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O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Trad., notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

(Excertos - pp. 42-51;96-108;123-130;139-144)

 

 

Seção 5

Aproximamo-nos agora da verdadeira meta de nossa investigação, que visa ao conhecimento do gênio apolíneo-dionisíaco e de suas obras de arte ou, pelo menos, à compreensão intuitiva do mistério dessa união. Neste ponto perguntamos agora, de imediato, onde se faz notar primeiro, no mundo helênico, esse novo germe que se desenvolveu em seguida até chegar à tragédia e ao ditirambo dramático. A tal respeito, a própria Antiguidade nos dá uma explicação figurada, quando coloca lado a lado, em esculturas, pedras gravadas etc., como progenitores e porta-archotes da poesia grega HOMERO e ARQUÍLOCO, com o sentimento seguro de que somente estes dois devem ser considerados como naturezas inteiramente originais, das quais um rio de fogo se derramou sobre todo o mundo helênico posterior. Homero, o encanecido sonhador imerso em si mesmo, o tipo do artista naïf, apolíneo, fita agora estupefato a cabeça apaixonada de Arquíloco, o belicoso servidor das Musas que é selvagemente tangido através da existência: e a estética moderna soube apenas acrescentar interpretativamente que aqui, ao artista "objetivo", se contrapõe   o    primeiro   artista  "subjetivo".  A  nós serve-se   pouco   com  essa interpretação,  pois  só

conhecemos o artista subjetivo como mau artista e exigimos em cada gênero e nível da arte, primeiro e acima de tudo, a submissão do subjetivo, a libertação das malhas do "eu" e o emudecimento de toda a apetência e vontade individuais, sim, uma vez que sem objetividade, sem pura contemplação desinteressada, jamais podemos crer na mais ligeira produção verdadeiramente artística. Por isso nossa estética deve resolver antes o problema de como o poeta "lírico" é possível enquanto artista: ele que, segundo a experiência de todos os tempos, sempre diz "eu" e trauteia diante de nós toda a escala cromática de suas paixões e de seus desejos. Precisamente esse Arquíloco nos assusta, ao lado de Homero, com o grito de seu ódio e de seu escárnio, pela ébria explosão de seus apetites; com isso, não é ele o primeiro artista a ser chamado de subjetivo, o verdadeiro não-artista? De onde então vem a reverência que demonstrou para com tal poeta precisamente o oráculo délfico, o lar da arte “objetiva”, em sentenças das mais singulares?

 

Acerca do processo de seu poetar, SCHILLER ofereceu-nos alguma luz através de uma observação psicológica, que se afigurava a ele próprio inexplicável, mas não problemática; ele confessou efetivamente ter tido ante si e em si, como condição preparatória do ato de poetar, não uma série de imagens, com ordenada causalidade dos pensamentos, mas antes um estado de ânimo musical ("O sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e determinado; este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a idéia poética"). Se a isso juntarmos, agora, o mais importante fenômeno de toda a lírica antiga, a união, sim, a identidade, em toda a parte considerada natural, do lírico com o músico - diante da qual a nossa lírica moderna parece a estátua de um deus sem cabeça -, poderemos então, com base em nossa metafísica estética anteriormente exposta, explicar da seguinte maneira o caso do poeta lírico. Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo, denominada com justiça de repetição do mundo e de segunda moldagem deste: agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. Aquele reflexo afigura! e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na aparência, gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado. O artista já renunciou à sua subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela contradição e aquela dor primordiais, juntamente com o prazer primigênio da aparência. O "eu" do lírico soa portanto a partir do abismo do ser: sua "subjetividade" , no sentido dos estetas modernos, é uma ilusão. Quando Arquíloco, o primeiro lírico dos gregos, manifesta o seu amor furioso e, ao mesmo tempo, o seu desprezo pelas filhas de Licambes, não é a sua paixão que dança diante de nós em torvelinho orgiástico: vemos Dionísio e as Mênades, vemos o embriagado entusiasta Arquíloco imerso em sono profundo - tal como Eurípides no-lo descreve em As bacantes, em alto prado alpestre, ao sol do meio-dia -: então Apolo se aproxima dele e o toca com o seu laurel. O encantamento dionisíaco-musical do dormente lança agora à sua volta como que centelhas de imagens, poemas líricos, que em seu mais elevado desdobramento se chamam tragédias e ditirambos dramáticos.

 

O artista plástico, e simultaneamente o épico, seu parente, está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta. O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico. Enquanto este último vive no meio dessas imagens, e somente nelas, com jubilosa satisfação e não se cansa de contemplá-las amorosamente em seus menores traços, enquanto até mesmo a imagem de Aquiles enraivecido é para ele apenas uma imagem cuja raivosa expressão desfruta com aquele seu prazer onírico na aparência - de tal modo que, graças a esse espelho da aparência, fica protegido da unificação e da fusão com suas figuras -, as imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer "eu": só que essa "eudade" [Ichbeit] não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única "eudade" verdadeiramente existente [seiende] e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser. Pensemos agora como ele, entre essas reproduções, avista também a si mesmo como não-gênio, isto é, seu " sujeito" [Subjekt] ,todo o tumulto de suas paixões e aspirações subjetivas dirigidas para uma determinada coisa que lhe parece real; se agora se nos afigurasse como se o gênio lírico e o não-gênio a ele vinculados fossem um só e como se o primeiro proferisse por si só aquela palavrinha "eu", então essa aparência não poderia mais nos transviar, como sem dúvida transviou àqueles que tacharam de lírico o poeta subjetivo. Na verdade, Arquíloco, o homem apaixonadamente ardoroso, no amor e no ódio, é apenas uma visão do gênio, que já não é Arquíloco, porém o gênio universal, e exprime simbolicamente seu sofrimento primigênio naquele símile do homem Arquíloco: ao passo que aquele homem Arquíloco que deseja e quer subjetivamente não pode jamais e em parte alguma ser poeta. Mas nem é de modo algum necessário que o lírico veja diante de si apenas o fenômeno do homem Arquíloco como reflexo do eterno Ser; e a tragédia demonstra até que ponto o universo visionário do poeta lírico pode distanciar-se desse fenômeno que é de fato o que lhe está mais próximo.

 

Quem poderá deixar de reconhecer nessa descrição que a lírica é aí caracterizada como uma arte jamais perfeitamente realizada, como que sempre em salto e raramente chegando à meta, sim, como uma semi-arte, cuja essência consistiria em que o querer e a pura contemplação, isto é, o estado inestético e o estético, estivessem estranhamente misturados? Nós, de nossa parte, afirmamos antes que toda essa contraposição do subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma medida de valor, mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é em geral inadequada em estética, uma vez que o sujeito, o indivíduo que quer e que promove os seus escopos egoísticos, só pode ser pensado como adversário e não como origem da arte. Mas na medida em que o sujeito é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um mediu m através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua redenção na aparência. Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte - pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente -, enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela. Portanto, todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que, na qualidade de único criador e espectador dessa comédia da arte, prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador. 

 

Seção 6

No tocante a Arquíloco, a investigação erudita descobriu que foi ele quem introduziu a canção popular [Volkslied] na literatura e que lhe cabia, por causa deste feito, aquela posição única ao lado de Homero, na apreciação geral dos gregos. Mas o que é a canção popular em contraposição à poesia épica [epos] totalmente apolínea? O que mais. há de ser exceto o perpetuum vestigium [vestígio perpétuo] de uma união do apolíneo e do dionisíaco; sua prodigiosa propagação, que se estende por todos os povos e cresce sempre com novos frutos, nos é testemunha de quão forte é esse duplo impulso da natureza, o qual deixou atrás de si, de maneira análoga, o seu rastro na canção popular, assim como os movimentos orgiásticos de um povo se eternizam em sua música. Sim, deveria ser também historicamente comprovável que todo período produtivo no domínio da poesia popular também foi agitado ao máximo por correntes dionisíacas, que nos cumpre sempre encarar como o substrato e o pressuposto da canção popular.

 

A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical do mundo, como melodia primigênia, que procura agora uma aparência onírica paralela e a exprime na poesia. A melodia é portanto o que há de primeiro e mais universal, podendo por isso suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos. Ela é também de longe o que há de mais importante e necessário na apreciação ingênua do povo. De si mesma, a melodia dá à luz a poesia e volta a fazê-lo sempre de novo; é isso e nada mais que a forma estrójica46 da canção popular nos quer dizer: fenômeno que sempre considerei com assombro, até que finalmente achei esta explicação. Quem examinar à luz de tal teoria uma coletânea de canções populares, Des Knaben Wunderhorn [A corneta mágica do menino], por exemplo, descobrirá incontáveis exemplos de como a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens, as quais, em sua policromia, em sua abrupta mudança, em sua turbulenta precipitação, revelam uma força selvagemente estranha à aparência épica e ao seu tranqüilo fluir. Do ponto de vista do epos, esse mundo desigual e irregular da lírica deve simplesmente ser condenado: e foi o que, no tempo de Terpandro, os solenes rapsodos épicos das festas apolíneas fizeram.

 

Na poesia da canção popular vemos, portanto, a linguagem empenhada ao máximo em imitar a música: daí começar com Arquíloco um novo universo da poesia, que contradiz o homérico em sua raiz mais profunda. Com isso assinalamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e som: a palavra, a imagem, o conceito buscam uma expressão análoga à música e sofrem agora em si mesmos o poder da música. Nesse sentido nos é dado distinguir na história lingística do povo grego duas correntes principais, conforme a linguagem imite o mundo da aparência e da imagem ou o da música. Basta refletir mais profundamente sobre a diferença lingüística da cor, da construção sintática, do material verbal em Homero e Píndaro, para se compreender a importância desse contraste: sim, com isso se torna palpavelmente claro que entre Homero e Píndaro por certo sempre soaram os orgiásticos flauteias de Olimpo, os quais, ainda à época de Aristóteles, em meio a uma música infinitamente mais desenvolvida, arrastavam a um entusiasmo embriagado e que seguramente, em seu efeito primordial, incitaram à imitação todos os meios expressivos dos homens contemporâneos. Quero lembrar aqui um conhecido fenômeno de nossos dias, que só parece chocante à nossa estética. Uma experiência pela qual passamos sempre de novo é a de como uma sinfonia de Beethoven obriga os ouvintes individualmente a um discurso imagístico, o que talvez ocorra também porque uma combinação dos vários universos de imagens, engendrada através de uma peça de música, produz um efeito fantasticamente variegado, deveras, e até mesmo contraditório: exercer contra tais combinações a sua pobre espirituosidade e deixar de ver o fenômeno verdadeiramente digno de explicação está no caráter dessa estética. Mas até mesmo no caso em que o poeta do som tenha falado de uma composição em imagens figuradas, como ao atribuir a uma sinfonia a designação de "pastoral" e chamar a uma frase de "cena junto ao arroio'', a uma outra de ''alegre reunião de camponeses" , também se trata apenas de representações similiformes, nascidas da música - e não porventura dos objetos imitados pela música -, representações que não nos podem instruir em aspecto nenhum sobre o conteúdo dionisíaco da música, sim, que não têm qualquer valor exclusivo em face de outras figurações. Devemos agora transportar esse processo de uma descarga50 da música em imagens para uma massa popular no vigor da juventude, linguisticamente criativa, a fim de chegarmos a uma idéia de como se origina a canção estrófica popular e de como todo o tesouro verbal é excitado pelo novo princípio de imitação da música.

 

Se nos é lícito, portanto, considerar a poesia lírica como a fulguração imitadora da música em imagens e conceitos, neste caso podemos agora perguntar: como é que aparece a música no espelho da imagística e do conceito? Ela aparece como vontade, tomando-se a palavra no sentido de Schopenhauer, isto é, como contraposição ao estado de ânimo estético, puramente contemplativo, destituído de vontade. Aqui se distingue agora, tão incisivamente quanto possível o conceito da essência do da aparência; pois é impossível que a música, segundo a sua essência, seja vontade, já que ela, como tal, deveria ser completamente banida do domínio da arte - porquanto a vontade é em si o inestético; porém aparece como vontade. Com efeito, a fim de exprimir a sua aparência em imagens, o lírico precisa de todos os transportes da paixão, desde o sussurrar da propensão até o trovejar do delírio; sob esse impulso, para falar da música em símiles apolíneos, ele passa a compreender a natureza toda e a si próprio no seio desta apenas como o eterno querente, cobiçante, anelante. Mas, na medida em que interpreta a música em termos de imagens, ele mesmo já repousa na silenciosa calmaria da contemplação apolínea, por mais que tudo quanto contemple à sua volta, pelo medium da música, esteja em movimento impetuoso e arrebatador. Sim, quando ele mesmo divisa a si próprio através do mesmo medium, a sua própria imagem se lhe apresenta em estado de sentimento insatisfeito: o seu próprio querer, anelar, gemer, exultar é para ele como um símile com o qual interpreta para si mesmo a música. Tal é o fenômeno do lírico: como gênio apolíneo, interpreta a música através da imagem do querer, enquanto ele próprio, totalmente liberto da avidez da vontade, é puro e imaculado olho solar.

 

Toda essa discussão se prende firmemente ao fato de que a lírica depende tanto do espírito da música, quanto a própria música, em sua completa ilimitação, não precisa da imagem e do conceito, mas apenas os tolera junto de si. A poesia do lírico não pode exprimir nada que já não se encontre, com a mais prodigiosa generalidade e onivalidade, na música que o obrigou ao discurso imagístico. Justamente por isso é impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolismo universal da música, porque ela se refere simbolicamente à contradição e à dor primordiais no coração do Uno-primigênio, simbolizando em conseqüência uma esfera que está acima e antes de toda aparência. Diante dela, toda aparência é antes meramente símile: daí por que a linguagem , como órgão e símbolo das aparências, nunca e em parte nenhuma é capaz de volver para fora o imo da música, mas permanece sempre, tão logo se põe a imitá-la, apenas em contato externo com ela, enquanto o sentido mais profundo da música não pode, mesmo com a maior eloqüência lírica, ser aproximado de nós um passo sequer.

 

Seção 16

Por esse exemplo histórico aduzido procuramos pôr a claro de que modo a tragédia, assim como perece com o esvanecer do espírito da música, só pode nascer desse espírito unicamente. Para abrandar o insólito dessa afirmação e, por outro lado, apontar a fonte original de nossa cognição, precisamos agora defrontar, com livre olhar, os fenômenos análogos do presente; precisamos entrar no meio dessas lutas que, como eu dizia há pouco, são pelejadas, nas mais altas esferas de nosso mundo atual, entre o insaciável conhecimento otimista e a necessidade trágica da arte. Não vou considerar aqui todos os outros impulsos adversos que trabalham contra a arte, e precisamente contra a tragédia, e que também no presente se expandem de tal maneira seguros de sua vitória que, das artes teatrais, por exemplo, somente a farsa e o balé  dão  suas floradas, talvez  nem  para todos  bem  cheirosas, com  uma  proliferação  em  certa medida luxuriante. Quero falar apenas da oposição mais ilustre à consideração trágica do mundo, e com isso me refiro à ciência, otimista em sua essência mais profunda, com o seu progenitor Sócrates à testa. Será mister também, imediatamente, mencionar pelo nome os poderes eu me parecem garantir um renascimento da tragédia – e algumas outras bem-aventuradas esperanças para o ser alemão!

 

Antes de nos precipitarmos no meio desses combates, envolvamo-nos na couraça dos conhecimentos até agora por nós conquistados. Em oposição a todos aqueles que se empenham em derivar as artes de um princípio único, tomado como fonte vital necessária de toda obra de arte, detenho o olhar naquelas duas divindades artísticas dos gregos, Apolo e Dionísio, e reconheço neles os representantes vivos e evidentes de dois mundos artísticos diferentes em sua essência mais funda e em suas metas mais altas. Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção na aparência, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas. Essa imensa oposição se abre abismal entre a arte plástica, como arte apolínea, e a música, como arte dionisíaca, se tornou manifesta a apenas um dos grandes pensadores, na medida em que ele, mesmo sem esse guia do simbolismo dos deuses helênicos, reconheceu à música um caráter e uma origem diversos dos de todas as outras artes, porque ela não é, como todas as demais, reflexo [Abbild] do fenômeno, porém reflexo imediato da vontade mesma e, portanto, representa, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, e para todo o fenômeno, a coisa em si (Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, I, p. 310). Sobre esse reconhecimento, o mais importante de toda a estética, com o qual somente ela começa em um sentido mais sério, Richard Wagner, para corroborar-lhe a eterna verdade, imprimiu o seu selo, quando no Beethoven estabelece que a música deve ser medida segundo princípios estéticos completamente diferente dos de todas as artes figurativas e, desde logo, não segundo a categoria da beleza: ainda que uma estética errônea, pela mão de uma artes extraviada e degenerada (86), tenha se habituado a exigir da música, a partir daquele conceito de beleza vigente no mundo figurativo, um efeito parecido ao das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas formas. Após tomar conhecimento dessa enorme contraposição, senti uma forte necessidade de me aproximar da essência da tragédia grega e com isso da mais profunda revelação do gênio helênico; pois só então julguei dominar a magia requerida para, mais além da fraseologia de nossa estética usual, poder colocar-me de maneira viva e concreta o problema primordial da tragédia: com o que me foi dado lançar uma olhada tão estranhamente peculiar no helênico que tinha de me parecer como se a nossa ciência clássico-helênica, tão orgulhosa em seu comportamento, no principal haja sabido apascentar-se até agora somente com jogos de sombras e com exterioridades.

 

Poderíamos talvez tocar nesse problema primordial com a seguinte pergunta: que efeito estético surge quando aqueles poderes estéticos, em si separados, do apolíneo e do dionisíaco, entram lado a lado em atividade? Ou de uma forma mais sucinta: como se comporta a música para com a imagem e o conceito? – Schopenhauer, em quem Richard Wagner enaltece, justamente por causa desse ponto, uma insuperável clareza e transparência de exposição, exprime-se a esse respeito com a maior minúcia, que vou reproduzir aqui em toda a sua extensão. O mundo como vontade e representação, I, p. 309: “Em consequência de tudo isto, podemos considerar o mundo fenomenal, ou a natureza, e a música, como duas expressões diversas da mesma coisa, a qual é por isso a única mediadora da analogia de ambas, cujo conhecimento é exigido a fim de se compreender tal analogia. A música é, por conseguinte, quando encarada como expressão do mundo, uma linguagem universal no mais alto grau, que inclusive está para a universalidade dos conceitos mais ou menos como esses conceitos estão para as coisas individuais. A sua universalidade não é de modo algum aquela universalidade vazia de abstração, mas de uma espécie completamente diversa, e está ligada a uma nítida e completa determinação. Assemelha-se nisto às figuras geométricas e aos números, os quais, enquanto formas universais de todos os possíveis objetos da experiência e a todos aplicáveis a priori, não são, apesar de tudo, abstratos, porém intuitivos e inteiramente determinados. Todas as possíveis aspirações, excitações e exteriorizações da vontade, todos aqueles processos no interior do ser humano, que a razão atira no amplo conceito negativo do sentimento, podem ser expressos através de um número infinito de melodias possíveis, mas sempre na universalidade da mera forma, sem a matéria, sempre unicamente segundo o em si, e não segundo o fenômeno, tal como a alma mais íntima deste, sem corpo. A partir dessa relação interior que a música mantém com a verdadeira essência de todas as coisas explica-se também que, ao soar uma música adequada a qualquer cena, ação, ocorrência, ambiente, ela pareça descerrar-nos o sentido mais secreto destes e se apresente como o seu comentário mais justo e claro: do mesmo modo que aquele que se entrega por inteiro à impressão de uma sinfonia vê como se todos os possíveis sucessos da vida e do mundo já estivessem desfilando diante de si; no entanto, quando reflete, não consegue indicar nenhuma semelhança entre aquele jogo sonoro e as coisas que lhe passaram pela fantasia. Pois a música, como dissemos, difere de todas as outras artes pelo fato de não ser reflexo do fenômeno ou, mais corretamente, da adequada objetividade [Objektität] (87) da vontade, porém reflexo imediato da própria vontade e, portanto, representa o metafísico para tudo o que é físico no mundo, a coisa em si mesma para todo fenômeno. Poder-se-ia, em consequência, chamar o mundo todo tanto de música corporificada quanto de vontade corporificada: daí ser também explicável por que a música faz destaca-se imediatamente com majorada significatividade toda pintura, sim, toda cena da vida real e do mundo; tanto mais, na verdade, quanto mais análoga for a sua melodia ao espírito interior do fenômeno dado. Nisso repousa o fato de se poder sotopor à música uma poesia como o canto ou uma representação intuitiva como a pantomima ou ambas as coisas como a ópera. Tais imagens individuais da vida humana, sotopostas à linguagem universal da música, nunca se lhe se unem ou correspondem com necessidade completa, mas mantêm com ela apenas uma relação de um exemplo qualquer com um conceito universal: elas representam na determinação da realidade aquilo que a música exprime na universalidade da mera forma. Pois as melodias são em certa medida, como os conceitos universais, uma abstração da realidade. Esta, ou seja, o mundo das coisas individuais, de fato fornece o intuitivo, o particular e o individual, o caso singular, quer à universalidade dos conceitos, quer à universalidade das melodias, embora as duas universalidades em certo aspecto se contraponham uma à outra, uma vez que os conceitos contêm tão-só as primeiríssimas formas abstraídas da intuição, como, por assim dizer, a casca externa tirada das coisas, sendo, portanto, abstrações; a música, em contrapartida, proporciona o núcleo mais íntimo, que precede toda configuração, ou seja, o coração das coisas. Pode-se expressar bem essa relação na linguagem dos escolásticos, ao se dizer: os conceitos são os universalia post rem [universais posteriores à coisa], e a realidade dá os universalia in re [universais na coisa]. – Todavia, eu seja possível em geral uma relação entre uma composição musical e uma representação intuitiva, isto se baseia, como foi dito, no fato de ambas serem expressões, só que totalmente diversas, da mesma essência interna do mundo. Ora, quando no caso singular tal relação se apresenta realmente, isto é, quando o compositor soube enunciar na linguagem universal da música os movimentos da vontade que constituem o âmago de um acontecimento, então a melodia da canção,  melodia da ópera enchem-se de expressão. A analogia entre as duas coisas, descoberta pelo compositor, há de ter surgido, no entanto, do conhecimento imediato da essência do mundo, sem o conhecimento de sua razão, e não deve ser, como intencionalidade consciente, uma imitação mediada por conceitos: do contrário, a música não expressa a essência interna, a vontade mesma, mas apenas arremeda de maneira insuficiente o seu fenômeno, como faz toda música propriamente imitativa”.

 

Entendemos portanto, segundo a doutrina de Schopenhauer, a música como linguagem imediata da vontade, e sentimos a nossa fantasia incitada a enformar aquele mundo de espíritos que nos fala, mundo invisível e no entanto tão vivamente movimentado, e a no-lo corporificar em um exemplo análogo. Por outro lado, imagem e conceito chegam, sob o influxo de uma música verdadeiramente correspondente, a uma significatividade majorada. Duas são as classes de efeitos que a música dionisíaca costuma, por conseguinte, exercer sobre a faculdade artística apolínea: a música estimula à introvisão similiforme da universalidade dionisíaca e deixa então que a imagem similiforme emerja com suprema significatividade. Desses fatos, em si compreensíveis e de modo algum inacessíveis a qualquer observação mais profunda, deduzo eu a capacidade da música para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco. Com base no fenômeno do poeta lírico, expliquei como nele a música se esforça, em consequência disso, por manifestar em imagens apolíneas a sua essência própria: se pensarmos agora que a música, em sua suprema intensificação, tem de procurar atingir também uma suprema afiguração, devemos considerar como algo possível que ela saiba encontrar outrossim a expressão simbólica para a sua autêntica sabedoria dionisíaca; e onde mais haveremos de buscar tal expressão senão na tragédia e, em geral, no conceito do trágico?

 

Da essência da arte, tal como ela é concebida comumente, segunda a exclusiva categoria da aparência e da beleza, não é possível derivar de maneira alguma, honestamente, o trágico; somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda a aparência e apesar de todo o aniquilamento. A alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas aparência, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu aniquilamento. “Nós acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia; enquanto a música é a Ideia imediata dessa vida. Um alvo completamente diverso tem a arte do artista plástico: aqui o sofrimento do indivíduo subjuga Apolo mediante a glorificação luminosa da eternidade da aparência, aqui a beleza triunfa sobre o sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente apagada dos traços da natureza. Na ate dionisíaca e no seu  simbolismo trágico, a mesma natureza nos interpela com sua voz verdadeira, inalterada: “Sede como eu sou! Sob a troca incessante das aparências, a mãe primordial eternamente criativa, eternamente a obrigar a existência, eternamente a satisfazer-se com essa mudança das aparências!”.

 

Seção 17

Também a arte dionisíaca quer nos convencer do eterno prazer da existência: só que não devemos procurar esse prazer nas aparências, mas por trás delas. Cumpre-nos reconhecer que tudo quanto nasce precisa estar pronto para um doloroso ocaso; somos forçados a adentrar nosso olhar nos horrores da existência individual – e não devemos todavia estarrecer-nos: um consolo metafísico nos arranca momentaneamente da engrenagem das figuras mutantes. Nós mesmos somos realmente, por breves instantes, o ser primordial e sentimos o seu indomável desejo e prazer de existir; a luta, o tormento, a aniquilação das aparências se nos afiguram agora necessários, dada a pletora de incontáveis formas de existência e comprimir-se e a empurrar-se para entrar na vida, dada a exuberante fecundidade da vontade do mundo; nós somos trespassados pelo espinho raivante desses tormentos, onde quer que nos tenhamos tornado um só, por assim dizer, com esse incomensurável arquiprazer na existência e onde quer que pressintamos, em êxtase dionisíaco, a indestrutibilidade e a perenidade deste prazer. Apesar do medo e da compaixão, somos os ditosos viventes, não como indivíduos, porém como o uno vivente, com cujo gozo procriador estamos fundidos.

 

A história da gênese da tragédia grega nos diz agora, com luminosa precisão, que a obra de arte trágica dos helenos brotou realmente do espírito da música: pensamento pelo qual cremos fazer justiça, pela primeira vez, ao sentido originário e tão assombroso do coro. Ao mesmo tempo, porém, cumpre-nos acrescentar que o significado, acima exposto, do mito trágico nunca se tornou transparente, com nitidez conceitual, aos poetas gregos e, ainda menos, aos filósofos gregos; seus heróis falam, em certa medida, mais superficialmente do que atual; o mito não encontra de maneira alguma a sua objetivação adequada na palavra falada. A articulação das cenas e as imagens perspícuas revelam uma sabedoria mais profunda do que aquela que o próprio poeta pode apreender em palavras e conceitos: o mesmo se observa em Shakespeare, cujo Hamlet, por exemplo, em um sentido semelhante, fala mais superficialmente do que age, de modo que não é a partir das palavras, porém da visão e da revisão aprofundadas do conjunto que se deve inferir aquela doutrina do Hamlet antes mencionada. No tocante à tragédia grega, a qual se nos apresenta, em verdade, apenas como drama falado, dei a entender inclusive que essa incongruência entre mito e palavra poderia facilmente nos desencaminhar, se a considerarmos mais superficial e insignificante do que é e, como decorrência, se lhe pressupusermos um efeito ainda mais superficial do que aquele que, segundo testemunho dos Antigos, ela deve ter tido: pois quão facilmente é esquecido que aquilo que o poeta da palavra não alcançava, a suprema espiritualização e idealidade do mito, ele, como músico criador, podia conseguir a todo instante! Nós temos por certo que reconstruir, para nós, a preponderância do efeito musical quase por via erudita, a fim de receber algo daquele consolo incomparável que deve ser próprio da verdadeira tragédia. Mesmo essa preponderância musical, só se fôssemos gregos tê-la-íamos sentido como tal: ao passo que em todo o desenvolvimento da música helênica – tão infinitamente mais rica em face daquela que nos é conhecida e familiar – cremos ouvir tão-só a canção juvenil do gênio musical, entoada como um tímido sentimento de força. Os gregos são, como dizem os sacerdotes egípcios, eternas crianças, e também na arte trágica são apenas crianças que não sabem que sublime brinquedo nasceu sob suas mãos – e nelas foi destroçado.

 

Essa luta do espírito da música por revelação figurativa e mítica, que se intensifica desde os primórdios da lírica até a tragédia ática, interrompe-se de súbito, depois de apenas atingindo um viçoso desenvolvimento, e como que desaparece da superfície da arte helênica: enquanto a consideração dionisíaca do mundo, nascida desta luta, sobrevive nos mistérios e, nas mais maravilhosas metamorfoses e degenerações, não cessa de atrair para si as naturezas mais sérias. Será que ela não voltará a elevar-se um dia, como arte, para fora de sua profundeza mística?

 

Aqui nos ocupa a questão de saber se a potência por cuja atuação contrária a tragédia se rompe, contará em todos os tempos com força suficiente para impedir o redespertar artístico da tragédia e da consideração trágica do mundo. Se a tragédia antiga foi obrigada a sair do trilho pelo impulso dialético para o saber e o otimismo da ciência, é mister deduzir desse fato uma luta eterna entre a consideração teórica e a consideração trágica do mundo; e, só depois de conduzido a seu limite o espírito da ciência e de aniquilada a sua pretensão de validade universal mediante a comprovação desses limites, dever-se-ia nutrir esperança de um renascimento da tragédia: para essa forma de cultura cumpriria estabelecer como símbolo o Sócrates musicante, no sentido antes examinado. Nessa conotação, entendo por espírito da ciência aquela crença, surgida à luz pela primeira vez na pessoa de Sócrates, na sondabilidade da natureza e na força terápica universal do saber.

 

Quem se lembra das consequências imediatas desse espírito da ciência a avançar infatigavelmente há de perceber de imediato como, por seu intermédio, o mito foi aniquilado e como, por esse aniquilamento, a poesia veio a ser expulsa de seu sono natural ideal, tornando-se daí por diante apátrida. Se atribuímos com razão à música a força que lhe faculta fazer nascer de si novamente o mito, também teremos de procurar o espírito da ciência na senda onde ele enfrenta hostilmente essa força criadora de mitos que a música tem. Isso ocorre no desenvolvimento do novo ditirambo ático, cuja música não mais exprimia o ser interno, a vontade mesma, mas só reproduzia a aparência de modo insuficiente, em uma imitação mediada por conceitos: música interiormente degenerada da qual se apartavam as naturezas verdadeiramente musicais com aversão igual à que dedicavam à tendência assassina da arte, a Sócrates. O instinto seguro e captante de Aristófanes sem dúvida apreendeu o certo quando conjugou, no mesmo sentimento de ódio, o próprio Sócrates, a tragédia de Eurípides e a música dos novos ditirambos, e farejou em todos esses três fenômenos os signos característicos de uma cultura degenerada. Por meio desse novo ditirambo a música foi convertida, de forma hedionda, em retrato imitativo da aparência, por exemplo, de uma batalha, de uma tempestade no mar, e com isso viu-se totalmente despojada de sua força criadora de mitos. Pois se ela procura excitar nosso deleite apenas em nos obrigando a buscar analogias externas entre um acontecimento da vida e da natureza e determinadas figuras rítmicas e determinados sons peculiares da música, se até a nossa inteligência deve contentar-se com o conhecimento de tais analogias, então somos rebaixados a um estado de ânimo em que uma concepção do mítico é impossível; pois o mito quer ser sentido intuitivamente como exemplo único de uma universalidade e veracidade de olhos fitos no infinito adentro. A música verdadeiramente dionisíaca se nos apresenta como um tal espelho geral da vontade do mundo: o evento intuitivo que se refrata nesse espelho amplia-se desde logo para o nosso sentimento, até tornar-se imagem reflexa de uma verdade eterna. Ao contrário, tal evento é imediatamente despido de todo caráter mítico pela pintura sonora [Tonmalerei] (88) do novo ditirambo; agora a música se tornou indigente reflexo da aparência e por isso infinitamente mais pobre do que esta: pobreza pela qual a música rebaixa ainda mais, para o nosso sentimento, a aparência mesma, de modo que agora, por exemplo, uma batalha imitada musicalmente dessa maneira se esgota em ruído de marchas, toques de trombetas etc., e nossa fantasia fica detida justamente nessas superficialidades. A pintura sonora é, portanto, em todos os sentidos, o inverso da força criadora de mitos, da verdadeira música: por seu intermédio, a aparência se faz ainda mais pobre do que é, enquanto, através da música dionisíaca, a aparência singular se enriquece e se alarga em imagens do mundo. Constituiu uma grandiosa vitória do novo ditirambo, distanciou a música de si própria e a reduziu à condição de escrava da aparência. Eurípides, que, em um nexo superior, deve ser denominado uma natureza inteiramente não-musical, é, exatamente por esse motivo, um adepto apaixonado da nova música ditirâmbica e, com a prodigalidade de um larápio, emprega todos os seus truques de efeito e maneirismos.

 

Por outro lado, vemos em atividade a força desse espírito não dionisíaco, dirigido contra o mito, se voltarmos nossos olhares para a prevalência da representação dos caracteres e do refinamento psicológico na tragédia a partir de Sófocles. O caráter não se deixará mais ampliar até o tipo externo, senão que, ao contrário, através de matizes artificiais e sombreamentos, através da finíssima determinação de todas as linhas, atuará individualmente, de modo que o espectador já não sinta de forma alguma o mito, mas sim a poderosa verdade da natureza e a força instintiva do artista. Também aqui percebemos o triunfo da aparência sobre o universal e o prazer no preparado singular, quase anatômico, respiramos já o ar de um mundo teórico, para o qual o conhecimento científico vale mais do que a reverberação artística de uma regra do mundo. O movimento nas linhas do característico avança com rapidez: enquanto Sófocles ainda pinta caracteres inteiros e atrela o mito ao jugo de seu desenvolvimento refinado, Eurípides já não pinta mais do que grandes traços isolados de caráter, que sabem externar-se em paixões veementes; na nova comédia ática há apenas máscaras com uma só expressão, velhos levianos, rufiões enganados, escravos astutos, incansavelmente repetidos. Onde foi parar agora o espírito formador de mitos, que é o da música? O que agora ainda resta da música é ou música de excitação ou de recordação, quer dizer, ou um estimulante para nervos embotados ou desgastados ou uma pintura sonora. Para a primeira, mal importa o texto subjacente: já em Eurípides, quando seus heróis ou coros começam a cantar, as coisas desandam em efetiva desordem; até onde se terá chegado com seus insolentes sucessores?

 

Mas é no desfecho dos novos dramas que se revela mais nitidamente o novo espírito não dionisíaco. Na tragédia antiga fazia-se sentir no fim o consolo metafísico, sem o qual não há como explicar de modo algum o prazer pela tragédia: talvez seja em Édipo em Colono onde ressoa de maneira mais pura o sonido reconciliador de um outro mundo. Agora, que o gênio da música fugiu da tragédia, a tragédia está, no sentido mais estrito, morta: pois de onde se poderá agora tirar aquele consolo metafísico? Procurou-se por isso uma solução terrena para a dissonância trágica; o herói, depois de bastante martirizado pelo destino, colhia uma bem merecida recompensa em um magnífico casamento, em algumas homenagens divinas. O herói se tornara um gladiador, a quem, após ter sido bastante maltratado e estar coberto de ferimentos, era ocasionalmente doada a liberdade. O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafísico. Não quero dizer que a consideração trágica do mundo tenha sido destruída, em toda parte e por completo, pelo acossante espírito não dionisíaco: sabemos apenas que precisou fugir da arte para refugiar-se, por assim dizer, no mundo ínfero, numa degeneração em culto secreto. Mas sobre a região mais extensa da superfície do ser helênico raivava o sopro devastador daquele espírito que se dá a conhecer nessa forma da “serenojovialidade grega”, da qual já se falou antes como a de um senil e improdutivo prazer na existência; essa serenojovialidade é o oposto da esplêndida “ingenuidade” dos helenos antigos, que se deve conceber, segundo a característica dada, como a flor a brotar de um sombrio abismo da cultura apolínea, como o triunfo obtido pela vontade helênica, através de seu espelhamento da beleza, sobre o sofrimento e a sabedoria do sofrimento. A forma mais nobre daquela outra forma da “serenojovialidade helênica”, a alexandrina, é a serenojovialidade do homem teórico: ela exibe os mesmos signos característicos que acabo de derivar do espírito do não dionisíaco – que ela combate a sabedoria e a arte dionisíaca, que ela trata de dissolver o mito, que ela substituiu uma consolação metafísica por uma consonância terrena, sim, por um deus ex machina próprio, a saber, o deus das máquinas e crisóis, vale dizer, as forças dos espíritos naturais conhecidas e empregadas a serviço do egoísmo superior; que acredita em uma correção do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência; e que é efetivamente capaz de desterrar o ser humano individual em um círculo estreitíssimo de tarefas solucionáveis, dentro do qual ele diz serenojovialmente para a vida: “Eu te quero: tu és digna de ser conhecida”.

 

Seção 21

Retornando desses tons exortatórios à disposição do ânimo que convém ao homem contemplativo, repito que somente dos gregos é possível aprender o que semelhante despertar miraculoso e inopinado da tragédia deve significar para o fundo vital mais íntimo de um povo. O povo dos Mistérios trágicos é o que trava as batalhas contra os persas e, por sua vez, o povo que conduziu aquela guerra tem a tragédia como necessária beberagem curativa. Quem iria presumir que precisamente neste povo, depois que ao longo de várias gerações fora agitado até o cerne pelas mais fortes convulsões do demônio dionisíaco, ocorreria uma efusão tão uniforme e vigorosa do mais simples sentimento político, dos instintos mais naturais da pátria, do mais primitivo e varonil prazer do combate? Pois se sempre se percebe, em cada propagação significativa de excitações dionisíacas, como a liberação dionisíaca das cadeias do indivíduo se faz sensível, antes de tudo, em prejuízo dos instintos políticos, até a indiferença, sim, até a animosidade, é também certo, de outro lado, que o Apolo formador de Estados é outrossim o gênio do principium individuationis, e que nem o Estado, nem o senso da pátria podem viver sem a afirmação da personalidade individual. Para sair do orgiasmo não há, para um povo, senão um caminho, o caminho do budismo indiano, o qual, para ser suportável em seu anseio do nada, necessita daqueles raros estados extáticos, com sua elevação acima do espaço, do tempo e do indivíduo, assim como estes, por seu turno, exigem uma filosofia que ensine a superar, através de uma representação, o indescritível prazer dos estados intermediários. De modo igualmente necessário cai um povo, a partir da vigência incondicional dos impulsos políticos, numa via de mundanização extrema, cuja expressão grandiosa, mas também horrorosa, é o imperium romano.

 

Colocados entre a Índia e Roma, e impelidos a uma eleição transviadora, conseguiram os gregos inventar, com clássica pureza, uma terceira forma, sem dúvida não para longo uso próprio, mas por isso mesmo destinada à imortalidade. Uma vez que os favoritos dos deuses morrem cedo, isso vale em todas as coisas, porém não menos certo é que, depois, eles vivem eternamente com os deuses. Do mais nobre não se exija pois que possua a duradoura resistência do couro; a sólida durabilidade, como a que foi própria, por exemplo, do impulso nacional romano, não pertence provavelmente aos predicados necessários da perfeição. Mas se perguntarmos qual foi o remédio que permitiu aos gregos, em suas grandes épocas, em que pese a extraordinária força de seus impulsos dionisíacos e políticos, não se exaurirem nem em um cismar extático, nem em uma consumidora ambição de poder e glória universais, porém alcançar aquela esplêndida mescla, como a tem um vinho nobre que inflama o ânimo e ao mesmo tempo o dispõe à contemplação, precisaremos lembrar-nos da enorme força da tragédia a excitar, purificar e descarregar a vida do povo; cujo valor superno pressentiremos apenas se, tal como entre os gregos, ela se nos apresentar como suma de todas as potências curativas profiláticas, como a mediadora imperante entre as qualidades mais fortes e as mais fatídicas do povo.

 

A tragédia absorve em seu íntimo o mais alto orgiasmo musical, de modo que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a música à sua perfeição; mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico e o herói trágico, o qual então, como um poderoso Titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco inteiro e nos alivia dele: enquanto, de outra parte, graças a esse mesmo mito trágico, sabe libertar-nos, na pessoa do herói trágico, da ávida impulsão para esta existência e, com mão admoestadora, nos lembra de um outro ser e de um outro prazer superior, para o qual o herói combatente, cheio de premonições, se prepara com sua derrota e não com suas vitórias. A tragédia interpõe, entre o valimento universal de sua música e o ouvinte dionisiacamente suscetível, um símile sublime, o mito, e desperta naquele a aparência, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de representação para vivificar o mundo plástico do mito. Confiando nessa nobre ilusão, ela pode agora agitar seus membros na dança ditirâmbica e entregar-se sem receio a um orgiástico sentimento de liberdade, no qual ela, enquanto música em si, não poderia atrever-se, sem aquele engano, a regalar-se. O mito nos protege da música, assim como de outro lado, lhe dá a suprema liberdade. Por isso a música, como um presente que é oferecido em contrapartida, confere ao mito trágico uma significatividade metafísica tão impressiva e convincente que a palavra e a imagem, sem aquela ajuda única, jamais conseguiriam atingir: e, em especial, por seu intermédio sobrevém ao espectador trágico justamente aquele seguro pressentimento de um prazer supremo, ao qual conduz o caminho que passa pela derruição e negação, de tal forma que julga ouvir como se o abismo mais íntimo das coisas lhe falasse perceptivelmente.

 

Se com estas últimas frases consegui proporcionar, talvez, a essa difícil conceituação apenas uma expressão provisória, compreensível somente para uns poucos, não posso deixar, precisamente aqui, de instar meus amigos a uma nova tentativa e de rogar-lhes que se preparem, com um único exemplo de nossa experiência comum, para o conhecimento da proposição geral. Neste exemplo não preciso referir-me àqueles que utilizam as imagens dos processamentos cênicos, as palavras e os afetos das personagens atuantes para, com tal ajuda, aproximarem-se do sentimento musical; pois nenhum deles fala a música como língua materna e tampouco chega mais longe, a despeito dessa ajuda, do que os pórticos da percepção musical, sem que jamais lhe seja dado tocar os seus santuários mais recônditos; alguns, como Gervinus, não alcançam por este caminho sequer os pórticos. Ao contrário, hei de me dirigir tão-só àqueles que, diretamente aparentados com a música, têm nela ao mesmo tempo o seu regaço materno e se vinculam às coisas quase unicamente através de relações musicais inconscientes. A esses músicos autênticos endereço a pergunta se podem imaginar um homem que seja capaz de aperceber o terceiro ato de Tristão e Isolda sem o auxílio da palavra e da imagem, apenas como um prodigioso movimento sinfônico, e que, sob um espasmódico desdobrar de todas as asas da alma, não venha a expirar? Um homem que, como aqui neste caso, haja por assim dizer aplicado o ouvido ao ventrículo cardíaco da vontade universal, que sinta como o furioso desejo da existência se derrama a partir daí em todas as veias do mundo, como torrente atroadora ou como mansíssimo arroio em gotas pulverizado, tal homem não se destroçará de repente? Deveria ele suportar ouvir, no miserável invólucro vítreo do indivíduo humano, o eco de inumeráveis gritos de prazer e dor do “vasto espaço da noite do mundo”, sem refugiar-se incontivelmente diante dessa ciranda pastoral da metafísica, em sua pátria primigênita? Mais se tal obra, apesar de tudo, pode ser apercebida como um todo, sem negação da existência individual, se semelhante criação pode ser criada sem destroçar o seu criador, de onde iremos obter a solução de uma tal contradição?

 

Aqui se infiltram, entre a nossa mais alta excitação musical e aquela música, o mito trágico e o herói trágico, no fundo apenas como símiles dos fatos mais universais, de que só a música pode falar por via direta. Como símile, porém, apenas o mito, se o nosso modo de sentir fosse o de seres puramente dionisíacos, permaneceria ao nosso lado, despercebido e ineficaz, e não nos desviaria por um instante sequer de prestarmos ouvido ao eco das universalia ante rem [universais anteriores à coisa]. Aqui, no entanto, irrompe a força apolínea, dirigida à restauração do indivíduo quase despedaçado, com o bálsamo terapêutico de um delicioso engano: de súbito cremos enxergar unicamente Tristão, que imóvel e sufocado se pergunta: “A velha melodia, por que ela me desperta?” O que antes nos parecia um oco suspiro do centro do ser, agora quer nos dizer apenas quão “ermo e vazio está o mar”. E lá onde julgávamos nos extinguir sem alento, em meio a um espasmódico estirar-se de todos os sentimentos, e haver muito pouco a amarrar-nos a esta existência, agora ouvimos e vemos tão-somente o herói ferido de morte, que todavia não morre, com seus gritos desesperados: “Ansiar! Ansiar! No morrer ansiar/ a não morrer de ansiedade!”. E se antes o júbilo da trompa, após tal desmedida e tal excesso de vorazes tormentos, nos partiu o coração, agora, entre nós e esse “júbilo em si”, está o rejubilante Kurwenal a bradar para o barco que traz Isolda. Por mais violenta, no entanto, o compadecer-se ante o sofrimento primordial do mundo, como imagem similiforme, nos salva da contemplação imediata da suprema ideia do universo, assim como o pensamento e a palavra nos salvam da efusão irrepresada do querer inconsciente. Graças a essa esplêndida ilusão apolínea se nos afigura como se o próprio reino dos sons viesse ao nosso coração qual um mundo plástico, como se também nele somente o destino de Tristão e Isolda, feito a mais delicada e expressiva matéria, fosse cunhado e enformado.

 

Assim, o apolíneo nos arranca da universalidade dionisíaca e nos encanta para os indivíduos: neles encadeia o nosso sentimento de compaixão, através deles satisfaz o nosso senso de beleza sedento de grandes e sublimes formas; faz desfilar ante nós imagens de vida e nos incita a apreender com o pensamento o cerne vital nelas contido. Com a força descomunal da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da excitação simpática, o apolíneo arrasta o homem para fora de sua auto aniquilação orgiástica e o engana, passando por sobre a universalidade da ocorrência dionisíaca, a fim de leva-lo à ilusão de que ele vê uma única imagem do mundo, por exemplo, Tristão e Isolda, e que, através da música, apenas há de vê-la melhor e mais intimamente. O que não conseguirá a magia terapêutica de Apolo, se até dentro de nós pode suscitar a ilusão de que efetivamente o dionisíaco, a serviço do apolíneo, é capaz de intensificar os efeitos deste, de que a música, mesmo essencialmente, é arte de representação para um conteúdo apolíneo?

 

Com essa harmonia preestabelecida que impera entre o drama perfeito e a música, alcança o drama um grau supremo de visualidade, de outro modo inacessível ao drama falado. Assim como todas as figuras vivas da cena se simplificam diante de nós nas linhas melódicas a moverem-se independentemente até atingirem a clareza da linha ondulada, assim a contiguidade dessas linhas ressoa, para nós, na alternância de harmonias a simpatizar da matéria mais delicada com o evento movimentado: através dessa alternância, as relações das coisas se nos tornam imediatamente perceptíveis, perceptíveis de modo sensível e nunca abstrato, tal como reconhecemos por seu intermédio que somente nessas relações se revela com pureza a essência de um caráter e de uma linha melódica. E enquanto a música nos obriga a ver mais, e de um modo mais intrínseco do que em geral, e a estender diante de nós, qual delicada teia, o evento da cena, para o nosso olhar espiritualizado a mirar para o íntimo, o mundo do palco se amplia infinitamente, assim como se ilumina de dentro para fora. Que coisa análoga poderia oferecer o poeta da palavra, que se esforça em alcançar com um mecanismo muito mais imperfeito, por um caminho indireto, a partir da palavra e do conceito, aquela ampliação interior do mundo visível da cena e sua iluminação interna? Se agora, na verdade, a tragédia musical também agrega a palavra, por isso mesmo ela pode colocar ao seu lado, simultaneamente, o substrato e o lugar de nascimento desta e esclarecer-nos, de dentro para fora, o seu devir.

 

Mas desse evento descrito seria possível, não obstante, dizer com igual certeza que ele é apenas uma esplêndida aparência, ou seja, aquela ilusão apolíneo há pouco mencionado, por cujo efeito devemos ficar aliviados do afluxo e da desmedida dionisíacos. No fundo, a relação da música com o drama é precisamente a inversa: a música é a autêntica Ideia do mundo, o drama é somente um reflexo, uma silhueta isolada desta Ideia. Aquela identidade entre a linha melódica e a figura vivente, entre a harmonia e as relações de caráter daquela figura, é, em um sentido oposto ao que poderia parecer-nos ao contemplarmos a tragédia musical, verdadeira. Mesmo se movermos a figura de maneira mais visível, se a vivificarmos e a iluminarmos de dentro para fora, ela continuará sendo sempre tão-somente a aparência, de onde não há nenhum ponto que conduza à verdadeira realidade, ao coração do mundo. Porém, é deste coração para fora que o mundo fala; e ainda que incontáveis aparências daquela espécie pudessem desfilar ao som da mesma música, jamais esgotariam a essência desta, mas seriam apenas seus reflexos mais exteriorizados. Com a contraposição popular, e de todo falsa, de alma e corpo, em verdade nada se pode aclarar, e tudo se pode enredar, na difícil relação entre música e drama; entretanto, a crueza afilosófica daquela contraposição parece ter-se tornado, justamente para os nossos estetas, quem sabe por razões, um artigo de fé professado com gosto, ao passo que eles nada aprenderam sobre a oposição entre a aparência e a coisa em si ou, por razões igualmente desconhecidas, nada quiseram aprender.

 

Se com a nossa análise resultou que o apolíneo na tragédia obteve, mercê de sua força de ilusão, completa vitória sobre o proto elemento dionisíaco da música, e que ele se aproveitou desta para os seus desígnios, a saber, para uma elucidação máxima do drama, haveria que acrescentar desde logo uma restrição muito importante: no ponto mais essencial de todos, aquele engano apolíneo é rompido e destruído. O drama, que se estende diante de nós, com o auxílio da música, em tão iluminada clareza interior de todos os movimentos e todas as figuras, como se víssemos, no vaivém da lançadeira, o tecido nascer no tear – alcança, como totalidade, um efeito que fica mais além de todos os efeitos artísticos apolíneos. No efeito conjunto da tragédia, o dionisíaco recupera a preponderância; ela se encerra com um tom que jamais poderia soar a partir do reino da arte apolínea. E com isso o engano apolíneo se mostra como o que ele é, como o véu que, enquanto dura a tragédia, envolve o autêntico efeito dionisíaco, o qual, todavia, é tão poderoso que, ao final, impele o próprio drama apolíneo a uma esfera onde ele começa a falar com sabedoria dionisíaca e onde nega a si mesmo e à sua visibilidade apolínea. Assim, a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades. Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral.

 

Seção 24

Entre os efeitos artísticos peculiares da tragédia musical, tivemos de ressaltar uma ilusão apolínea, através da qual devemos ser salvos de uma unificação imediata com a música dionisíaca, enquanto a nossa excitação musical puder descarregar-se em um terreno apolíneo e em um mundo intermediário visual aí intercalado. Nisso acreditávamos haver observado como, justamente por meio dessa descarga, aquele mundo intermédio da ocorrência cênica, e em geral o drama, se tornava, de dentro para fora, visível e compreensível em qualquer outra arte apolínea: de tal modo que aqui, onde, por assim dizer, essa arte era alada e alterada pelo espírito da música, foi preciso reconhecer a suprema intensificação de suas forças e por conseguinte naquela aliança fraterna de Apolo e Dionísio, o cimo dos propósitos artísticos, quer apolíneos quer dionisíacos.

 

É certo que, exatamente na iluminação interna pela música, a luminosa imagem apolínea não alcançava o efeito peculiar dos graus mais fracos da arte apolínea; o que o epos ou a pedra animada conseguem fazer, forçar o olho contemplante a entregar-se àquele tranquilo deleite no mundo da individuatio, isto não era dado atingir aqui, a despeito de uma arrumação e de uma clareza superiores. Miramos o drama e penetramos com o olhar perfurante em seu movimentado mundo interno dos motivos – e, no entanto, nos sentíamos como se junto a nós passasse unicamente uma imagem similiforme, cujo sentido mais profundo críamos quase adivinhar, e que desejávamos puxar, qual uma cortina, para divisar por trás dela a proto-imagem. A claríssima nitidez da imagem não nos bastava: pois esta parecia tanto revelar algo como encobri-lo; e enquanto, com a sua revelação similiforme, ela parecia convidar a rasgar o véu, ao desvelamento do fundo misterioso, precisamente aquela transluminosa onivisibilidade mantinha outra vez o olho enfeitiçado e o impedia de penetrar mais fundo.

 

Quem não tenha vivenciado isso, ou seja, ter de olhar e ao mesmo tempo ir além do olhar, dificilmente imaginará quão nítidos e claros subsistem, lado a lado, esses dois processos e são, lado a lado, sentidos na consideração do mito trágico: ao passo que os espectadores verdadeiramente estéticos hão de me confirmar que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-presença. Basta transferir esse fenômeno, do espectador estético a uma processo análogo no artista trágico, e ter-se-á entendido a gênese do mito trágico. Ele compartilha com a esfera da arte apolínea o inteiro prazer na aparência e na visão e simultaneamente nega tal prazer e sente um prazer ainda mais alto no aniquilamento do mundo da aparência visível. O conteúdo do mito trágico é, em primeiro lugar, um acontecimento épico, com a glorificação do herói lutador: de onde, porém, deriva esse traço, sem si enigmático, de que o sofrer no destino do herói, as mais dolorosas superações, as mais torturantes contradições dos motivos, em suma, a exemplificação daquela sabedoria de Sileno ou, expresso em termos estéticos, o feio e o desarmônico sejam, em tão incontáveis formas, com tanta predileção, representados sempre de novo, e precisamente na idade mais viçosa e juvenil de um povo, se justo nisso tudo não se percebesse um prazer superior?

 

Pois o fato de que na vida as coisas se passem realmente de maneira tão trágica seria o que menos explicaria a gênese de uma forma artística, se, ao invés, a arte não for apenas imitação da realidade natural, mas precisamente um suplemento metafísico dessa realidade natural, colocada junto dela a fim de superá-la. O mito trágico, na medida em que pertence de algum modo à arte, também participa plenamente do intento metafísico de transfiguração inerente à arte como tal; o que é, porém, que ele transfigura, quando apresenta o mundo aparencial sob a imagem do herói sofredor? Menos do que tudo a “realidade” desse mundo fenomenal, pois nos diz: “Vede” Vede bem! Esta é vossa vida! Este é o ponteiro do relógio de vossa existência!”.

 

E é esta vida que o mito mostrava, para com isso transfigurá-lo diante de nós? Mas se não é assim, em que reside o prazer estético com que fazemos desfilar ante nós também aquelas imagens? Eu pergunto pelo prazer estético e sei muito bem que muitas dessas imagens, além do mais, produzir de vez em quando um deleite moral, por exemplo em forma de compaixão ou de triunfo moral. Quem pretendesse, todavia, defluir o efeito trágico unicamente dessas fontes morais, como era na verdade costume na estética há muito tempo, não poderá crer que haja feito comisso algo pela arte: a qual, em seu domínio, deve antes de tudo exigir pureza. Para aclarar o mito trágico, o primeiro reclamo é justamente o de procurar o prazer a ele peculiar na esfera esteticamente pura, sem qualquer intrusão no terreno da compaixão, do medo, do moralmente sublime. Como é que o feio e o desarmônico, isto é, o conteúdo do mito trágico, podem suscitar um prazer estético?

 

Aqui se faz agora necessário, com uma audaz arremetida, saltar para dentro de uma metafísica da arte, retomando a minha proposição anterior, de que a existência e o mundo aparecem justificados somente como fenômeno estético: nesse sentido precisamente o mito trágico nos deve convencer de que mesmo o feio e o desarmônico são um jogo artístico que a vontade, na perece plenitude de seu prazer, joga consigo própria. Difícil como é de se apreender, esse fenômeno primordial da arte dionisíaca só por um caminho direto torna-se singularmente inteligível e é imediatamente captado: no maravilhoso significado da dissonância musical; do mesmo modo que somente a música, colocada junto ao mundo, pode dar uma noção do que se há de entender por justificação do mundo como fenômeno estético. O prazer que o mito trágico gera tem uma pátria idêntica à sensação prazerosa da dissonância na música. O dionisíaco, com o seu prazer primordial percebido inclusive na dor, é a matriz comum da música e do mito trágico.

 

Não se terá entrementes facilitado essencialmente esse difícil problema do efeito trágico, pelo fato de havermos recorrido à ajuda da relação musical da dissonância? Pois agora entendemos o que significa na tragédia querer ao mesmo tempo olhar e desejar-se para muito além do olhar: estado que, no tocante à dissonância empregada artisticamente, precisaríamos ouvir e desejamos ao mesmo tempo ir muito além do ouvir. Esse aspirar ao infinito, o bater de asas do anelo, no máximo prazer ante a realidade claramente percebida, lembram que em ambos os estados nos cumpre reconhecer um fenômeno dionisíaco que torna a nos revelar sempre de novo o lúdico construir e desconstruir do mundo individual como eflúvio de um arquiprazer, de maneira parecida à comparação que é efetuada por Heráclito, o Obscuro, entre a força plasmadora do universo e uma criança que, brincando, assenta pedras aqui e ali e constrói montes de areia e volta a derrubá-los.

 

Para apreciar, portanto, correntemente a aptidão dionisíaca de um povo, devemos pensar não só na música, mas também, com igual necessidade, no mito trágico desse povo, como o segundo testemunho daquela aptidão. Pois agora, dado o estreitíssimo parentesco entre música e mito, cabe conjecturar, da mesma maneira, que a degeneração e depravação de uma há de estar ligada à atrofia do outro: embora, de outra parte, no fraquejamento do mito venha a expressar-se o enfraquecimento da capacidade dionisíaca. A respeito de ambos, uma vista d’olhos sobre o desenvolvimento do ser alemão não deveria, porém, nos deixar em dúvida: na ópéra como no caráter abstrato de nossa existência sem mitos, em uma arte decaída em mera divisão como em uma vida guiada pelo conceito, se nos desvelará aquela natureza do otimismo socrático, tão inartístico quanto corroedor da vida. Para o nosso consolo, contudo, havia indícios de que, não obstante, o espírito alemão intato na sua esplêndida saúde, profundidade e força dionisíaca, qual um cavaleiro prostrado em sono, repousava e sonhava em um abismo inacessível: abismo de onde se eleva até nós a canção dionisíaca, para nos dar a entender que também agora esse cavaleiro alemão ainda sonha o seu antiquíssimo mito dionisíaco em visões austeras e beatíficas. Que ninguém creia que o espírito alemão haja perdido para sempre a sua pátria mítica, posto que continua compreendendo com tanta clareza as vozes dos pássaros que falam daquela pátria. Um dia ele se encontrará desperto, com todo o frescor matinal de um sonho imenso: então matará o dragão, aniquilará os pérfidos anões e acordará Brunhilda – e nem mesmo a lança de Wotan poderá barrar o seu caminho!

 

Meus amigos, vós que acrediteis na música dionisíaca, sabeis também o que a tragédia significa para nós. Nela temos, renascido da música, o mito trágico – e nele deveis tudo esperar e esquecer o mais doloroso! O mais doloroso, porém, é para nós todos – a longa indignidade em que o gênio alemão, estranhado de sua casa e de sua pátria, viveu a serviço de pérfidos anões. Vós compreendeis essas palavras – assim como compreendeis também, ao final, minhas esperanças.

 

Seção 25

Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíaca de um povo e inseparáveis uma do outro. Ambos procedem de um domínio artístico situado para além do apolíneo; ambos transfiguram uma região em cujos prazenteiros acordes se perdem encantadoramente tanto a dissonância como a imagem terrível do mundo; ambos jogam com o espinho do desprazer, confiando em suas artes mágicas sobremaneira poderosas; ambos justificam com tal jogo a própria existência do “pior dos mundos”. Aqui o dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a potência artística eterna e originária que chama à existência em geral o mundo todo da aparência: no centro do qual se faz necessária uma nova ilusão transfiguradora para manter firme em vida o ânimo da individuação. Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância – e que outra coisa é o homem? – tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza a sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob o seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, a cada instante, tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelem a viver o momento seguinte.

 

No entanto, daquele fundamento de toda existência, do substrato dionisíaco do mundo, só é dado penetrar na consciência do indivíduo humano exatamente aquele tanto que pode ser de novo subjugado pela força transfiguradora apolínea, de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a desdobrar a lei da eterna justiça. Lá onde os poderes dionisíacos se erguem tão impetuosamente, como nós o estamos vivenciando, lá também Apolo, envolto em uma nuvem, já deve ter descido até nós e uma próxima geração, sem dúvida, contemplará seus soberbos efeitos de beleza.

 

Mas que esse efeito é necessário, aí está algo que, por intuição, cada um o perceberia, contanto que alguma vez, fosse mesmo em sonho, se sentisse transportado a uma existência vetero-helênica: passeando sob altas colunas jônicas, alçando o olhar para um horizonte recortado por linhas puras e nobres, tendo junto a si, em mármore luminoso, reflexos de sua figura transfigurada e, em redor de si, homens marchando solenemente ou movendo-se delicadamente, com vozes soando harmonicamente e com ritmada linguagem gestual – não teria ele, diante dessa ininterrupta afluição de beleza, de levantar as mãos para Apolo, exclamando: “Bem-aventurado o povo dos helenos” Quão grande deve ter sido entre vós Dionísio, se o deus de Delos considera necessárias tais magias para curar vossa folia ditirâmbica!” – Mas a alguém nesse estado de ânimo, um velho ateniense, erguendo o olhar para ele com o sublime olhar de Ésquilo, replicaria: “Mas dize também isto, ó singular forasteiro, quanto precisou sofrer este povo para poder tornar-se tão belo! Agora, porém, acompanha-me à tragédia e sacrifica comigo no templo de ambas as divindades!”.

 

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