar; que poderiam elas desejar mais?

Expressei aqui estes pensamentos, para mim sempre atuais, porque também na Música, sem dúvida a mais obscura de todas as artes, não é raro serem ditadas sentenças ou contra-sentenças semelhantes. Pois a arte dos sons é, seguramente, o mistério último da Fé, a Mística, a Religião totalmente revelada. Tenho, muitas vezes, a impressão de que ela ainda está a nascer e de que os seus mestres não podem comparar-se com quaisquer outros. Todavia, nunca me senti disposto a impor esta minha opinião a outros espíritos. Mas talvez não seja inútil afirmar algo de ousado ou escandaloso sobre as partes isoladas ou obras integrais desta arte, porque só por esta via, desde sempre, aconteceu alguma coisa.

Quando o nosso olhar avista uma roseira em flor em pleno Verão, podemos sentir uma alegria inexprimível. Os filhos rubros que se empurram cá para fora de todos os lados, e botões e flores já desabrochadas confundindo-se, saindo de todos os ramos e buscando o ar quente e livre, beijados pela luz do sol: - quem não se esquece, neste deslumbramento de flores, do lírio isolado, da violeta oculta?-

Assim floresce em cada arte um esplendor rotundo, exuberante, no qual toda a plenitude da vida, todos os afetos isolados se unem e se estendem e se empurram para todos os lados e representam, com variados sons, uma vida uma com cores variegadas. Nada em Música me parece preencher tão bem este lugar como as grandes sinfonias, compostas de múltiplos elementos.

A Música, tal como a possuímos, é, ao eu parece, a mais jovem de todas as artes; fez ainda pouquíssimas experiências, ainda não viveu nenhum período verdadeiramente clássico. Os grandes mestres construíram partes isoladas deste domínio, mas nenhum abrangeu a totalidade e também nunca vários artistas representaram, numa mesma época, um todo perfeito nas suas obras. Acima de tudo, parece-me que a música vocal e a instrumental não estão ainda suficientemente dissociadas e cada uma não caminha ainda no seu próprio terreno; ainda as encaramos excessivamente como um ser composto, e isso tem também como conseqüência que a própria Música é muitas vezes considerada apenas como complemento da Poesia.

A pura música vocal deveria, talvez, mover-se na sua própria força, respirar no seu elemento característico, sem qualquer acompanhamento instrumental; tal como a música instrumental segue o seu próprio caminho e não se interessa por nenhum texto, por nenhuma poesia subjacente. Poetando para si própria e comentando-se a si mesma poeticamente. Ambas as formas podem existir independentemente puras e separadas.

Porém, quando são conjugadas, quando o canto é transportado e elevado pelos instrumentos como um navio sobre as ondas, o músico necessita de ter já grande domínio sobre o seu elemento, precisa de reinar com força e firmeza no seu reino, para não suceder que, ou por hábito ou involuntariamente, ele submeta uma destas artes à outra. Nas produções teatrais dá-se este caso com demasiada freqüência: ora nos apercebemos de que toda a variedade dos instrumentos serve somente para realizar um pensamento do poeta e para acompanhar o cantor; ora a poesia e o canto são abafados e o compositor só se satisfaz ao fazer ouvir-se através dos seus instrumentos em fraseados maravilhosos.

Mas agora vou desviar-me das restantes artes e falar apenas expressamente da música instrumental.

Pode encarar-se o órgão humano da fala e do som também como um instrumento, no qual os sons da dor, da alegria, do encantamento e de todas as paixões apenas constituem ressonâncias isoladas, os sons fundamentais, as tônicas, nas quais se baseia tudo o que esse instrumento pode produzir. Em rigor, esses sons são apenas exclamações soltas ou sons contínuos da queixa torrencial, da alegria moderada. Se acreditarmos que toda a música humana só deve sugerir e exprimir paixões, alegramo-nos tanto mais, quanto mais nítida e definidamente reencontrarmos estes sons nos instrumentos sem vida. Muitos artistas dedicaram toda a sua existência a elevar e a embelezar esta declamação, a realçar a expressão cada vez com maior veemência e intensidade e, muitas vezes, foram elogiados e venerados como os únicos verdadeiros e grandes artistas.

A partir deste gênero musical desenvolveram-se várias regras que são incondicionalmente aceites por quem queira ser tudo por pessoa de bom gosto. Insiste-se em banir desta música autêntica todo o colorido, todos os ornamentos, tudo o que se opõe à interpretação nobre e simples.

Não pretendo aqui censurar tal opinião; e a verdadeira música vocal deve, talvez, basear-se inteiramente nas analogias da expressão humana: ela exprime, então, idealmente a humanidade, com todos os seus desejos e paixões, é numa palavra, música, porque o homem nobre sente em si próprio tudo musicalmente.

Esta arte parece-me, apesar de tudo isto, uma arte ainda limitada; ela é e permanece uma declamação e um discurso elevado; cada língua humana, cada expressão do sentimento deveria ser música em menor grau.

Na música instrumental, contudo, a Arte é independente e livre, fixa para si própria as suas leis, improvisa na fantasia, brincando, sem um objetivo, e realiza e alcança, contudo, o objetivo mais elevado; segue inteiramente os seus impulsos obscuros e exprime o que há de mais profundo, de mais maravilhoso, com o seu brincar. Os coros plenos, as peças a várias vozes complexamente elaboradas com toda a arte, constituem o triunfo da música vocal; mas o supremo triunfo, o mais belo louvor dos instrumentos são as sinfonias.

As sonatas, os artísticos trios e quartetos são como que os exercícios escolares para esta perfeição da Arte. O compositor tem aqui um campo infindável para mostrar a sua força, a sua profundidade de pensamento; aqui, pode falar a elevada linguagem poética, que desvenda em nós o que há de mais maravilhoso e põe a descoberto todas as profundidades: aqui pode ele despertar as maiores imagens e as mais grotescas e abrir as suas grutas fechadas; alegria e dor, encanto e melancolia vão aqui lado a lado: no meio, os mais estranhos pressentimentos, brilho e cintilação por entre os grupos, e tudo se deseja e se persegue e retrocede, e a alma à escuta exulta neste deslumbramento.

Estas sinfonias podem representar um drama tão variegado, tão complexo, confuso, com um tão belo desenvolvimento, como o poeta jamais no pode dar; pois que revelam em linguagem enigmática o que há de mais enigmático, não dependem de quaisquer leis da verossimilhança, não precisam recorrer a quaisquer histórias ou caracteres e permanecem no seu mundo puramente poético. Evitam assim todos os meios extrínsecos que possam arrebatar-nos, encantar-nos; a matéria intrínseca é, desde o princípio até ao fim, o seu objeto; a própria finalidade está presente em cada momento e com ela começa e termina a obra de arte[1].

Todavia, flutuam freqüentemente nos sons imagens tão individualmente intuíveis que, quanto a mim, esta arte prende os olhos e os ouvidos simultaneamente. Por vezes, entrevês sereias nadando à superfície do mar ameno, cantando para ti com os seus mais doces sons: depois, caminhas através de uma bela floresta resplandecente de sol, através de grutas escuras, adornadas com pinturas excêntricas: águas, subterrâneas soam aos teus ouvidos, estranhas luzes passam junto de ti.

Não me recordo de um prazer semelhante ao que a música me proporcionou recentemente numa viagem. Fui ao teatro, onde deveria ser representado o Macbeth. Um músico famoso composto uma sinfonia, expressamente para esta magnífica tragédia[2]; esta sinfonia encantou-me e extasiou-me tanto, que ainda agora não consigo afastar da minha alma as grandes impressões que então recebi. Não sou capaz de descrever como esta peça musical me pareceu maravilhosamente alegórica e, no entanto, repleta de imagens altamente originais; pois que a verdadeira, a mais elevada alegoria perde, por sua vez, só por si própria, a universalidade fria que só encontramos nos poetas que não estão à altura da sua arte. Vi na música a charneca sombria, nublada, na qual os confusos círculos mágicos das feiticeiras se entrelaçam uns nos outros à luz do crepúsculo, e as nuvens, cada vez mais espessas e asfixiantes se arrastam cá para baixo, para a terra. Vozes horríveis gritam e proferem ameaças através da solidão; um estremecimento fantasmático perpassa no meio de todo o tumulto; uma malícia ridente, horrenda mostra-se ao longe. – As formas ganham contornos mais definidos, figuras medonhas caminham, imponentes, atravessando a charneca em nossa direção, o nevoeiro dissipa-se. Agora os nossos olhos vêem um monstro horripilante deitado no seu covil negro e preso com fortes correntes; ele esforça-se com toda a violência por libertar-se, fazendo uso de todas as suas forças, mas é sempre impedido de consegui-lo: à sua volta começa a dança mágica de todos os fantasmas, de todas as máscaras. Como numa melancolia chorosa, os olhos, ao longe, estremecem e desejam que as correntes detenham a horrenda criatura, que não se quebrem. Mas o tumulto torna-se cada vez mais assustadoramente ruidoso e, com um grito lancinante, com a fúria mais intensa, o monstro desprende-se e atira-se às máscaras com saltos selváticos; ouvem-se lamentações e júbilo misturados. A vitória está decidida, o inferno triunfa. É agora que a confusão se confunde num torvelinho, num extremo de pavor, tudo foge amedrontado e de novo regressa: o canto de triunfo dos danados conclui a obra de arte.

Depois desta grande visão, muitas cenas da peça me pareceram turvas e vazias, dado que o mais assustador e horripilante já tinha sido proclamado anteriormente com maior grandiosidade e poesia. Continuava a pensar só na música, a peça pesava sobre o meu espírito e perturbava as minhas recordações; pois para mim a peça terminara com o final desta sinfonia. Não conheço mestre algum, nem peça musical alguma que pudessem ter provocado em mim um tal efeito, nos quais eu tivesse observado assim o movimento infatigável, cada vez mais furioso, de todas as forças da alma, esta reviravolta, terrível e vertiginosa, de todos os frêmitos musicais. A peça deveria ter terminado com esta grande obra de arte, e não poderia conceber-se nem desejar-se na fantasia nada mais elevado; depois, esta sinfonia era a repetição mais poética da peça, a mais audaz representação de uma vida humana perdida, deplorável, assediada e derrotada por todos os monstros.

Em princípio, parece-me constituir uma degradação das peças sinfônicas o fato de as mesmas serem utilizadas como prelúdios para óperas ou peças teatrais e que a designação de abertura seja, por isso usada também como sinônimo. Quase deveria acreditar-se que aqueles compositores menores criaram as suas aberturas, usando somente as diferentes melodias que apresentam na própria ópera, e que na abertura apenas combinam livremente, tiveram aí uma sensibilidade realmente muitíssimo correta. Pois com outros compositores acontece com excessiva freqüência que nós só no princípio nos deleitamos com a mais sublime poesia.

Para as peças teatrais comuns nunca deveriam ser escritas sinfonias especiais; pois se estas se adequarem minimamente à sua função, apenas servem para tornar a arte musical dependente de uma arte estranha. Para quê, então, a música aqui? No antigo teatro inglês só se ouviam alguns toques de clarim antes da representação. – este hábito deveria ser reintroduzido ou, pelo menos, deveria deixar-se a música ser exatamente tão irrelevante, como o é na maioria das nossas peças teatrais.

Mais belo seria, sem dúvida, se os nossos grandes dramas ou óperas terminassem com uma ousada sinfonia. Aqui, o artista poderia então condensar tudo, empregar toda a sua força e arte. Isto foi sentido também pelo nosso maior poeta; com que beleza, ousadia e grandeza ele usa a música no seu Egmont, como clarificação, como apoteose do conjunto! Já ela começa em sons sutis, lentos, queixosos, quando as luzes se apagam: e torna-se mais ousada, mais espiritual e maravilhosa com as aparições dos espíritos e no sonho. – a peça termina, faz-se ouvir uma marcha que já se vinha anunciando, cai o pano e uma sinfonia triunfal conclui o excelso drama[3]. – Esta sinfonia triunfal constituiria uma grande tarefa para o verdadeiro músico: nela, ele poderia repetir audazmente o drama, representar o futuro e acompanhar o poeta da mais digna forma.

 

 

 


[1] Cf. nota 6 a “A essência singular da arte musical e a psicologia da música instrumental contemporânea” de Wackenroder e o excerto do texto a que essa nota se refere, onde se faz louvor da música instrumental, como música absoluta.

[2] Cf. nota nº 8 à Introdução.

[3] Transcrevo as palavras de Wolfgang Nehring: “Tieck refere-se aqui ao 5º ato do Egmont de Goethe. A voragem para o sonho e a música, que ele louva, é criticada na recensão de Schiller como”salto mortal para um mundo da ópera”. – De resto, Goethe não pensava apenas na utilização da música no 5º ato, mas incumbiu o compositor Philipp Christoph Kayser de escrever também uma sinfonia, isto é, abertura para a peça, bem como música para entreatos. No ano de 1810 surgiu a célebre música de Beethoven para o Egmont, que contribuiu essencialmente para o êxito ulterior do drama”. In Wackenroder/Tieck: Phantasien über die Kunst, org. W. Nehring. Stuttgart 1973, p. 134.


                                         

 

 

 

 

  Ludwig Tieck (1773-1853)

© 2023 by  Limo Service. Proudly made by Wix.com 

  • w-facebook
  • Twitter Clean
  • w-googleplus
bottom of page