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Carta sobre a Música Francesa (1753). Trad. Daniela de Fátima Garcia e José Oscar de Almeida Marques

 

LinK: http://www.unicamp.br/~jmarques/trad/ROUSSEAU-Carta_sobre_a_musica_francesa.pdf

 

(Excertos)

 

 

(...) Toda a musica se compões de três coisas: melodia ou canto, harmonia ou acompanhamento, andamento ou ritmo.

Embora o canto tire sua principal característica do ritmo, como ele nasce imediatamente da harmonia e sempre submete o acompanhamento ao seu movimento, vou juntar esses dois elementos em um mesmo tópico, falando em seguida separadamente do ritmo.

Como a harmonia tem seu princípio na natureza, ela é a mesma para todas as nações; ou, se houver algumas diferenças, estas são introduzidas pelas diferenças da melodia. Assim, é apenas da melodia que se deve extrair o caráter particular de uma música nacional; ainda mais que., sendo esse caráter dado principalmente pela língua, é o canto propriamente dito que deve sofrer mais sua influência.

Pode-se conceber línguas mais apropriadas à música que outras: e pode-se conceber algumas que lhe seriam absolutamente inapropriadas, tal como uma língua composta apenas por sons mistos, sílabas mudas, surdas ou nasais, poucas vogais sonoras, muitas consoantes e articulações (....) investiguemos o que resultaria da aplicação da música a uma língua assim constituída.

Primeiramente, falta de brilho no som das vogais obrigaria a dar muito mais brilho ao notas; por ser uma língua surda, a música seria esganiçada. Em segundo lugar, a aspereza e a abundância das consoantes forçaria a excluir muitas palavras e a tratar as restantes apenas por entonações elementares, tornando a música insípida e monótona. Ainda pela mesma razão, seu andamento seria lendo e enfadonho (...)

Como essa música seria incapaz de qualquer melodia agradável, procurar-se-ia suprir essa falta por meio de belezas fictícias e pouco naturais, sobrecarregando-a de modulações frequentes e regulares, mas frias, sem elegância e expressão.

(...)Já afirmei que toda música nacional extrai seu principal caráter da língua que lhe é própria, e devo acrescentar que é principalmente a prosódia da língua que constitui esse caráter. (...)

(...) Se se perguntar qual de todas as línguas deve ter uma melhor gramática, eu responderia que é a do povo que raciocina melhor; e se perguntarem qual de todos os povos deve ter uma melhor música, eu diria que é aquele cuja língua é mais apropriada a isso. É o que estabeleci acima e que terei a oportunidade de confirmar na continuação desta Carta. Ora, se há na Europa uma língua apropriada à música, é certamente a italiana; pois essa língua é mais doce, sonora, harmoniosa e acentuada que qualquer outra, e essas quatro qualidades são precisamente as mais convenientes ao canto.

(...) Ela é doce porque suas articulações são pouco complexas, porque o encontro de consoantes é nela raro e sem aspereza, e porque, dado que um grande número de sílabas é formado apenas por vogais, as frequentes elisões tornam sua pronúncia mais fluente: ela é sonora porque a maior parte das vogais é brilhante, porque não possui ditongos compostos, quase não tem vogais nasais e porque as articulações esparsas e fáceis distinguem melhor o som das sílabas, que ser torna mais nítido e mais cheio. (...)

Três coisas parecem-me concorrer para a perfeição da melodia italiana: a primeira é a da língua (....) a segunda é a audácia das modulações (...) a terceira vantagem – e aquela que dá à melodia seu maior efeito – é a extrema precisão do ritmo (...)

(...) Para que uma música se torne interessante, para que ela leva à alma os sentimentos que nela se quer excitar, é preciso que todas as partes concorram para fortalecer a expressão do tema (...)

(...) Essa unidade da melodia parece-me uma regra indispensável e não menos importantes em música que a unidade de ação em uma tragédia: pois ela se funda no mesmo princípio e dirige-se ao mesmo objetivo. (...)

(...) Após as arietas, que fazem em Paris o triunfo do gosto moderno, vêm os famosos monólogos admirados em nossas antigas óperas. Sobre isso se deve observar que nossas mais belas árias estão sempre nos monólogos, e nunca nas cenas, pois como nossos atores não têm nenhuma atuação muda, e a música não indica nenhum gesto nem pinta nenhuma situação, aquele que está em silêncio não sabe o que fazer de sua pessoa enquanto o outro canta. (...)

(...) O caráter arrastado da língua, a pouca flexibilidade de nossas vozes e o tom lamentável que reina perpetuamente em nossas óperas colocam quase todos os monólogos franceses em um andamento lento, e como o ritmo não se faz sentir nem no canto, nem no baixo, nem no acompanhamento, nada é tão arrastado, tão frouxo, tão langoroso como esses belos monólogos que todo mundo admira bocejando: pretendem ser tristes, mas são apenas tedioso; quereriam tocar o coração e só conseguem afligir os ouvidos (...)

(...) É cômico ouvir os partidários da música francesa refugiarem-se no caráter da língua e lançarem sobre ela os defeitos de que não ousam acusar seu ídolo, ao passo que é muito claro que o recitativo mais adequado à língua francesa deve opor-se em quase tudo ao que é praticado: que ele deve fluir por intervalos muito pequenos, não elevar nem abaixar muito a voz, ter poucos sons sustentados, nenhum estrépito, menos ainda gritos, nada, sobretudo, que se assemelhe ao canto, pouca desigualdade na duração ou valor das notas, bem como em seus graus.

(...) Em duas palavras: o verdadeiro recitativo francês, se é que pode haver um, só será encontrado em uma direção completamente oposta a de Lully e seus sucessores, em algum novo caminho que certamente os compositores franceses, tão orgulhosos de sua falsa sabedoria, e, consequentemente, tão distantes de sentir e de amar a verdadeira, não se proporão a procurar tão cedo, e que, provavelmente, não encontrarão jamais.(...)

 

 

 

Ensaio sobre a origem das línguas. in: Os pensadores. Tradução de Lourdes Santos Machado. Introdução e notas de Paul Arbousse-Bastide e Lourival Gomes Machado. São Paulo:Nova Cultural, 1999.

(Excertos- as notas foram retiradas)

 

 

 

CAPITULO II -  De como a primeira invenção das palavras não vem das necessidades, mas das paixões

 

 

Pode-se, pois, crer que as necessidades ditam os primeiros gestos e que as paixões arrancaram as primeiras vozes. Seguindo a trajetória dos fatos com base nessas distinções, seria talvez preciso raciocinar sobre a origem das línguas de um modo totalmente diverso do que se fez até hoje. O gênio das línguas orientais, as mais antigas que conhecemos, desmente por completo a marcha didática que se imagina para a sua composição. Essas línguas nada possuem de metódico e raciocinado; são vivas e figuradas. Apresentam-nos a linguagem dos primeiros homens como línguas de geômetras e verificamos que são línguas de poetas.

 

Assim devia ser. Não se começou raciocinando, mas sentindo. Pretende-se que os homens inventaram a palavra para exprimir suas necessidades; tal opinião parece-me insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades consistiu em separar os homens e não em aproximá-los. Era preciso que assim acontecesse para que a espécie

acabasse por esparramar-se e a terra se povoasse com rapidez, pois sem isso o gênero humano ter-se-ia amontoado num canto do mundo e todo o resto ficaria deserto.

 

Daí se conclui, por evidência, não se dever a origem das línguas às primeiras necessidades dos homens; seria absurdo que da causa que os separa resultasse o meio que os une. Onde, pois, estará essa origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas, para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas. Tudo isso não será indistintamente verdadeiro, porém dentro em pouco voltarei ao assunto.

 

CAPITULO IX

FORMAÇÃO DAS LÍNGUAS MERIDIONAIS

 

Nos primeiros tempos(1) os homens esparsos na superfície da terra não possuíam outra sociedade que não a da família, outras leis que não as da natureza, e, por língua, apenas o gesto e alguns sons inarticulados Não se ligavam por nenhuma idéia de fraternidade comum e, possuindo como único árbitro a força, acreditavam-se inimigos uns dos outros. Essa opinião era-lhes comunicada por sua fraqueza e ignorância. Nada conhecendo, tudo temiam: atacavam para se defenderem. Deveria ser um animal feroz esse homem abandonado sozinho na superfície da terra, à mercê do gênero humano. Estava pronto a fazer aos outros todo o mal que neles temia. As fontes da crueldade são o temor e a fraqueza.

 

As afeições sociais só se desenvolvem em nós com nossas luzes. A piedade, ainda que natural ao coração do homem, permaneceria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar pela piedade? — Transportando-nos para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor. Só sofremos enquanto pensamos que ele sofre; não é em nós, mas nele, que sofremos. Figuremo-nos quanto de conhecimentos adquiridos supõe tal transposição. Como poderia eu imaginar males dos quais não formo idéia alguma? Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesseque ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? Aquele que nunca refletiu, não pode ser demente, justo, ou piedoso, nem tampouco mau e vingativo. Quem nada imagina não sente mais do que a si mesmo: encontra-se só no meio do gênero humano. (...)

 

Quer, pois, procurando a origem das artes, quer observando os primeiros costumes, veremos que tudo se liga, em seu princípio, aos

meios de atender à subsistência e, no que concerne àqueles desses meios que reúnem os homens, que são eles determinados pelo clima e pela natureza do solo.' Será, pois, também pelas mesmas causas que se deve explicar a diversidade das línguas e a oposição de seus caracteres.

Os climas amenos, os territórios abundantes e férteis foram os primeiros a se povoarem e os últimos onde se formaram nações porque

neles os homens podiam com maior facilidade passar uns sem os outros e ainda porque as necessidades, que determinaram o nascimento da sociedade, aí se fizeram sentir mais tarde.(...)

 

Quando se procura saber em que lugares nasceram os pais do gênero humano, de onde saíram as primeiras colônias, de onde vieram as primeiras emigrações, não podereis enumerar os climas agradáveis da Ásia Menor, da Sicília ou da África, nem mesmo o Egito; citareis as areias da Caldéia e os rochedos da Fenícia. Em todos os tempos encontrareis a mesma situação. A China, por mais que se povoe de chineses, povoa-se também de tártaros; os citas inundaram a Europa e a Ásia; as montanhas da Suíça atualmente lançam sobre nossas regiões férteis uma perpétua colônia que promete nunca se esgotar.

 

Dir-se-á natural que os habitantes de uma região hostil a deixem para ocupar uma melhor. Muito bem; mas por que essas regiões melhores, em lugar de formigarem de habitantes seus, se transformam em asilo dos outros? Para sair de uma região hostil é preciso estar nela e por que, então, nascem aí preferencialmente tantos homens? Parece mais razoável que devessem as regiões ingratas povoar-se unicamente com o excedente das férteis e vemos acontecer justamente o contrário. A maioria dos povos latinos dizia-se aborígine,' enquanto a magna Grécia, muito mais fértil, só era povoada por estrangeiros; todos os povos gregos originavam-se de várias colônias, salvo aquele cujo solo era o pior, o povo ático, que se dizia autóctone ou nascido de si mesmo. Finalmente, sem penetrar na noite dos tempos, os povos modernos oferecem uma observação decisiva, pois qual o clima maistriste do mundo senão o considerado a fábrica do gênero humano?

 

As associações de homens são, em grande parte, obra dos acidentes da natureza — os dilúvios particulares, os mares extravasados, as erupções dos vulcões, os grandes terremotos, os incêndios despertados pelo raio e que destroem as florestas, tudo que atemorizou e dispersou os selvagens de uma região, depois reuniu-os para reparar em conjunto as perdas comuns. As tradições das desgraças da terra, tão freqüentes nos tempos antigos, mostram de quais instrumentos se serviu a Providência para forçar os seres humanos a se unirem. Depois que se estabeleceram as sociedades, cessaram esses grandes acidentes ou então se tornaram raros. Parece que isso continuará a acontecer — as mesmas infelicidades que reuniram os homens esparsos dispersaram aqueles que se reuniram.(...)

 

Quantas regiões áridas só são habitáveis devido aos sangradouros e aos canais que os homens tiraram dos rios! Quase toda a Pérsia só subsiste graças a esse artifício; a China formiga de gente com o auxilio de numerosos desses canais; sem os dos Países Baixos, estes seriam inundados pelos rios, como o seriam pelo mar, sem os diques. O Egito, a região mais fértil da terra, só é habitável devido ao trabalho do homem; nas grandes planícies, desprovidas de rios e cujo solo não possui uma inclinação suficiente, só se pode recorrer aos poços. Se, pois, os primeiros povos, a que se faz menção na História, não habitavam regiões férteis ou margens acessíveis, não é porque esses sítios acolhedores fossem desérticos, mas porque seus numerosos habitantes, podendo ignorar-se uns aos outros, por mais tempo viveram no seio de suas famílias, isolados e sem comunicação. Mas, nas regiões áridas, nas quais só os poços forneciam água, tiveram de reunir-se para cavá-los, ou, pelo menos, combinarem o seu uso. Terá sido essa a origem das sociedades e das línguas nas regiões quentes. (...)

 

CAPÍTULO X

FORMAÇÃO DAS LÍNGUAS DO NORTE

 

Com o decorrer dos tempos, todos os homens se tornam semelhantes, porém é diferente a ordem de seu progresso. Nos climas meridionais, onde a natureza é pródiga, as necessidades nascem das paixões; nas regiões frias, onde ela é avara, as paixões nascem das necessidades, e as línguas, tristes filhas da necessidade, ressentem-se de sua áspera origem.

 

Ainda que o homem se habitue com as intempéries, com o frio, com a penúria e até com a fome, há, contudo, um ponto em que a natureza sucumbe — nas garras dessas provações cruéis tudo que é débil perece e tudo mais se fortalece. Não há um ponto intermediário entre o vigor e a morte. Por isso os povos setentrionais são tão robustos, pois o são não porque o clima os fez assim, mas porque só respeitou os que assim eram, não sendo de admirar que os filhos conservassem a boa constituição dos pais.

 

Compreende-se, desde logo, que os homens mais robustos devem possuir órgãos menos delicados, suas vozes devem ser mais ásperas e mais fortes. Aliás, que diferença enorme existe entre as inflexões comovedoras que resultam dos frêmitos da alma e os gritos arrancados pelas necessidades físicas! Nesses tremendos climas, nos quais durante nove meses do ano tudo está morto, o sol só aquece o ar durante poucas semanas, parecendo que o faz unicamente para dizer aos ha- bitantes de que bens estão privados e para acentuar-lhes a miséria; nesses lugares em que a terra nada dá, senão com muito trabalho, e onde a fonte da vida parece estar muito mais nos braços do que no coração, os homens, ocupados incessantemente em atender à subsistência, dificilmente pensavam em laços mais doces: tudo se limitava ao impulso físico — a ocasião determinava a escolha, e a facilidade, a preferência. A ociosidade, que alimenta as paixões, cedeu lugar ao trabalho, que as recalca. Antes de pensar em viver feliz, tinha-se de pensar em viver. A sociedade só se formou pela indústria, porquanto a necessidade mútua unia muito mais os homens do que o teria feito o sentimento. Sempre presente, o perigo de perecer não permitia que se limitassem à língua do gesto, e entre eles a primeira palavra não foi amai-me, mas ajudai-me.

 

Esses dois termos, embora muito semelhantes,' são pronunciados em tom bem diferente. Nada se tinha a fazer sentir e tudo a fazer compreender; não se tratava de energia, mas de clareza. O acento, que o coração não fornecia, foi substituído por articulações fortes e sensíveis e, se houve na forma da linguagem alguma impressão natural, tal impressão contribuiu ainda mais para a sua dureza.

Com efeito, os homens setentrionais não deixam de possuir paixões, mas as possuem de outro tipo. As das regiões quentes são voluptuosas, prendendo-se ao amor e à ternura. A natureza faz tanto pelos habitantes que estes quase não sentem necessidade de fazer algo. Para um asiático sentir-se satisfeito, basta ter mulher e repouso, mas no norte, onde os habitantes consomem muito num solo ingrato, os homens submetidos a tantas necessidades mostram-se fáceis de irritar.

 

Tudo que sucede à sua volta os inquieta e, como só subsistem com dificuldade, quanto mais pobres são tanto mais questão fazem do pouco que possuem. Abordá-los equivale a atentar contra sua vida. Daí resulta o seu temperamento irascível, tão predisposto a se transformar em fúria contra quantos os atingem. Por isso, os seus sons mais naturais são os da cólera e das ameaças, e essas vozes sempre se acompanham de articulações fortes, que as tornam ásperas e estridentes.

 

CAPITULO XII

ORIGEM E RELAÇÕES DA MÚSICA

 

Com as primeiras vozes formaram-se as primeiras articulações ou os primeiros sons, segundo o gênero das paixões que ditavam estes ou aquelas. A cólera arranca gritos ameaçadores, que a língua e o palato articulam, porém a voz da ternura, mais doce, é a glote que modifica, tornando-a um som. Sucede, apenas, que os acentos são nela mais freqüentes ou mais raros, as inflexões mais ou menos agudas, segundo o sentimento que se acrescenta. Assim, com as sílabas  a cadência e os sons: a paixão faz falarem todos os órgãos e dá à voz todo o seu brilho; desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum. À volta das fontes de que falei, os primeiros discursos constituíram as primeiras canções; as repetições periódicas e medidas do ritmo e as inflexões melodiosas dos acentos deram nascimento, com a língua, à poesia e à música, ou melhor. tudo isso não passava da própria língua naqueles felizes climas e encantadores tempos em que as únicas necessidades urgentes que exigiam o concurso de outrem eram as que o coração despertava.

 

Foram em verso as primeiras histórias, as primeiras arengas, as primeiras leis. Encontrou-se a poesia antes da prosa, e haveria de assim suceder, pois que as paixões falaram antes da razão. A mesma coisa aconteceu com a música. A princípio não houve outra música além da melodia, nem outra melodia que não o som variado da palavra; os acentos formavam o canto, e as quantidades, a medida; falava-se tanto pelos sons e pelo ritmo quanto pelas articulações e pelas vozes. Segundo Estrabão, outrora dizer e cantar eram o mesmo, o que mostra, acrescenta ele, que a poesia é a fonte da eloqüência. Seria melhor dizer que tanto uma quanto outra tiveram a mesma fonte e a princípio foram uma única coisa. Levando-se em consideração o modo pelo qual se ligaram as primeiras sociedades, pode sentir-se surpreendido pelo fato de terem sido as primeiras histórias escritas em verso e que se cantassem as primeiras leis? Será motivo de admiração terem os primeiros gramáticos submetido sua arte à música e serem, ao mesmo tempo, professores de uma e de outra.

 

Uma língua que não tenha, pois, senão articulações e vozes possui somente a metade de sua riqueza; na verdade, transmite idéias, mas, para transmitir sentimentos e imagens, necessitam-se ainda ritmos e de sons, isto é, uma melodia: eis o que a língua grega possuía, e falta à nossa.

 

Sempre nos admiramos com os efeitos prodigiosos da eloqüência, da poesia e da música entre os gregos; tais efeitos não mais se combinam em nossas cabeças porque não mais atingimos coisas semelhantes, e o máximo que conseguimos de nós mesmos, ao vê-los tão bem expostos, é fingir acreditar neles para não desgostar os nossos sábios. Burette, tendo traduzido, como pôde, em notas de nossa música alguns trechos de música grega, teve a ingenuidade de fazer executá-los na Academia de Letras e os acadêmicos tiveram a paciência de ouvi-los. Admiro-me dessa experiência num país cuja música é indecifrável para qualquer outra nação. Mandai músicos estrangeiros de vossa escolha executar um monólogo de ópera francesa e vos desafio a reconhecê-lo. Não obstante, são esses mesmos franceses que pretendiam julgar a melodia de uma ode de Pindaro posta em música há dois mil anos!

 

Li que, outrora, na América, os índios, vendo os efeitos surpreendentes das armas de fogo, recolheram do chão as balas de mosquetão e depois, lançando-as com a mão ao mesmo tempo que produziam forte ruído com a boca, surpreendiam-se por não matarem ninguém. Assemelham-se a esses índios os nossos oradores, músicos e sábios. O prodígio não está em que não consigamos o que faziam os gregos com sua música, mas estaria, sim, em produzir, com instrumentos tão diversos, os mesmos efeitos.

 

CAPÍTULO XIII

DA MELODIA

 

A melodia constitui exatamente, na música, o que o desenho representa na pintura — assinala traços e figuras, nos quais os acordes e os sons não passam de cores. Mas, dir-me-ão, a melodia não passa de uma sucessão de sons. Sem dúvida, mas o desenho também nada mais é do que um arranjo de cores. Um orador serve-se da tinta para escrever suas obras, porém isso significará ser a tinta um licor de forte eloqüência? (...)

 

Que diríamos de um pintor tão desprovido de sentimentos e de gosto para assim raciocinar, limitando estupidamente ao aspecto físico de sua arte o prazer despertado em nós pela pintura? Que diríamos do músico que, cheio de preconceitos semelhantes, acreditasse ver unicamente na harmonia a fonte dos grandes efeitos da música? Mandaríamos o primeiro colorir painéis e condenaríamos o outro a compor óperas francesas.

 

Como, pois, a pintura não é a arte de combinar algumas cores de um modo agradável à vista, também a música não é a arte de combinar os sons de uma maneira que agrade ao ouvido. Se só fossem isso, tanto uma quanto outra figurariam entre as ciências naturais e não entre as belas-artes. Somente a imitação as eleva até esse grau. Ora, que faz da pintura uma arte de imitação? — o desenho. E da música? — a melodia.

 

CAPÍTULO XIV

DA HARMONIA

 

A beleza dos sons pertence à natureza; seu efeito é puramente físico e resulta do concurso de várias partículas de ar postas em movimento pelo corpo sonoro e por todas as suas aliquotas, talvez ao infinito, dando esse conjunto uma sensação agradável. Todos os homens do universo experimentarão prazer ouvindo belos sons, mas, se inflexões melodiosas que lhes sejam familiares não os animarem, esse prazer não será delicioso, nem se transformará em voluptuosidade. Os mais belos cantos ao nosso gosto sempre impressionarão mediocremente um ouvido não acostumado a eles. São uma língua cujo dicionário se precisa conhecer.

 

A harmonia propriamente dita encontra-se em situação ainda menos favorável. Possuindo apenas belezas de convenção, jamais agrada a ouvidos que não se instruíram a esse respeito e só com reiterado hábito poder-se-á senti-la e saboreá-la. Os ouvidos rústicos só ouvem ruídos em nossas consonâncias. Quando se alteram as proporções naturais, não é de espantar que não exista mais o prazer natural.

 

Um som traz consigo todos os sons harmônicos concomitantes, naquelas relações de força e de intervalos que devem ter entre si para causar a mais perfeita harmonia desse mesmo som. Juntai-lhe uma terça ou uma quinta, ou qualquer outra consonância, e não a estareis juntando, mas sim redobrando-a, pois estareis conservando a relação intervalar, porém alterando a de força. Reforçando uma consonância e não as outras, rompeis a proporção. Desejando fazer melhor do que a natureza, fazeis pior. Vossos ouvidos e vosso gosto estragaram-se por uma arte mal compreendida. Naturalmente, só existe a harmonia do uníssono.

 

O Sr. Rameau pretende que os timbres altos de uma certa simplicidade sugerem naturalmente seus baixos e que um homem possuidor de bom ouvido, embora não exercitado, naturalmente entoará esse baixo. Eis um preconceito de músico, desmentido por toda e qualquer experiência. Não somente aquele que não tiver escutado nem o baixo nem a harmonia não poderia por si só encontrar essa harmonia ou esse baixo, como também desagradá-lo-iam caso os ouvisse, pois gostaria muito mais do simples uníssono.

 

Mesmo que se calculasse, durante milhares de anos, as relações dos sons e as leis da harmonia, como se poderia fazer um dia dessa arte uma arte de imitação? Onde está o princípio dessa pretensa imitação? De que é sinal a harmonia? E o que existe de comum entre os acordes e nossas paixões?

 

Fazendo-se a mesma pergunta quanto à melodia, a resposta virá por si mesma: já está de antemão no espírito dos leitores. A melodia, imitando as inflexões da voz, exprime as lamentações, os gritos de dor ou de alegria, as ameaças, os gemidos. Devem-se-lhe todos os sinais vocais das paixões. Imita as inflexões das línguas e os torneios ligados, em cada idioma, a certos impulsos da alma. Não só imita como fala, e sua linguagem, inarticulada mas viva, ardente e apaixonada, possui cem vezes mais energia do que a própria palavra. Disso provém a força das imitações musicais e nisso reside o império do canto sobre corações sensíveis. Em certos sistemas, a harmonia pode concorrer para tanto, ligando a sucessão de sons por algumas leis de modulação, tornando as entonações mais justas e levando ao ouvido um testemunho fidedigno dessa justeza, aproximando e fixando inflexões inapreciáveis a intervalos consonantes e ligados. Mas, oferecendo também embaraços à melodia, tira-lhe a energia e a expressão, apaga a acentuação apaixonada para substituí-la pelo intervalo harmônico: submete-nos unicamente a dois únicos modos de cantar, quando deveria haver tantos quantos são os tons oratórios; apaga e destrói multidões de sons ou de intervalos que não entram no seu sistema; em uma palavra, de tal modo separa o canto da palavra que essas duas linguagens se combatem, se contrariam, tiram uma da outra qualquer caráter de verdade e, num tema patético, não podem unir-se sem absurdo. Por isso, o povo sempre acha ridículo exprimir-se em canto as paixões fortes e sérias, pois sabe que em nossas línguas essas paixões não têm inflexões musicais e que os homens do norte, como os cisnes, não morrem cantando.

 

A harmonia sozinha é, em si mesma, insuficiente para as expressões que parecem depender unicamente dela. A tempestade, o murmúrio das águas, os ventos, as borrascas, não são bem transmitidos por simples acordes. De qualquer modo que se faça, somente o ruído nada diz ao espírito, tendo os objetos de falar para se fazerem ouvir e sendo sempre necessário, em qualquer imitação, que uma espécie de discurso substitua a voz da natureza. Engana-se o músico que quer reproduzir o ruído pelo próprio ruído. Desconhece tanto a força quanto a fraqueza de sua arte, formando juízos sem gosto e sem discernimento.

 

Ensinai-lhe que precisa produzir o ruído pelo canto; que, se quisesse fazer as rãs coaxarem, seria preciso fazê-las cantar, pois não lhe basta imitar: impõe-se emocionar e agradar. Sem isso, sua imitação enfadonha nada será e, não despertando interesse em ninguém, não causa nenhuma impressão.

 

 


                                             

 

 

 

 

  Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

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