
Platão. A República. Trad. e notas M. H. da Rocha Pereira. 9ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
(Excertos)
(398b-403c; 410c-412-a; 475d-476b)
398b – 403c
- Ora agora, meu amigo – disse eu – estamos em riscos de ter completado em absoluto o que se refere a discursos e histórias na arte das Musas: o que se deve e como se deve dizer.
- Também me parece – respondeu
- Depois disto, não nos falta tratar do caráter do canto e da melodia?
- É evidente que sim.
- Mas não é verdade que toda a gente descobriria logo o que devemos declarar sobre a maneira como hão-de ser, se quisermos estar de acordo com o que dissemos anteriormente?
- Glaúcon sorriu-me e disse: - E por mim, Sócrates, corro o risco de estar excluido desse “toda a gente” porque, de momento, não sou capaz de conjecturar o que devemos dizer, suspeito-o, contudo.
- Mas sem dúvida que és capaz de dizer que a melodia se compõe de três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo[1].
- Pelo menos isso, sou.
- E pelo que respeita às palavras, sem dúvida que não diferem nada do discurso não cantado, quanto a deverem ser expressas segundo os modelos que há pouco referimos, e da mesma maneira?
- É exato.
- E certamente a harmonia e o ritmo devem acompanhar as palavras?
- Como não?
Contudo, afirmamos que não queríamos lamentos e gemidos nos discursos.
- Pois não.
- Quais são então as harmonias lamentosas? Diz-me, já que és músico.
- São a mixolidia, a sintonolídia[2] e outras que tais.
- Portanto essas são as que se devem excluir, visto que são inúteis para as mulheres, que convém que sejam honestas, para já não falar dos homens.
- Absolutamente.
- Mas, na verdade, nada convém menos aos guardiões do que a embriaguez, a moleza e a preguiça.
- Como não?
- Quais são, pois, dentre as harmonias, as moles e as dos banquetes?
- Há umas variedades de iônia e da lídia, a que chamam efeminadas.
- E essas, poderás utilizá-las na formação de guerreiros, meu amigo?
- De modo algum, respondeu. Mas arriscas-te a que fiquem apenas a dória e a frigia[3].
- Não entendo de harmonias – prossegui eu-. Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem valente na guerra e em toda a ação violenta, ainda que seja mal sucedido e caminhe para os ferimentos ou para a morte ou incorra em qualquer outra desgraça, e em todas estas circunstâncias se defenda da sorte com ordem e com energia. E deixa-nos ainda outra para aquele que se encontra em atos pacíficos, não violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou, pelo contrário, se submete aos outros quando lhe pedem, o ensinaram ou o persuadem, e, tendo assim procedido a seu gosto sem sobranceria, se comporta com bom senso e moderação em todas estas circunstâncias, satisfeito com o que lhe sucede. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitarão admiravelmente as vozes de homens bem e mal sucedidos, sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar.
- Mas não me estás a pedir que deixe ficar senão as que agora mesmo enumerei.
- Portanto, não precisaremos para os nossos cantos e melodias de instrumentos com muitas cordas e com muitas harmonias.
- Não me parece.
- Logo, não teremos de sustentar artífices para fabricarem harpas, trígonos[4] e toda a espécie de instrumentos de muitas cordas e de muitas harmonias.
- Acho que não.
- E então? Os fabricantes de flautas[5] e os flautistas, recebe-los na cidade? Ou não é este o instrumento que emite mais sons? E os próprios instrumentos de muitas harmonias, não se dá o caso de serem imitações da flauta?
- É evidente – respondeu ele.
- Resta-te a lira e a cítara para se utilizarem na cidade; e nos campos, por sua vez, os pastores terão a siringe.
- Como o indica o nosso raciocínio.
- Certamente, meu amigo, que não fazemos nada de novo, ao preferirmos Apolo e os instrumentos de Apolo e Mársias[6] e aos seus instrumentos.
- Não, por Zeus, não julgo tal.
- Mas, pelo Perro[7]! Sem nos darmos conta disso, purificamos de novo a cidade que há pouco dizíamos estar efeminada.
- E fomos bem sensatos nisso – replicou ele.
- Vamos lá então purificar o resto. A seguir às harmonias, deveremos tratar dos ritmos não os procurar variados, nem pés de toda a espécie, mas observar quais são os correspondentes a uma vida ordenada e corajosa. Depois de os distinguir, devem forçar-se os pés e a melodia a seguirem as palavras, e não estas aqueles. Quais seriam esses ritmos, pertence-te explicá-lo, como fizeste para as harmonias.
- Mas, por Zeus, não sei que hei-de dizer! Que existem três espécies dessas[8], tal como há quatro tons[9], a partir das quais se entretecem todas as harmonias, é coisa que poderei afirmar, por a ter observado; mas que espécie de vida imita cada um, não sei dizê-lo.
- Sobre esse assunto – disse eu – pediremos conselho a Dâmon[10], sobre os pés adequados à baixeza, à insolência, à loucura e aos outros defeitos, e os ritmos que devem deixar-se aos seus contrários. Tenho idéia, mas não muito clara, de lhe ter ouvido chamar a qualquer coisa enóplio[11] composto, dáctilo e heróico, mas não sei como os distribuía, igualando a arse e a tese, de maneira a acabar numa breve e uma longa. E, segundo julgo, chamava a um iambo e a outro troqueu, e atribuía-lhes longas e breves. E em certos destes metros parece-me que não censurava ou louvava menos os tempos destes pés do que os ritmos em si. Mas estas questões, como disse reservemo-las para Dâmon. Para as deslindar, não seria pequena a discussão, não achas?
- Por Zeus que não seria!
- Mas, ao menos isto, podes decidi-lo já: que a beleza ou fealdade de forma dependem do bom ou do mau ritmo.
- Como não?
- Mas, na verdade, o bom e o mau ritmo seguem, imitando-o, aquele, o estilo bom, este, o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a má harmonia, se o ritmo e a harmonia se adaptam à palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses.
- Realmente, são eles que devem adaptar-se às palavras.
- Mas o modo de expressão e a palavra não dependem do caráter da alma?
- Como não?
- E, da expressão, tudo o mais?
- Sim.
- Logo, a boa qualidade do discurso, da harmonia, da graça e do ritmo depende da qualidade do caráter, não daquele a que, sendo debilidade de espírito, chamamos familiarmente ingenuidade, mas da inteligência que verdadeiramente modela o caráter na bondade e na beleza.
- Exatamente – disse
- Portanto não devem os jovens procurar por toda a parte estas qualidade, se querem executar o que lhes incumbe?
- Devem procurá-las, sim.
- Mas também a pintura está cheia delas, bem como todas as artes desta espécie. Cheia está a arte de tecelagem, de bordar, de construir casa, e o fabrico dos demais objetos. Em todas estas coisas há, com efeito, beleza ou fealdade. E a fealdade, a arritmia, a desarmonia, são irmãs da linguagem perversa e do mau caráter; ao passo que as qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o caráter sensato e bom.
- Absolutamente – disse.
- Mas então só aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a imagem do caráter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte? E, se não forem capazes disso, não deverão ser proibidos de exercer o sei mester entre nós, a fim de que os nossos guardiões, criados no meio das imagens do mal, como no meio de ervas daninhas, colhendo e pastando aos poucos, todos os dias, porções de muitas delas, inadvertidamente não venham a acumular um grande mal na sua alma? Devemos mas é procurar aqueles dentre os artistas cujas boa natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias[12], que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de harmonia com a razão formosa?
- Seria essa, de longe, a melhor educação.
- Não é então por esse motivo, ó Gláucon, que a educação pela música[13] é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais a fundo na alma e afetam-na mais fortemente[14], trazendo consigo a perfeição, e tornando aquele perfeita, se se tiver sido educado? E, quando não, o contrário? E porque aquele que foi educado nela, como devia, sentiria mais agudamente as omissões e imperfeições no trabalho ou na conformação natural, e, suportando-as mal, e com razão, honraria as coisas belas, e, acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito[15]; ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocina, e, quando chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhecê-la pela sua afinidade com ela, sobretudo por ter sido assim educado.
- A mim afigura-se-me que é por razões dessas que se deve fazer a educação pela música.
- É quando como aprendemos as letras e só achávamos que as sabíamos o suficiente quando os caracteres, apesar de pouco, não nos passavam despercebidos em todas s composições em que entravam, e, fossem elas grandes ou pequenas, não as desprezávamos, como se não devessem ser notadas, mas em todo o lado nos esforçávamos por as distinguirmos, na convicção de que não deixaríamos de ser analfabetos antes de atingir essa fase.
- É verdade.
- Portanto, não reconheceríamos as imagens das letras, se nos aparecessem refletidas na água ou em espelhos, antes de as conhecermos a elas, pois pertencem à mesma arte e ao mesmo estudo?
- Absolutamente.
- Ora pois, pelo deuses! Digo do mesmo modo que não seremos músicos, nem nós mesmos nem aqueles que os propusemos educar para serem guardiões, antes de conhecermos as formas[16] da temperança, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma e de quantas qualidades forem irmãs destas, e por sua vez os vícios que lhes são contrários, onde quer que andem, e de sentirmos a sua presença, sem as desprezarmos nas pequenas ou nas grandes coisas, pois acreditaremos que pertencem à mesma arte e ao mesmo estilo.
- É muito necessário que assim seja.
- Logo – prossegui eu, quem fizer convergir, intimamente, na sua lama, boas disposições, que, no seu aspecto externo, condigam e se harmonizem com aquelas, por participarem do mesmo modelo, tal pessoa será a mais bela visão para quem puder contemplá-la?
- A mais bela, sem dúvida.
- Ora o mais belo é o mais desejável?
- Como não?
- Eis porque o músico se encantaria o mais possível com homens dessa espécie; e, se fosse privado de harmonia, não se encantaria.
- Não, se, pelo menos, for a alma que deixe algo a desejar; se, em todo o caso, for o corpo, manter-se-á até ser capaz de lhe ter afeição.
- Compreendo – disse eu – que tens ou já sentiste um amor desses, e estou de acordo contigo. Mas diz-me uma coisa: pode haver relações entre a temperança e o prazer excessivo?
- Como poderia? Se este não excita menos o espírito do que a dor?
- E com as outras virtudes?
- De modo algum.
- Como assim? E com a insolência e a licença?
- Acima de tudo.
- Saber de alguns prazeres maiores e mais penetrantes que os afrodisíacos?
- Não sei – respondeu ele – nem que sejam de maior fúria.
- Porém o amor verdadeiro, por sua natureza ama com moderação e harmonia a ordem e a beleza?
- Absolutamente – confirmou ele.
- Logo, nada de furioso ou de aparentado com a libertinagem deve aproximar-se do amor verdadeiro.
- Não se deve aproximar.
- Nem deve, por conseguinte, aproximar-se aquele prazer, nem deve ter relação algum com ele o amante e a criança que amam e são amados como se deve.
- Por Zeus que não deve aproximar-se, ó Sócrates.
- Assim pois, ao que parece, estabelece como lei na cidade que vamos construir que o amante pode beijar o jovem, estar com ele, tocar-lhe, como a um filho, tendo em vista ações belas, e se for por meio da persuasão; mas em tudo o mais o seu convívio com o objeto do seu interesse deve ser tal que nunca pensem dele que as suas relações vão além disso; caso contrário, incorrerá na censura de ignorante[17] e grosseiro.
- É isso – confirmou ele.
- Não te parece que também a nossa discussão acerca da música está terminada? Acabou onde devia. Pois a música deve acabar no amor do belo.
410c-412-a
- Ora, pois, Gláucon, aqueles mesmos que assentaram na educação pela música e pela ginástica, não o fizeram pela razão que alguns supõem, de tratar o corpo por meio de uma, e a alma de outra?
- Mas porquê? – perguntou ele.
- Como assim? - É provável – respondi – que ambas tenham sido estabelecidas sobretudo em atenção à alma.
- Não reparaste na disposição de espírito que adquirem os que passam a vida fazer ginástica, sem contato algum com a música? Ou dos que adquirem a disposição contrária?
- A que estás a referir-te?
- À grosseria e dureza por um lado, e à moleza e doçura por outro – expliquei eu.
- É isso mesmo! Os que praticam exclusivamente a ginástica acabam por ficar mais grosseiros do que convém, e os que se dedicam apenas à música tornam-se mais moles do que lhes ficaria bem.
- E contudo, o que há de corajoso na sua natureza é eu poderá dar lugar à grosseria, e, se fosse bem cultivado daria a coragem; mas, demasiado tenso, origina a dureza e a irascibilidade, como é natural.
- Assim me parece.
- Pois então! A doçura não é apanágio de um natural dado à filosofia? Mas, se ela afrouxa, torna-se mais mole do que convém se é bem dirigida, ficará doce e ordenado.
- É isso.
- Ora nós afirmamos que os guardiões precisam de ter ambas estas naturezas.
- Precisam, de fato.
- Então não é necessário conciliá-las uma com as outras?
- Como não seria?
- E dessa harmonia não resulta uma alma moderada e corajosa?
- Absolutamente.
- E, da desarmonia, uma covarde e grosseira?
- Mesmo muito.
- Portanto, se uma pessoa permitir à música que o encante com os seus sons e que lhe derrame na alma, através dos ouvidos, como de um funil, as harmonias doces, moles e lamentosas a que há pouco nos referíamos, e se passar a vida inteira a trautear cações de coração jubiloso – uma pessoa assim, primeiro de tudo, se tinha alguma irascibilidade, amoleceu como quem amolece o ferro, e, de inútil e duro, o torna proveitoso; porém, se perseverou nessa atitude, e não a deixar, mas ficar fascinado, em breve funde e se dissolve, até aniquilar o seu espírito e ser arrancado da alma por excisão, como um nervo, fazendo dele um “amolecido lanceiro”[18].
- Absolutamente.
- E se ele desde início recebeu da natureza uma alma sem coragem, em breve se darão estes fatos. Se, porém, tiver uma que seja impetuosa, enfraquece-a, torna o seu espírito maleável, e por qualquer ninharia pronto a exaltar-se e a apaziguar-se de novo. De corajoso que era, tornou-se irritável, colérico e cheio de mau humor.
- Exatamente.
- E agora, se ele praticar a ginástica em grande escala e se banquetear à larga, sem tocar sequer na música e na filosofia? Primeiro que tudo, como passa bem do seu físico, não se encherá de sobranceria e ardor e não se tornará mais corajoso do que era?
- Absolutamente.
- Pois então! Viosto que nada mais faz nem convive com a Musa! Ainda que existisse dentro da sua alma qualquer desejo de aprender, uma vez que não toma o gosto a ciência alguma, nem investigação, nem participa em nenhuma discussão ou qualquer outra exercitação da música, torna-se débil, surdo e cego, em vista de não ser despertado nem acalentado nem purificado no acervo de suas sensações.
- É isso.
- Uma pessoa assim torna-se um inimigo da razão e das Musas, e já que não serve de palavras para persuadir; leva a cabo todas as suas empresas pela violência e pela rudeza, como um animal selvagem, e vive na ignorância e na inaptidão, sem ritmo nem graciosidade.
- Também me parece.
- Por conseguinte, aquele que melhor caldear a ginástica com a música e as aplicar à alma na melhor medida, - de um homem assim diríamos com toda a raazão que seria o mais consumado músico e harmonista, muito mais do que o que afina as cordas umas pelas outras.
- Com toda a razão, ó Sócrates !
475d-476b
- Mas àquele que deseja prontamente provar de todas as ciências e se atira ao estudo com prazer e sem se saciar, a esse chamaremos com justiça filósofo, ou não?
E Gláucon respondeu: - Então vais ter muitos filósofos desses, e bem estranhos. Realmente, parece-me que todos os amadores de espetáculos, uma vez que têm prazer em aprender, são desse número; e há os amadores de audições, que são os mais difíceis de agrupar entre os filósofos, que não quereriam, de boa vontade, vir ouvis uma discussão e uma conversa como esta, mas que andam por toda a parte, como se tivessem alugados os ouvidos para escutar todos os coros nas Dionísias, sem deixar de ir, quer às Urbanas, quer às Rurais. A todos estes, portanto, e a outros que se dedicam a aprender tais coisas e artes de pouca monta, havemos de chamar-lhes filósofos?
- De modo algum – respondi eu – mas aparências de filósofos.
- E a quais é que chamas verdadeiros?
- Aos amadores do espetáculo da verdade – respondi eu.
- Está certo. Mas que entendes por isso?
- Não é nada fácil com outra pessoa. Mas tu, julgo que concordarás comigo no seguinte.
- Em quê?
- Uma vez que o belo é o contrário do feio, são dois?
- Como não?
- Por conseguinte, uma vez que são dois, também cada um deles é um.
- Também.
- E dir-se-á o mesmo do justo e do injusto, do bom e do mau e de todas as idéias: cada uma, de per si, é uma, mas devido ao fato de aparecerem em combinação com ações, corpos, e umas com as outras, cada uma delas se manifesta em toda a parte e aparenta ser múltipla.
- Dizes bem.
- É nesse ponto que eu estabeleço a distinção: para um lado os que ainda agora referiste – amadores de espetáculos, amigos das artes e homens de ação – e para outro aqueles de quem estamos a tratar, os únicos que com razão podem chamar-se filósofos.
- Que queres dizer?
- Os amadores de audições e de espetáculos encantam-se com as belas vozes, cores e formas e todas as obras feiras com tais elementos, embora o seu espírito seja incapaz de discernir e de amar a natureza do belo em si.
531a-c
- Que não tem jamais que os nossos educandos aprendam qualquer estudo imperfeito e que não vá dar ao ponto onde tudo deve dar, como dizíamos há pouco a propósito da astronomia. Ou não sabes que fazem outro tanto com a harmonia? Efetivamente, ao medirem os acordes harmônicos e sons uns com os outros, produzem um labor improfícuo, tal como os astrônomos.
- Pelos deuses! É ridículo, sem dúvida, falar de não sei que intervalos mínimos[19] e apurarem os ouvidos, como se fossem para captar a voz dos vizinhos; uns afirmam ouvir no meio dos sons um outro, e que é esse o menor intervalo, que deve servir de medida; os outros sustentam que é igual aos que já soaram, e ambos colocam os ouvidos à frente do espírito.
- Referes-te àqueles honrados músicos que perseguem e torturam as cordas, retorcendo-as nas cavilhas. Mas não vá a minha metáfora tornar-se um tanto maçadora, se insisto nas pancadas dadas com o plectro, e nas acusações contra as cordas, ou porque se recusam ou porque exageram – acabo com ela e declaro que não é desses que eu falo, mas daqueles que há momentos dissemos que havíamos de interrogar sobre a harmonia. É que eles fazem o mesmo que os que se dedicam à astronomia. Com efeito, eles procuram os números nos acordes que escutam, mas não se elevam até ao problema de observar quais são os números harmônicos e quais o não são, e por que razão diferem.
614b; 616b-617d
- A verdade é que o que te vou narrar não é um conto de Alcínoo[20], mas de um homem valente[21], Er o Armenio, Panfilio de nascimento. Tendo ele morrido em combate, andavam a recolher, ao fim de dez dias, os mortos já putrefactos, quando o retiraram em bom estado de saúde. Levaram-no para casa para lhe dar sepultura, e, quando, ao décimo segundo dia, estava jazente sobre a pira, tornou à vida e narrou o que vira no além. Contava ele que, depois que saíra do corpo, a sua alma fizera caminho com muitas, e haviam chegado a um lugar divino, no qual havia, na terra, duas aberturas contíguas uma à outra, e no céu, lá em cima, outras em frente a estas. No espaço entre elas, estavam sentados juízes que, depois de pronunciarem a sua sentença, mandavam os justos avançar para o caminho à direita, que subia para o céu, depois de lhes atado à frente a nota de seu julgamento; ao passo que, aos injustos, prescreviam que tomassem à esquerda, e para baixo, levando também atrás a nota de tudo quanto haviam feito. Quando se aproximou, disseram-lhe que ele devia ser o mensageiro, junto dos homens, das coisas do além, e ordenaram-lhe que ouvisse e observasse tudo o que havia naquele lugar (...)
(...) Depois de cada um deles ter passado sete dias no prado, tinham de se erguer dali, e partir ao oitavo dia, para chegar, ao fim de mais quatro dias, a um lugar de onde se avistava, estendendo-se desde o alto através de todo o céu e terra, uma luz, direita como uma coluna, muito semelhante ao arco-íris, mas mais brilhante e mais pura. Chegaram lá, depois de terem feito um dia de caminho, e aí mesmo, viram, no meio da luz, pendentes do céu, as extremidades das suas cadeias (afetivamente essa luz é uma cadeia do céu, que tal com as cordagens das trirremes[22], segura o firmamento na sua revolução); dessas extremidades pendiam o fuso da Necessidade, por cuja alçai giravam as esferas. A respectiva haste e gancho[23] eram de aço; o contrapeso, de uma mistura desse produto e de outros. Quanto à natureza do contrapeso, era como segue. A sua configuração era semelhante à dos daqui, mas, quanto à sua constituição, contava ele que devíamos imaginá-la da seguinte maneira: era como se, num grande contrapeso oco e completamente esvaziado, estivesse outro semelhante, maior, que coubesse exaamente dentro dele, como as caixas que se metem umas nas outras; do mesmo modo, um terceiro, um quarto, e mais quatro. Com efeito, eram oito ao todo, os contrapesos, encaixados uns nos outros, que, na parte superior, tinham o rebordo visível com outros tantos círculos, formando um plano continuo de um só fuso em volta da haste. Esta atravessava pelo meio, de lés-a-lés, o oitavo. Ora o primeiro contrapeso, o exterior, era o que tinha o circulo de rebordo mais largo; o segundo lugar cabia ao sexto, o terceiro ao quarto, o quarto ao oitavo, o quinto ao sétimo, o sexto ao quinto, o sétimo ao terceiro, o oitavo ao segundo. O círculo do maior era cintilante, o do sétimo era o mais brilhante, o do oitavo tinha a cor do sétimo, que o iluminava, o do segundo e do quinto eram muito semelhantes entre si; um pouco mais amarelado do que aqueles, o terceiro era o que tinha a cor mais branca, o quarto era avermelhado, o sexto era o segundo em brancura[24]. O fuso inteiro girava sobre si na mesma direção, mas, na rotação desse todo, os sete círculos interiores andava, à volta suavemente, em direção oposta ao resto. Dentre estes, o que andava com maior velocidade era o oitavo; seguiam-se, ao mesmo tempo, o sétimo, o sexto e o quinto; o quarto parecia-lhes ficar em terceiro lugar nesta revolução em sentido retrógrado, o terceiro em quarto, e o segundo em quinto. O fuso girava nos joelhos da Necessidade. No cimo de cada um dos círculos, andava uma Sereia que com ele girava, e que emitia um único som, uma única nota musical; e de todas elas, que eram oito, resultava um acorde de uma única escala[25]. Mais três mulheres estavam sentadas em círculo, a distância iguais, cada uma em seu trono, que eram as filhas da Necessidade, as Parcas[26], vestidas de branco, com grinaldas na cabeça – Láquesis, Cloto e Átropos – as quais cantavam ao com da melodias das Sereias, Láquesis, o passado, Cloto, o presente, e Átropos, o futuro, Cloto, tocando com a mão direita o fuso, ajudava a fazer girar o círculo exterior, de tempos em tempos; Átropos, com a mão esquerda, procedia do mesmo modo com os círculos interiores; e Láquesis tocava sucessivamente nuns e noutros com cada uma das mãos. (...)
[1] A poesia lírica grega era acompanhada de música, composta pelo próprio autor dos versos. Este passo é um dos muitos que provam a indissolubilidade das duas artes.
[2] As “harmonias” ou modos musicais gregos têm o seu equivalente moderno mais próximo nas nossa escalas maiores e menores. Contavam sete espécies, a mixolídia ou lídia mista, lídia (que se identifica com a sintonolídia do texto), hipolídia, frígia, hipofrígia ou iônia, dória, hipodória (talvez idêntica à eólia). Esta última não é mencionada por Platão. Sobre todo este assunto, veja-se E. Moutosopoulos, La musique das l’oeuvre de Platon, Paris, 1959.
[3] No Laques I88d, só é aceite o modo dório.
[4] Trata-se de um tipo de harpa diferente da anterior, e de forma triangular, como o nome indica. Sobre as duas variedades de harpa citadas, veja-se M. Wegner, Das Musikleben der Griechen, Berlin, 1949, pp. 48-49.
[5] Traduzimos aulos por flauta, como habitualmente vem nos dicionários. Mas convém ter presente que o seu equivalente moderno mais próximo é o oboé.
[6] Era famoso na mitologia grega o desafio feito pelo sátiro Mársias a Apolo, com a condição de que o vencedor trataria o vencido como lhe aprouvesse. As Nove Musas proclamaram a vitória do deus, que atou Mársias a uma árvore e o esfolou. A história deve refletir precisamente a oposição entre dois tipos de música.
[7] O juramento pelo cão (o deus egípcio Anubis, que tinha a cabeça de cão) aparece muitas vezes na boca de Sócrates, embora não seja exclusivo dele. Cf. E. R. Dodds, Plato: Gorgias, Oxford, 1959, pp. 262-263.
[8] Segundo Aristides Quintiliano, I, 34 (apud Adam), as espécies eram to ison, to emiolin e to diplasion. A primeira compreendia os dáctilos, espondeus e anapestos; a segunda, péons, créticos e baquios; a terceira, troqueus, iambos e iônicos.
[9] Entre muitas hipóteses, lembramos a de Monro, perfilada por Adam, de que os tettara eidh seriam as quatro proporções que dão os principais quatro intervalos musicais.
[10] Célebre mestre de música ateniense do séc. V a. C. Ocupou-se especialmente das relações entre a ética e a música.
[11] Os esquemas mais frequente do enóplio são: x_uu_ uu__ ou x _ u u u__.
[12] A propósito deste passo, que tão bem define o ambiente cultural helênico, vale a pena traduzir o comentário de Adam: “Nenhum Grego podia ler estas palavras sem pensar em Olímpia; nenhum Ateniense, sem recordar os esplendores da Acrópoles”.
[13] A música é, para os gregos, a arte das Musas, na qual, como já vimos atrás, os sons e as palavras não podem ser dissociados.
[14] A mesma opinião no Protágoras, 326b.
[15] No texto lê-se a famosa expressão xalos te xagatov (literalmente: “belo e bom”), que no séc. V a. C. traduzia o ideal de perfeição física e moral.
[16] Supomos, como Adam, que a palavra eide do original não deve aqui interpretar-se à luz do Livro VII, e, portanto, o texto não se refere, neste ponto, às ideias transcendentes, mas simplesmente a “formas” ou “espécies”.
[17] A palavra original, amousia, é a negação da qualidade de “músicos”, empregado no sentido que já vimos (supra, 13).
[18] O epíteto é dado a Menelau na Ilíada XVII, 588.
[19] Para definir o que seja hnx nomata, termo da linguagem musical, Adam cita Aristóxeno, Báquio e, entre os modernos Schnaider, que interpreta que “haec ipsa pux na alia parva et tamen composita intervalla” se chamam assim “propter sonorum in augsuto spatio quase confertorum frequentiam”.
[20] Os contos narrados por Ulisses e Alcínoo, rei dos Feaces nos Cantos IX e XII da Odisseia, sçai todos de caráter fantástico. Entre eles, figura uma descida ao Hades (Canto XI), que reforça o paralelismo com a história de Er. A interpretação do mito que agora principia pode ler-se no nosso trabalho Concepções Helenicas de Felicidade no Além, de Homero a Platão, Coimbra, 1955, pp. 85-88, 177-179, 200.
[21] O adjetivo que traduzimos por “valente”, alximon, forma, com o nome de Alcínoo, um jogo de palavras que não foi possível manter em português.
[22] As trirremes eram seguras na sua parte inferior por cordas dispostas horizontalmente.
[23] Os fusos gregos constavam de uma haste vertical, cuja extremidade superior terminava num gancho, sob o qual passava a lã, que depois se ia enrolar na referida haste; na parte inferior desta, ficava o contrapeso, que facilitava a rotação, enquanto se fiava.
[24] Seguindo a interpretação de Cornford, o círculo exterior é o das estrelas fixas; o sexto, o de Vênus; o quarto, de Marte, o oitavo, da lua; o sétimo, do Sol; o quinto, de Mercúrio; o terceiro, de Júpiter; o segundo, de Saturno. Quando se diz que o “oitavo tinha a cor do sétimo, que o iluminava”, está-se a xplicar a origem do luar, que, aliás, já fora compreendida por Xenófanes, Parmenides, Empédocles e Anaxágoras. Que o tenha sido anteriormente a estes, por Anaxímenes, é duvidoso. (cf. G.S. Kirk and J.E. Raven and M. Schofield, The Presocratic Philosophers, p. 156. nota 2.
[25] É a famosa “harmonia das esferas”.
[26] Em grego, as Moirai. Nos Poemas Homéricos, a Moira representa, para cada um, o seu destino fixo, inamovível. O número e o nome destas divindades surge pela primeira vez em Hesíodo, Teogonia 218, 905. A função de cada uma no texto está em relação com a etimologia do seu nome (cf. n. 61). Sobre a origem e evolução do conceito de Moira, veja-se o nosso artigo na Enciclopédia Verbo, s.v.





