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Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de Plotino(vol. I.). Introdução, tradução e notas José Carlos Baracat Júnior. Tese de Doutorado. Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Universidade Estadual de Campinas. 2006.

 

I. 6 [1] - Sobre o belo

 

 

 

1. O belo está sobretudo na visão, mas está também na audição, por conta de combinações de palavras, e está também na música de todos os tipos: pois melodias e ritmos também são belos; há também, para aqueles que se elevam das sensações ao que é superior, belas ocupações, ações, hábitos[1], conhecimentos e ainda a beleza das virtudes[2]. E se houver alguma ainda anterior a essas, ela mesma se mostrará.

 

Então, o que faz até mesmo os corpos aparecerem belos e a audição anuir a sons porque são belos? E todas as coisas que derivam da alma, como são todas elas belas? São todas as coisas belas por uma e mesma beleza, ou a beleza no corpo é diferente da que há em outra coisa? E o que são, ou que é essa beleza? Pois, enquanto certas coisas não são belas por seu próprio substrato, como os corpos, mas por participação, outras são elas mesmas belezas, tal como a natureza das virtudes. Corpos, com efeito, se mostram ora belos, ora não belos, pois uma coisa é serem corpos, outra serem belos. Então, que é essa beleza presente nos corpos? Primeiramente a seu respeito devemos investigar.

 

O que é isso que move os olhares dos espectadores e os volve para si, os atrai e os faz deliciarem-se com o espetáculo? Encontrado isso, talvez possamos, utilizando-o como uma “escada"[3], contemplar também as demais belezas. Dizem que todo mundo[4] diz que a simetria das partes umas com as outras e com o todo, e a adição de algumas boas cores, constitui a beleza para a visão e que, tanto para essas quanto para todas as outras coisas em geral, o serem belas consiste no serem simétricas e mensuradas; para estes, nada simples, mas apenas e forçosamente o que é composto, será belo: e para eles, o todo será belo, mas as partes individuais não serão belas por si mesmas, apesar de contribuírem para que o todo seja belo. Ora, se o todo é belo, também as partes devem sê-lo, pois com certeza não é a partir de partes feias que ele será belo, mas porque todas elas possuem a beleza. As belas cores, para eles, bem como a luz do sol, sendo simples, não possuindo a beleza da simetria, serão excluídas de serem belas. E o ouro, como será belo? E um relâmpago ou os astros na noite, havemos de vê-los por serem belos? Também nos sons o simples será eliminado, embora, com frequência, cada um dos sons presentes numa totalidade bela belo seja também ele. E quando, preservada a mesma simetria, o mesmo semblante parece ora belo, ora não, como não dizer que a beleza deve ser algo outro além da simetria e que o simétrico é belo devido a algo outro? E se, passando para as ocupações e discursos belos, atribuírem à simetria a causa da beleza também nessas coisas, o que seria chamado simetria nas belas ocupações, ou leis, ou conhecimentos, ou ciências[5]? Como teoremas seriam simétricos uns aos outros? Se for porque são harmoniosos., também haverá concordância e harmonia de maus teoremas. Pois dizer que a justiça é uma nobre ingenuidade é harmônico e coerente com que a temperança é uma idiotice, as proposições concordam entre si[6]. Toda virtude é uma beleza da alma e uma beleza mais verdadeira que as mencionadas acima; mas como elas são simétricas? Pois elas não são simétricas como a magnitude ou o número e, ainda que haja múltiplas partes da alma, a composição ou fusão de suas partes ou seus teoremas obedeceria a que tipo de razão? E qual seria a beleza do intelecto, se ele vive isolado[7]?

 

2. Recomeçando, pois, digamos primeiramente o que é com certeza o belo nos corpos. Com efeito, é algo que se toma perceptível logo no primeiro vislumbre, e a alma, como se o compreendesse, o declara e, reconhecendo-o, o acolhe e, por assim dizer, a ele se ajusta. Confrontando-se com o feio, porém, ela se recolhe e o recusa e dele se afasta[8], porque é inconsonante e alheia a ele. Pois bem, afirmamos que a alma, como é por natureza o que é e provém da essência que é superior entre os entes, quando vê algo congênere a ela ou um traço do congênere, se alegra e se deleita, e o reporta para si e rememora de si mesma e dos seus.

Então, que semelhança há entre as coisas belas daqui e as de lá? E, ainda, se existe semelhança, que sejam semelhantes: mas como são belas tanto as de lá quanto as de cá? Sustentamos que as de cá o são pela participação em uma forma. Pois tudo o que é amorfo, sendo por natureza apto a receber um formato e uma forma[9], se permanece impartícipe da razão[10] e da forma[11], é feio e externo à razão divina: e isso é o inteiramente feio[12]. Mas também é feio aquilo que não é dominado por um formato e por uma razão formativa, porque a matéria não suportou ser completamente formatada pela forma[13]. Pois a forma, advindo, compõe e coordena aquilo que vai ser algo uno e composto de muitas partes, e o conduz a uma completude una e nele produz a unidade através da concordância, pois, sendo ela uma, o que foi por ela informado também devia ser uno, na medida de suas possibilidades, runa vez que é composto de múltiplas partes. Assim, a beleza se assenta sobre ele, quando ele já está reduzido à unidade, doando-se às partes e aos todos. Quando ela toma algo uno e isômero, dá ao todo a mesma beleza: assim como, em certas ocasiões, a arte dá beleza a toda uma casa com suas partes e, noutras, uma natureza o faz a uma única pedra. Assim, pois, o corpo belo surge da comunhão com uma razão provinda dos seres divinos.

 

3. A faculdade destinada ao belo o reconhece, e nenhuma outra é mais poderosa do que ela para julgar as coisas que lhe são próprias quando o restante da alma contribui no juízo, e talvez ela se pronuncie ajustando-o à forma que está com ela e usando-a para o juízo como um cânon de correção.

Mas como o que diz respeito ao corpo consoa ao que é anterior ao corpo? Como o arquiteto diz ser bela a casa exterior, tendo-a ajustado à forma interior de casa? É porque a forma exterior, se abstrais as pedras, é a interior dividida pela massa exterior da matéria, sendo indivisível ainda que se manifeste na multiplicidade. Então, quando a percepção vê que a forma nos corpos atou a si e dominou a natureza contrária, que é amorfa, e que um formato sobre outros formatos esplendidamente se sobrepõe, tendo conjugado num todo o que é fragmentário, ela o retoma e o introduz, agora indiviso, em seu interior, e a seu interior presenteia com ele, consoante e concorde e amigo: como quando um grato traço de virtude num jovem é visto por um homem bom consoar com a virtude verdadeira em seu interior.

A beleza da cor é simples devido ao formato e ao domínio da escuridão na matéria através da presença da luz que é incorpórea, razão e forma. Daí o próprio fogo superar em beleza aos outros corpos, pois ele possui posição de forma em relação aos outros elementos, está acima em posição e é o mais sutil de todos os corpos, uma vez que está próximo do incorpóreo, sendo ele o único a não aceitar os outros; mas os outros o aceitam. Pois eles são aquecidos, mas ele não se esfria, e é primariamente colorido, enquanto os outros tomam dele a forma da cor[14]. Assim, lampeja e brilha como se fosse uma forma. Entretanto, se ele não domina, toma-se esvaído em luz e deixa de ser belo, como se não participasse inteiramente da forma da cor. E as harmonias que estão nos sons, as imperceptíveis que produzem as perceptíveis[15], também desse modo fazem a alma tomar consciência do belo, mostrando o mesmo numa situação diferente. É próprio das harmonias sensíveis serem medidas por números, não em qualquer proporção, mas naquela que sirva para a produção de uma forma que domine. E baste isso sobre as coisas belas no domínio da sensação, que são imagens e como que sombras fugidias que, advindas à matéria, a adornam e nos comovem ao aparecerem-nos.

 

4. Quanto às belezas ulteriores, que já não cabe à sensação ver, a alma, sem órgãos, as vê e as proclama: devemos contemplá-las elevando-nos, após deixar que a sensação permaneça aqui em baixo. Assim como, no caso das belezas sensíveis, não era possível àqueles que não as tivessem visto nem percebido como belas pronunciarem-se a seu respeito - os cegos de nascença, por exemplo -, do mesmo modo, não o é, acerca da beleza das ocupações, àqueles que não aceitam a beleza das ocupações, dos conhecimentos e de coisas como essas[16]; nem, acerca do brilho da virtude[17], àqueles que nunca imaginaram como é bela “a face da justiça'' e da temperança: assim belas, nem mesmo "a estrela da noite ou a da manhã"[18]. Mas devemos ver com o que a alma olha as belezas desse tipo e, vendo-as, nos regozijarmos, sermos tomados por tremor e nos excitarmos muito mais do que com as belezas de antes, já que agora tangemos as belezas verdadeiras. Estas afecções devem acontecer ante tudo que seja belo: assombro, doce tremor, desejo, amor e excitação com prazer. É isso que podem experimentar, e experimentam, as almas perante as belezas invisíveis, todas as almas, por assim dizer, mas sobretudo as que são mais apaixonadas, assim como, quando se trata das corpóreas, todos as vêem, embora não sejam igualmente aguilhoados[19] mas os que mais o são, são os chamados amantes[20].

 

 

 

 


 

[1] Héxis.

[2] Cf. Platão, Hípias Maior 297 e-298 b, e Banquete 210 c.

[3] Platão, Banquete 211 c 3.

[4] Cf. Stoicomm Veterum Fragmenta, m. 278 e 472.

[5] Cf. Platão, Banquete 210 c 3-7, e 211 c 6.

[6] Cf. Platão, República 560 d 2-3, e 348 c 11-12; Górgias 491 e 2.

[7] Isto significa que o intelecto é uma realidade subsistente e separada da alma, sendo indiviso e uno.

[8] Cf. Platão, Banquete 206 d 6.

[9] Traduzo morphé por "formato" e eídos por "forma”, sempre que, como nesta passagem, seja nítida a distinção entre o formato perceptível sensorialmente e a forma inteligível.

[10] Lógos.

[11] Cf. Platão, Timeu 50 d 7.

[12] A matéria, que não participa da forma, do ser e do bem.

[13] Cf. Aristóteles, Sobre a Geração dos Animais N 3. 769b 12, N 4. 770b 16-17.

[14] Cf. Platão, Timeu 67 b.

[15] Cf. Heráclito, fr. 54.

[16] Cf. Platão, Banquete 210 c.

[17] Platão, Fedro 250 b 3.

[18] Eurípides, Melanípo fr. 486 Nauck2, e Aristóteles, Ética a Nicômaco V 3. 1129 b 28-29; d. Enéadas, VI. 6 [34]6. 39.

[19] Cf. Platão, Fedro 251 d 5.

[20] Cf. Platão., Banquete 210 b-c.

 

 

 

 

 

 

Plotino (204-270)

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