
O caso Wagner: um problema para músicos; Nietzsche contra Wagner: Dossiê de um Psicólogo. Trad., notas e posfácio P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
Nietzsche contra Wagner (Excertos - pp. 49;57-60;66-67;71-73)
Prólogo
Os capítulos que se seguem foram todos selecionados, não sem cautela, entre os meus escritos anteriores – alguns remontam a 1877 -, e retocados aqui e ali, sobretudo encurtados. Lidos, um após o outro não deixarão dúvida acerca de Richard Wagner e de mim: nós somos antípodas. Outras coisas ficarão claras: por exemplo, que este é um ensaio para psicólogos, mas não para alemães... Tenho leitores em toda parte, em Viena, em São Petersburgo, em Copenhague, Estocolmo, Paris, Nova Iorque – só não os tenho nessa Terra Chata da Europa, a Alemanha... E eu teria igualmente umas palavras a dizer no ouvido dos italianos, a quem eu amo, tanto quanto... Quosque tandem, Crispi... Triple aliance: com o Reich um povo inteligente fará sempre uma mésalliance...
Friedrich Nietzsche
Turim, Natal de 1888
Uma Música sem Futuro
Entre todas as artes que crescem no solo de determinada cultura, a música aparece como a última planta, talvez porque é a mais interior e, portanto, a que chega mais tarde – no outono, no fenecer da cultura que lhe é própria. Somente na arte dos mestres holandeses a alma da Idade Média cristã achou sua ressonância derradeira – sua arquitetura sonora é a irmã póstuma, porém legítima, do gótico. Somente na música de Händel ressoou o melhor da alma de Lutero e dos que lhe eram aparentados, o traço judaico-heroico que deu à Reforma um traço de grandeza – o Velho Testamento tornado música, não o Novo. Somente Mozart resgatou a época de Luís XIV e a arte de Racine e de Claude Lorrain em ouro sonante, somente na música de Beethoven e de Rossini o século XVIII cantou derradeiramente, o século do entusiasmo, dos ideais partidos e da felicidade fugaz. Toda música vera, toda música original é canto de cisne. – Talvez a nossa música recente, embora domine e anseie dominar, tenha tão-só um breve período à sua frente: pois ela se originou de uma cultura cujo solo afunda rapidamente – uma cultura dentro em pouco afundada. Um certo catolicismo do sentimento e um gosto em alguma natureza e desnatureza velha e nativa, chamada de “nacional”, são seus pressupostos. A apropriação que fez Wagner de velhas sagas e canções, em que o preconceito erudito aprendera a enxergar algo germânico por excelência – hoje nós rimos disso -, a revivescência desses monstros escandinavos, dotando-os de avidez por sensualidade arrebatada e dessensualização – todo esse dar e tomar de Wagner em relação a material, figuras, paixões e nervos, expressa claramente o espírito de sua música também, supondo que esta, como toda música, não saiba falar de si mesma sem ambiguidade: pois a música é uma mulher... A respeito disso, não devemos nos deixar enganar pelo fato de no instante vivermos precisamente a reação no interior da reação. A era das guerras nacionais, do marítimo ultramontano, todo esse caráter entreatos da presente situação da Europa, pode realmente proporcionar a uma arte como a de Wagner uma glória repentina, sem com isso lhe garantir um futuro. Os alemães mesmo não têm futuro...
Nós, Antípodas
Talvez seja lembrado, ao menos entre meus amigos, que de início me lancei sobre esse mundo moderno com alguns erros e superestimações, e em todo caso, com esperanças. Eu compreendi – quem sabe a partir de que vivências pessoais? – o pessimismo filosófico do século XIX como sintoma de uma mais elevada força de pensamento, de uma mais vitoriosa abundância de vida, do que a que tivera expressão na filosofia de Hume, de Kant e de Hegel – eu vi no conhecimento trágico o mais belo luxo de nossa cultura, sua mais preciosa, mais nobre, mais perigosa espécie de esbanjamento, mas ainda seu luxo permitido, graças à sua opulência. Do mesmo modo, interpretei a música de Wagner como a expressão de uma potência dionisíaca da alma, nela acreditei ouvir o terremoto com que uma força primordial da vida, há muito represada, finalmente se desafoga, indiferente à possibilidade de que tudo o que hoje se denomina cultura comece a tremer. Vê-se o que entendi mal, vê-se também com o que presenteei Wagner e Schopenhauer – comigo mesmo... Toda arte, toda filosofia pode ser vista como remédio e socorro da vida em crescimento ou em declínio: elas pressupõem sempre sofrimento e sofredores. Mas existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de superabundância de vida, que querem uma arte dionisíaca, e desse modo uma compreensão e perspectiva trágica da vida – e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que requerem da arte e da filosofia silêncio, quietude, mar liso, ou embriaguez, entorpecimento, convulsão. Vingança sobre a vida mesma – a mais voluptuosa espécie de embriaguez para aqueles assim empobrecidos!... A dupla necessidade destes corresponde Wagner, bem como Schopenhauer – eles negam a vida, eles a caluniam, e assim são meus antípodas. – Aquele mais rico em plenitude de vida, o deus e homem dionisíaco, pode permitir-se não só a visão do terrível e discutível, mas mesmo o ato terrível e todo luxo de destruição, decomposição, negação – nele o mal, sem sentido e feio, aparece como sendo permitido, como aparece na natureza permitido, em virtude de um excedente de forças geradoras, restauradoras, capazes de transformar todo deserto em exuberante pomar. Inversamente, o que mais sofre, o mais pobre de vida necessitaria ao máximo de brandura, paz e bondade – do que hoje se denomina humanidade – tanto no pensar como no agir, e, se possível, de um deus que é propriamente um deus para doentes, um salvador, assim como também da lógica, a compreensibilidade conceitual da existência até para idiotas – os típicos decadentes -, em sua, de uma certa estreiteza cálida e que afasta o medo, um encerrar-se em horizontes otimistas, que permite o embotamento... De tal maneira aprendi a conhecer gradualmente Epicuro, o oposto de um grego dionisíaco, assim como o cristão, que na realidade é somente uma espécie de epicúrio, e com o seu “bem-aventurado o que tem fé” leva o princípio do hedonismo o mais longe possível – muito além de toda retidão intelectual... Se em algo estou à frente dos psicólogos todos, é no fato de ter um olhar mais agudo para a difícil e insidiosa espécie da inferência regressiva, na qual se comete a maioria dos erros – a inferência que vai da obra ao autor, do ato ao agente, do ideal àquele que dele necessita, de todo modo de pensar e valorar à necessidade que por trás dele comanda. – Quanto aos artistas de todo gênero, utilizo-me agora da distinção fundamental: foi o ódio à vida ou o excesso de vida que aí se fez criativo? Em Goethe, por exemplo, foi o excesso; em Flaubert est toujours haïssable, l’homme n’est rien, l’oeuvre est tout [Flaubert é sempre odiável, o homem não é nada, a obra é tudo]... Ele torturou a si mesmo ao escrever, assim como Pascal se torturou ao pensar – ambos sentiam de modo não egoísta... “Ausência de si” – o princípio-décadence, a vontade de fim, tanto na arte como na moral. –
Como me libertei de Wagner
Foi já no verão de 1876, durante o primeiro Festival, que me despedi interiormente de Wagner. Eu não tolero nada ambíguo; depois que Wagner mudou-se para a Alemanha, ele transigiu passo a passo com tudo o que desprezo – até mesmo o antissemitismo... Era de fato o momento para dizer adeus: logo tive a prova disso. Richard Wagner, aparentemente o mais triunfante, na verdade um décadent desesperado e fenecido, sucumbiu de repente, desamparado e alquebrado, ante a cruz cristã... Nenhum alemão teve, para esse terrível espetáculo, olhos no rosto e simpatia na consciência? Fui eu o único que dele – sofreu? – Em suma, o inesperado evento foi como um relâmpago de clareza sobre o lugar que eu havia deixado – e deu-me também aquele calafrio posterior, que sentimos após passar inconscientemente por um enorme perigo. Prosseguindo só por meu caminho, eu tremia: pouco tempo depois estava doente, mais que doente, cansado – cansado pela inevitável desilusão com tudo o que restava para nos entusiasmar, a nós, homens modernos; com a força, o trabalho, esperança, juventude, amor em toda parte esbanjados; cansado pelo nojo a toda a mentiragem e amolecimento idealista da consciência, que novamente triunfara sobre um dos mais valentes; cansado enfim, em medida não menor, pelo aborrecimento de uma implacável suspeita – de que a partir de então eu estava condenado a desconfiar mais profundamente, desprezar mais profundamente, ser só mais profundamente do que nunca. Pois eu não tivera ninguém a não ser Wagner. Estava sempre condenado aos alemães...
Epílogo
1.Frequentemente me perguntei se não tenho um débito mais profundo com os anos mais difíceis de minha vida do que com outros quaisquer. Minha natureza íntima me ensina que tudo necessário, visto do alto e no sentido de uma grande economia, é também vantajoso em si – deve-se não apenas suportá-lo, deve-se amá-lo... Amor fati [amor ao destino]: eis minha natureza íntima. – Quanto a minha longa enfermidade, não lhe devo indizivelmente mais do que a minha saúde? Devo-lhe uma mais elevada saúde, uma que é fortalecida por tudo o que não a destrói! – Devo-lhe também minha filosofia... Apenas a grande dor é o extremo liberador do espírito, enquanto mestre da grande suspeita, que de todo U faz um X, um autêntico e verdadeiro X, isto é, a antepenúltima letra... Apenas a grande dor, a longa, lenta dor, em que somos queimados com madeira verde, por assim dizer, a dor que não tem pressa – obriga a nós, filósofos, a alcançar nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda benevolência, tudo o que encobre, que é brando, mediano, tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que uma tal dor “aperfeiçoe”: mas sei que nos aprofunda... Seja que aprendemos a lhe propor nosso orgulho, nosso escárnio, nossa força de vontade, fazendo como o índio que, embora supliciado, obtém desforra de seu torturador mediante o veneno de sua língua; seja que ante a dor nos retiramos para o Nada, para o mudo, rígido, surdo entregar-se, esquecer-se, apagar-se: desses longos e perigosos exercícios de autodomínio retornamos uma outra pessoa, com algumas interrogações mais – sobretudo com a vontade de doravante questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente, maldosamente, silenciosamente do que até hoje foi questionado nesta Terra... A confiança na vida se foi; a vida mesma tornou-se um problema. – Mas não se creia que isso torne alguém necessariamente sombrio, uma coruja agourenta. Mesmo o amor à vida é ainda possível – apenas se ama diferente... – É o amor a uma mulher da qual se duvida...
2. Eis o mais estranho: temos depois um outro gosto – um segundo rosto. Desses abismos, também do abismo da grande suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais joviais, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que antes. Moral: não se é impunemente o espírito mais profundo de todos os milênios – mas também não sem recompensa... Darei agora uma amostra.
Oh, como lhe repugna agora a fruição, a grosseria, surda, parda fruição, tal como a entendem os fruidores, nossos “homens cultos”, nossos ricos governantes! Com que malícia escutamos agora o barulho de grande feira com que o homem “culto” e citadino se deixa violentar pela arte, livros e música até sentir “prazeres espirituais”, não sem ajuda de bebidas espirituais! Como agora nos fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora, e todas as suas aspirações ao excelso, elevado, empolado! Não, se nós, convalescentes, ainda precisamos de uma arte, é de uma outra arte – uma ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial, que como uma pura flama lampeje num céu limpo! Sobretudo: uma arte para artistas, somente para artistas! Nós nos entendemos melhor, depois, quanto ao que primeiramente se requer para isso, a serenidade, toda serenidade, meus amigos!... Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós, sabedores: oh, como hoje aprendemos a bem esquecer, a bem não-saber, como artistas!... E no tocante a nosso futuro: dificilmente nos acharão nas trilhas daqueles jovens egípcios que à noite tornam inseguros os templos, abraçam estátuas e querem expor à luz, desvelar, descobrir, tudo absolutamente que por boas razões é escondido. Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de “verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade – nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos... Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu... Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e “saber” tudo. Tout comprendre – c’est tout mépriser [Tudo compreender – é tudo desprezar]... “É verdade que Deus está em toda parte?”, perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” – um sinal para os filósofos!... Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões?... Talvez o seu nome, para falar grego, seja Baubo?... Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência! Esses gregos eram superficiais – por profundidade... E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso – gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso – artistas?...





