
O Caso Wagner: um problema para músicos; Contra Wagner: Dossiê de um Psicólogo. Trad., notas e posfácio de P. C. de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
O caso Wagner (Excertos - pp. 9;11-;16;18-26)
Prólogo
Vou me permitir um breve descanso. Não é pura malícia, se neste escrito faço o elogio de Bizet à custa de Wagner. Em meio a várias brincadeiras, apresento uma questão com que não se deve brincar. Voltar as costas a Wagner foi para mim um destino; gostar novamente de algo, uma vitória. Ninguém, talvez, cresceu tão perigosamente junto ao wagnerismo, ninguém lhe resistiu duramente, ninguém se alegrou tanto por livrar-se dele. Uma longa história! – Querem uma designação para ela? – Se eu fosse um moralista, quem sabe como a chamaria? Talvez superação de si. – Mas o filósofo não ama os moralistas... E também não ama as palavras bonitas...
Que exige um filósofo de si, em primeiro e em último lugar? Superar em si seu tempo, tornar-se “atemporal”. Logo, contra o que deve travar seu mais duro combate? Contra aquilo que o faz um filho de seu tempo. Muito bem! Tanto quanto Wagner, eu sou um filho desse tempo; quer dizer, um décadent: mas eu compreendi isso, e me defendi. O filósofo em mim se defendeu.
O que me ocupou mais profundamente foi o problema da décadence – para isso tive razões. “Bem e Mal” é apenas uma variante desse problema. Tendo uma vista treinada para os sinais de declínio, compreende-se também a moral – compreendemos o que se oculta sob os seus sagrados nomes e fórmulas de valor: a vida empobrecida, a vontade de fim, o grande cansaço. A moral nega a vida... Para uma tarefa assim, era-me necessária uma disciplina própria – tomar partido contra tudo doente em mim, incluindo Wagner, incluindo Schopenhauer, incluindo os modernos sentimentos de “humanidade”. – Um profundo alheamento, esfriamento, desalento face a tudo o que é temporal e temporâneo: e, como desejo maior, o olhar de Zaratustra, um olho que vê toda a realidade “homem” de uma tremenda distância – abaixo de si... Para um tal objetivo – que sacrifício não seria adequado? Que “superação de si?” que “negação de si”?
Minha maior vivência foi uma cura. Wagner foi uma de minhas doenças.
Não que eu deseje me mostrar ingrato a essa doença. Se nestas páginas eu proclamo a tese de que Wagner é danoso, quero do mesmo modo proclamar a quem, não obstante, ele é indispensável – ao filósofo. Outros poderão passar sem Wagner; mas o filósofo não pode ignorá-lo. Ele tem de ser a má consciência do seu tempo – para isso, precisa ter a sua melhor ciência. Mas onde encontraria ele um guia mais experimentado no labirinto da alma moderna, um mais eloquente perito da alma? Através de Wagner, a modernidade fala de sua linguagem mais íntima: não esconde seu bem nem seu mal, desaprendeu todo pudor. E, inversamente, teremos feito quase um balanço sobre o valor do moderno, se ganharmos clareza sobre o bem e o mal em Wagner. – Eu entendo perfeitamente, se hoje músico diz: “Odeio Wagner, mas não suporto mais outra música”. Mas também compreenderia um filósofo que dissesse: “Wagner resume a modernidade. Não adiante, é preciso primeiro ser wagneriano...”
O caso Wagner
Carta de Turim, maio de 1888
ridendo dicere severum...
1. Ontem – vocês acreditarão? Ouvi pela vigésima vez a obra-prima de Bizet. Fiquei novamente até o fim, com suave devoção, novamente não pude fugir. Esse triunfo sobre minha impaciência me espanta. Como uma obra assim aperfeiçoa! Tornamo-nos nós mesmos “obra-prima”. Realmente, a cada vez que ouvi Carmen, eu parecia ser mais filósofo, melhor filósofo do que normalmente me creio: tornando-me tão indulgente, tão feliz, indiano, sedentário... Cinco horas sentado: primeira etapa da santidade! – Posso acrescentar que a orquestração de Bizet é quase a única que ainda suporto? Essa outra orquestração atualmente em voga, a wagneriana, brutal, artificial e “inocente” ao mesmo tempo, e que assim fala simultaneamente aos três sentidos da alma moderna – como me é prejudicial essa orquestração wagneriana! Eu a denomino “siroco”. Um suor desagradável me cobre de repente. O meu tempo bom vai embora.
Esta música me parece perfeita. Aproxima-se leve, sutil, com polidez. É amável, não transpira. “O que é bom é leve, tudo divino se move com pés delicados”: primeira sentença da minha estética. Esta música é maliciosa, refinada, fatalista: no entanto permanece popular – ela tem o refinamento de uma raça, não de um indivíduo. É rica. É precisa. Constrói, organiza, conclui: assim, é o contrário do pólipo na música, a “melodia infinita”. Alguém já ouviu num palco entonações mais dolorosamente trágicas? E a maneira como são obtidas! Sem caretas! Sem falsificação! Sem a mentira do grande estilo! – Por fim: esta música trata o ouvinte como pessoa inteligente e até como músico – e também nisso é o oposto de Wagner, que, seja o que mais for, era o gênio mais descortês do mundo (Wagner nos trata como se -, ele repete uma coisa com tal frequência que esperamos – que acreditamos nela).
Mais ainda: eu me torno um homem melhor, quando esse Bizet me persuade. E também um músico melhor, um ouvinte melhor. É possível se escutar ainda melhor? – Eu enterro os meus ouvidos sob essa música, eu ouço a sua causa. Parece-me presenciar a sua gênese – estremeço ante os perigos que acompanham alguma audácia, arrebatam-me os acasos felizes de que Bizet é inocente. – E, coisa estranha, no fundo não penso nisso, ou não sei o quanto penso nisso. Pois nesse ínterim me passam bem outros pensamentos pela cabeça. Já se percebeu que a música faz livre o espírito? Que dá asas ao pensamento? Que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se torna músico? O céu cinzento da abstração atravessado por coriscos; a luz forte o bastante para se verem as filigranas; os grandes problemas se dispondo à apreensão; o mundo abarcado com a vista, como de um monte. – Acabo de definir pathos filosófico. – E de súbito caem-me respostas no colo, uma pequena chuva de gelo e sapiência, de problemas resolvidos... Onde estou? – Bizet me faz fecundo. Tudo o que é bom me faz fecundo. Não tenho outra gratidão, nem tenho outra prova para aquilo que é bom.
3.
Já perceberam como essa música me torna melhor? - Il faut méditerraniser la musique [É preciso mediterranizar a música]: tenho razões para esta fórmula (Além do bem e do mal, § 255). O retorno à natureza, a saúde, alegria, juventude, virtude! – E no entanto eu fui um dos mais corruptos wagnerianos... Eu fui capaz de levar Wagner a sério... Ah, esse velho feiticeiro! Como nos iludiu! A primeira coisa que a sua arte nos oferece é uma lente de aumento: olhando por ela, não se acredita nos próprios olhos – tudo fica grande, até Wagner fica grande... Que astuta cascavel! Toda a vida ela nos falou ruidosamente em “dedicação”, “fidelidade”, “pureza”, como um elogio à castidade retirou-se do mundo depravado” – E nós acreditamos...
Mas vocês não me ouvem? Preferem o problema de Wagner ao de Bizet? Também eu não o subestimo, ele tem seu fascínio. O problema da redenção é sem dúvida um problema respeitável. Sobre nenhuma outra coisa Wagner refletiu tão profundamente: sua ópera é a ópera da redenção. Em Wagner, há sempre alguém que deseja ser redimido: ora um homenzinho, ora uma senhorita – este é o problema dele. – E como varia ricamente o seu leitmotiv! Que digressões raras e profundas! Quem, senão Wagner, nos ensinaria que a inocência redime de preferência pecadores interessantes? (O caso Tannhäuser). Ou que mesmo o judeu errante é redimido, torna-se sedentário, quando se casa? (No Navio Fantasma). Ou que velhas mulheres depravadas preferem ser redimidas por jovens castos? (O caso de Kundry). Ou que donzelas bonitas preferem a redenção por um cavaleiro que seja wagneriano? (O caso dos Mestres cantores). Ou que mulheres casadas gostam de ser redimidas por um cavaleiro? (Caso de Isolda). Ou que o “velho Deus”, depois de haver se comprometido moralmente em todo sentido, é finalmente redimido por um livre-pensador e moralista? (Caso do Anel). Detenham-se em admirar especialmente esta última, profunda percepção! Vocês a compreendem? Eu – eu me guardo de compreendê-la... Que se possa extrair outros ensinamentos das obras mencionadas, é algo que eu estaria mais disposto a provar que a negar. Que um balé wagneriano possa conduzir alguém ao desespero – e à virtude! (Novamente o caso de Tannhäuser). Que possa ter as piores consequências o fato de não ir para a cama no momento certo (novamente o caso de Lohengrin). Que não se deve jamais saber exatamente com quem se casou (pela primeira vez, o caso de Lohengrin). – Tristão e Isolda glorifica o marido perfeito que em certo caso tem apenas uma pergunta: “Mas por que não me disseram isso antes? Tão simples!” Resposta: “Isso não te posso dizer; e o que perguntas, não pode jamais saber.”
Lohengrin contém uma solene proscrição da busca e do questionamento. Wagner defende assim a ideia cristã, “Deves crer e precisas crer”. Ser científico é um crime contra o que é mais elevado e mais sagrado... O Navio fantasma prega o sublime ensinamento que a mulher faz assentar o mais inquieto dos homens, ou, em linguagem wagneriana, o “redime”. Aqui nos permitimos uma pergunta. Supondo isto verdadeiro, seria também desejável? – O que acontece ao “judeu errante” que uma mulher adora e faz assentar? Ele apenas deixa de se eterno; ele se casa, e não mais nos interessa. – Traduzido para a realidade: o perigo dos artistas, dos gênios – pois estes são os “judeus errantes” – está na mulher: as mulheres adoradoras são sua ruína. Quase nenhum tem caráter bastante para não ser arruinado (“redimido”), ao se sentir tratado como deus – logo ele condescende à mulher. O homem é covarde diante do eterno-feminino: bem o sabem as femeazinhas. – Em muitos casos do amor feminino, e talvez justamente nos mais famosos, o amor é apenas um parasitismo refinado, um aninhar-se numa alma alheia, por vezes até numa carne alheia – ah, e sempre à custa do “hospedeiro”!
Sabe-se o destino de Goethe na Alemanha solteirona e moralmente azeda. Ele foi repulsivo para os alemães, e teve admiradores francos apenas entre mulheres judias. Schiller, o “nobre” Schiller, que encheu os ouvidos alemães com grandes palavras – este lhes foi caro ao coração. O que censuravam eles Goethe? O “monte de Vênus”, e que tivesse escrito os Epigramas venezianos. Klopstock foi o primeiro a lhe pregar um sermão; houve um tempo em que Herder, ao falar de Goethe, usava de preferência a palavra “Príapo”. Mesmo o Wilhelm Meister era tido apenas como sintoma de declínio, “caída na mendicância” moral. Nele, a “ménagerie [coleção] de animais mansos”, a “baixeza” do herói, enfureciam Niebuhr, por exemplo, que afinal irrompe numa queixa que Biterolf poderia cantar: “Nada pode causar impressão mais dolorosa do que um grande espírito que se desposa de suas asas e busca sua virtuosidade em algo bastante inferior, ao renunciar ao sublime”... Mas sobretudo as virgens sublimes se indignaram: cada pequenina corte, toda espécie de “Wartburg” na Alemanha fazia o sinal-da-cruz para Goethe, para o “espírito impuro” de Goethe. – Essa é a história que Wagner pôs em música. Ele redime Goethe, não há dúvida; mas de maneira a, com argúcia, simultaneamente tomar o partido das virgens sublimes. Goethe é salvo: uma oração o salva, uma virgem sublime o atrai para cima...
- O que Goethe teria pensado de Wagner? – Uma vez ele se perguntou acerca do perigo que ameaçava os românticos: a fatalidade romântica. Sua resposta: “Sufocar com a ruminação de absurdos morais e religiosos”. Numa palavra: Parsifal - - O filósofo junta um epílogo: Santidade – talvez a última coisa que o povo e as mulheres ainda conseguem ver, dos valores mais altos; o horizonte do ideal para todos os míopes por natureza. Para os filósofos, no entanto, uma simples recusa de compreensão, como todo horizonte, uma espécie de portão fechado onde o seu mundo apenas começa – o seu perigo, seu ideal, sua aspiração... Para dizê-lo de modo mais cortês: La philosophie ne suffit pas au grand nombre. Il lui faut la sainteté [A filosofia não basta para a multidão. Ela necessita da santidade].
4. Agora contarei a história do Anel. O seu lugar é aqui. Também é uma história de redenção: somente que desta vez é Wagner o redimido. – Durante meia vida Wagner acreditou na Revolução, como só um francês podia acreditar. Ele a procurou na escrita rúnica do mito, e pensou encontrar em Siegfried o revolucionário típico. – “De onde vêm as desgraças de mundo?”, perguntou a si mesmo. Dos “velhos contratos”, respondeu, como todos os ideólogos da Revolução. Mas claramente: de costumes, leis, morais, instituições, de tudo aquilo sobre o qual repousa o velho mundo, a velha sociedade?” Somente declarando guerra aos “contratos” (à tradição, à moral). Isto é o que faz Siegfried. Ele começa cedo, bem cedo: o seu nascimento é uma declaração de guerra à moral – ele vem ao mundo de um adultério, de um incesto... Não é da lenda, é de Wagner a invenção desse traço radical; neste ponto ele corrigiu a lenda... Siegfried continua tal como iniciou: segue apenas o primeiro impulso, lança por terra tudo recebido, toda reverência, todo temor. O que o aborrece, abate com a espada. Ataca desrespeitosamente as velhas divindades. Sua empresa maior, porém, consiste em emancipar a mulher – “salvar Brunilda”... Siegfried e Brunilda; o sacramento do amor livre; o advento da era dourada; o crepúsculo de ídolos da velha moral – o infortúnio foi abolido... Por longo tempo a nave de Wagner seguiu contente esse curso. Sem d´vida, Wagner buscava nele o seu mais elevado objetivo. – Que aconteceu então? Um acidente. A nave foi de encontro a um recife; Wagner encalhou. O recife era a filosofia schopenhaueriana; Wagner estava encalhado numa visão de mundo contrária. O que havia ele posto em música? O otimismo. Wagner se envergonhou. Além disso, um otimismo para o qual Schopenhauer havia criado um adjetivo mau – o otimismo infame. Ele envergonhou-se novamente. Meditou por longo tempo, sua situação parecia desesperada... Enfim vislumbrou uma saída: o recife no qual naufragara, e se ele o interpretasse como objetivo, como intenção oculta, como verdadeiro sentido de sua viagem? Naufragar ali – isso era também uma meta. Bene navigavi, cum naufragium feci... [Naveguei bem, ao naufragar]. E ele traduziu o Anel em schopenhaueriano. Tudo vai torto, tudo afunda, o novo mundo é tão ruim quanto o velho – o nada, a Circe indiana, nos acena... Brunilda, que segundo a antiga intenção se despediria com uma canção de louvor ao amor livre, deixando ao mundo esperanças de uma utopia socialista, com a qual “tudo fica bom”, agora tem outra coisa a fazer. Deve primeiro estudar Schopenhauer, tem de pôr em versos o quarto livro do Mundo como vontade e representação. Wagner estaria redimido... Em toda seriedade, esta foi uma redenção. O benefício que Wagner deve a Schopenhauer é imensurável. Somente o filósofo da décadence revelou o artista da décadence a si mesmo...
6. O artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse décadent nos estraga a saúde – e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano? Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca – ele tornou a músico doente –
Um típico décadent, que se sente necessário com seu gosto corrompido, que o reivindica como um gosto superior, que sabe pôr em relevo sua corrupção, como lei, como progresso, como realização.
E não lhe opõem resistência. Seu poder de sedução cresce desmesuradamente, nuvens de incenso o rodeiam, o mal-entendido a seu respeito chama-se “Evangelho” – ele não se limitou a convencer somente os pobres de espírito!
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Wagner é uma grande corrupção para a música. Ele percebeu nela um meio para excitar nervos cansados – com isso tornou a música doente. Não é pouco seu talento na arte de aguilhoar os totalmente exaustos, de chamar à vida os semimortos. Ele é o mestre do passe hipnótico, mesmo os mais fortes ele derruba como touros. O sucesso de Wagner – seu sucesso junto aos nervos, e em consequência junto às mulheres – transformou o mundo dos músicos ambiciosos em seguidores da sua arte oculta. E não só os ambiciosos, também os sagazes... Hoje se faz dinheiro apenas com música doente; nossos grandes teatros vivem de Wagner.
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Meus amigos, diria, troquemos algumas palavras. É mais fácil fazer música ruim do que música boa. E se além disso fosse também mais vantajoso? Mais efetivo, convincente, entusiasmante, seguro? Mais wagneriano? – Pulchrum est paucorum hominum [O belo pertence a poucos]. Mau! Nós compreendemos o latim, e compreendemos também nosso interesse. O belo tem seus espinhos: nós o sabemos. Logo, para que beleza? Por que não o grandioso, o elevado, o gigantesco, o que move as massas? – Repito: é mais fácil ser gigantesco do que belo; nós o sabemos...
Conhecemos as massas, conhecemos o teatro. Os melhores entre os que assistem, jovens alemães, Siegfried de cornos e outros wagnerianos, necessitam do que é elevado, profundo, irresistível. Disso nós somos capazes. E os demais que também assistem, os cretinos da cultura, os pequenos esnobes, os eternamente femininos, os de feliz digestão, em suma, o povo – necessitam igualmente do elevado, do profundo, do irresistível. Tudo tem a mesma lógica. “Quem nos arrebata é forte; quem nos eleva é divino; quem nos faz intuir é profundo.” – Decidamos, caros músicos: nós queremos arrebata-los, queremos elevá-los, queremos fazê-los intuir. Disso tudo ainda somos capazes. (...)
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Falando na linguagem do mestre: infinitude, mas sem melodia.
No que toca a arrebatar as pessoas, isto já se relaciona com a fisiologia. Estudemos sobretudo os instrumentos. Alguns deles convencem até as entranhas (- eles abrem as portas, para falar como Händel), outros encantam a medula espinhal. A cor do som é decisiva; o que soa é indiferente. É esse ponto que devemos refinar! Por que nos desperdiçamos? Sejamos, no timbre, característicos até a loucura! Nosso espírito ganhará o crédito, se acabemos com eles, utilizemos raio e trovão – isto arrebata...
Sobretudo a paixão arrebata. – Vamos nos entender acerca da paixão. Nada é mais barato que a paixão! Pode-se dispensar todas as virtudes do contraponto, nada é preciso aprender – a paixão sempre se sabe! A beleza é difícil: cuidado com a beleza!... Mais ainda com a melodia! Injuriemos, meus amigos, injuriemos, se de fato vemos como sério nosso ideal, injuriemos a melodia! Nada mais perigoso que uma bela melodia! Nada corrompe mais certamente o gosto! Estamos perdidos, caros amigos, se voltam a ser amadas as belas melodias!
Princípio básico: a melodia é imoral. Demonstração: Palestrina. Aplicação prática: Parsifal. A ausência de melodia chega a santificar...
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Em Wagner se encontra o início da alucinação: não de sons, mas de gestos. Ele busca então a semiótica de sons para os gestos. Querendo admirá-lo, observemo-lo a trabalhar nisso: como separa, como obtém pequenas unidades, como as anima, lhes dá relevo e as torna visíveis. Mas aqui se esgota sua força: o resto nada vale. Como é pobre, leigo e canhestro o seu modo de “desenvolver”, sua tentativa de fazer entrelaçar o que não se teceu naturalmente! Suas mentiras lembram nisso as dos frères Goncourt, que em geral são próximos do estilo de Wagner: sente-se quase compaixão por tamanha escassez. O fato de Wagner travestir em um princípio a sua incapacidade de criar formas orgânicas, o fato de ele decretar um “estilo dramático”, onde decretamos apenas a sua inaptidão para um estilo qualquer, corresponde a um ousado costume que sempre o acompanhou: ele estabelece um princípio onde lhe falta uma faculdade (- à diferença do velho Kant, diga-se de passagem, que amava uma outra ousadia: estabelecer no homem uma “faculdade”, onde a ele, Kant, faltava um princípio...). Repetindo: Wagner é admirável e encantador somente na invenção do mínimo, na criação do detalhe – nisso terá toda a razão quem o proclamar um mestre de primeira ordem, nosso maior miniaturista da música, que num espaço mínimo concentra uma infinitude de sentido e doçura. Sua riqueza de cores, de penumbras, de segredos da luz agonizante, vicia de tal modo, que em seguida os outros músicos parecem demasiado robustos. – Se querem me dar crédito, não se deveria julgar Wagner por aquilo que hoje agrada nele. Isso foi inventado para convencer as massas, diante disso nos sobressaltamos, como à vista de um afresco demasiado impudente. Que importância tem para nós a exasperante brutalidade da abertura Tannhäuser? Ou o circo da Vaquíria? Tudo o que dá música de Wagner se tornou popular, também fora do teatro, é de gosto dúbio e corrompe o gosto. A marcha de Tannhäuser parece-me suspeita de bonomia; a abertura do Navio fantasma é algum barulho por nada; o prelúdio de Lohengrin deu o primeiro exemplo, um tanto insidioso, um tanto evidente, de como hipnotizar também com a música (não me agrada a música cuja ambição não vai além de persuadir os nervos). Mas, não considerando o Wagner magnetizador e pintor de afrescos, há ainda um outro Wagner, que acumula pequenas preciosidades: nosso grande melancólico da música, cheio de olhares, branduras e palavras de consolo que ninguém anunciara, o mestre nos tons de uma felicidade sombria e lânguida... Um léxico das mais íntimas palavras de Wagner, pequenas coisas de cinco a dez compassos, pura música que ninguém conhece... Wagner tinha a virtude dos décadents, a compaixão.
8. (...)
Wagner não era músico por instinto. Ele o demonstrou ao abandonar toda lei e, mais precisamente, todo estilo na música, para dela fazer o que ele necessitava, uma retórica teatral, um instrumento da expressão, do reforço dos gestos, da sugestão, do psicológico-pitoresco. Nisso podemos tê-lo como inventor e inovador de primeira ordem – ele aumentou desmesuradamente a capacidade de expressão da música: ele é o Victor Hugo da música como linguagem. Sempre com o pressuposto de se ter como válido que a música possa, em dadas circunstâncias, não ser música, porém linguagem, instrumento, ancilla dramaturgica [criada da dramaturgia]. A música de Wagner, sem proteção do gosto teatral – um gosto muito tolerante -, é simplesmente música ruim, talvez a pior que jamais se tenha feito. Quando um músico não consegue contar até três, torna-se “dramático”, torna-se wagneriano...
Wagner praticamente descobriu que magia se pode exercer ainda com uma música decomposta e, por assim dizer, tornada elementar. Sua consciência disso é quase inquietante, tal como sua percepção instintiva de não carecer das leis superiores, do estilo. O elementar basta – som, movimento, cor, em suma, a sensualidade da música. Wagner não calcula jamais como músico, a partir de alguma consciência musical: ele quer o efeito, nada senão o efeito. E conhece aquilo sobre o qual quer agir! – Nisso ele é tão inconsiderado como Schiller, como todo homem de teatro, e possui o mesmo desprezo pelo mundo que tem a seus pés!... Alguém é ator pelo fato de ter uma percepção à frente dos outros homens: o que deve ter efeito de verdade não pode ser verdadeiro. Esta frase foi dita por Talma” ela contém toda a psicologia do ator, ela contém – não duvidemos! – também a sua moral. A música de Wagner nunca é verdadeira.
- Mas é tida como verdadeira: e assim tudo está em ordem.
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