
Platão. Diálogos (Ed. Os Pensadores). Trad. J. C. de Souza, SP: Ed. Abril, 1972.
O Banquete (186 a – 188 d) - Discurso de Erixímaco
Disse então Erixímaco: "Parece-me em verdade ser necessário, uma vez que Pausânias, apesar de se ter lançado bem ao seu discurso, não o rematou convenientemente, que eu deva tentar pôr-lhe um remate. Com efeito, quanto a ser duplo o Amor, parece-me que foi uma bela distinção; que porém não está ele apenas nas almas dos homens, e para com os belos jovens, mas também nas outras partes, e para com muitos outros objetos, nos corpos de todos os outros animais, nas plantas da terra e por assim dizer em todos os seres é o que creio ter constatado pela prática da medicina, a nossa arte; grande e admirável é o deus, e a tudo se estende ele, tanto na ordem das coisas humanas como entre as divinas. Ora, eu começarei pela medicina a minha fala, a fim de que também homenageemos a arte. A natureza dos corpos, com efeito, comporta esse duplo Amor; o sadio e o mórbido são cada um reconhecidamente um estado diverso e dessemelhante, e o dessemelhante deseja e ama o dessemelhante. Um portanto é o amor o que
é sadio, e outro no que é mórbido. E e ntão, assim como há pouco Pausânias dizia que aos homens bons é belo aquiescer, e aos intemperantes é feio, também nos próprios corpos, aos elementos bons de cada corpo e sadios é belo o aquiescer e se deve, e a isso é que se dá o nome de medicina, enquanto que aos maus e mórbidos é feio e se deve contrariar, se se vai ser um técnico. É com efeito a medicina, para falar em resumo, a ciência dos fenômenos de amor, próprios ao corpo, no que se refere à repleção e à evacuação, e o que nestes fenômenos reconhece o belo amor e o feio é o melhor médico; igualmente, aquele que faz com que eles se transformem, de modo a que se adquira um em vez do outro, e que sabe tanto suscitar amor onde não há mas deve haver, como eliminar quando há, seria um bom profissional. É de fato preciso ser capaz de fazer com que os elementos mais hostis no corpo fiquem amigos e se amem mutuamente. Ora, os mais hostis são os mais opostos, como o frio ao quente, o amargo ao doce, o seco ao úmido, e todas as coisas desse tipo; foi por ter entre elas suscitado amor e concórdia que o nosso ancestral Asclépio, como dizem estes poetas aqui e eu acredito, constituiu a nossa arte. A medicina portanto, como estou dizendo, é toda ela dirigida nos traços deste deus, assim como também a ginástica e a agricultura; e quanto à música, é a todos evidente, por pouco que se lhe preste atenção, que ela se comporta segundo esses mesmos princípios, como provavelmente parece querer dizer Heráclito, que aliás em sua expressão não é feliz. O um, diz ele com efeito, "discordando em si mesmo, consigo mesmo concorda, como numa harmonia de arco e lira". Ora, é grande absurdo dizer que uma harmonia está discordando ou resulta do que ainda está discordando. Mas talvez o que ele queria dizer era o seguinte, que do agudo e do grave, antes discordantes e posteriormente combinados, ela resultou, graças à arte musical. Pois não é sem dúvida do agudo e do grave ainda em discordância que pode resultar a harmonia; a harmonia é consonância, consonância é uma certa combinação — e combinação de discordantes, enquanto discordam, é impossível, e inversamente o que discorda e não combina é impossível harmonizar — assim como também o ritmo, que resulta do rápido e do lento, antes dissociados e depois combinados. A combinação em todos esses casos, assim como lá foi a medicina, aqui é a música que estabelece, suscitando amor e concórdia entre uns e outros; e assim, também a música, no tocante à harmonia e ao ritmo, é ciência dos fenômenos amorosos. Aliás, na própria constituição de uma harmonia e de um ritmo não é nada difícil reconhecer os sinais do amor, nem de algum modo há então o duplo amor; quando porém for preciso utilizar para o homem uma harmonia ou um ritmo, ou fazendo-os, o que chamam composição, ou usando corretamente da melodia e dos metros já constituídos, o que se chamou educação, então é que é difícil e que se requer um bom profissional. Pois de novo revém a mesma idéia, que aos homens moderados, e para que mais moderados se tornem os que ainda não sejam, deve-se aquiescer e conservar o seu amor, que é o belo, o celestial, o Amor da musa Urânia; o outro, o de Polímnia, é o popular, que com precaução se deve trazer àqueles a quem se traz, a fim de que se colha o seu prazer sem que nenhuma intemperança ele suscite, tal como em nossa arte é uma importante tarefa o servir-se convenientemente dos apetites da arte culinária, de modo a que sem doença se colha o seu prazer. Tanto na música então, como na medicina e em todas as outras artes, humanas e divinas, na medida do possível, deve-se conservar um e outro amor; ambos com efeito nelas se encontram. De fato, até a constituição das estações do ano está repleta desses dois amores, e quando se tomam de um moderado amor um pelo outro os contrários de que há pouco eu falava, o quente e o frio, o seco e o úmido, e adquirem uma harmonia e uma mistura razoável, chegam trazendo bonança e saúde aos homens, aos outros animais e às plantas, e nenhuma ofensa fazem; quando porém é o Amor casado com a violência que se torna mais forte nas estações do ano, muitos estragos ele faz, e ofensas. Tanto as pestes, com efeito, costumam resultar de tais causas, como também muitas e várias doenças nos animais como nas plantas; geadas, granizos e alforras resultam, com efeito, do excesso e da intemperança mútua de tais manifestações do amor, cujo conhecimento nas translações dos astros e nas estações do ano chama-se astronomia. E ainda mais, não só todos os sacrifícios, como também os casos a que preside a arte divinatória — e estes são os que constituem o comércio recíproco dos deuses e dos homens — sobre nada mais versam senão sobre a conservação e a cura do Amor. Toda impiedade, com efeito, costuma advir, se ao Amor moderado não se aquiesce nem se lhe tributa honra e respeito em toda ação, e sim ao outro, tanto no tocante aos pais, vivos e mortos, quanto aos deuses; e foi nisso que se assinou à arte divinatória o exame dos amores e sua cura, e assim é que por sua vez é a arte divinatória produtora de amizade entre deuses e homens, graças ao conhecimento de todas as manifestações de amor que, entre os homens, se orientam para a justiça divina e a piedade.










