
Karl Philipp Moritz (1756-1793)
José Feres Sabino. Ensaios de Karl Philipp Moritz: linguagem, arte, filosofia (Seleção, introdução, tradução e notas). Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia. Universidade de São Paulo, 2009.
Ensaio para unificar todas as belas artes e belas letras sob o conceito do perfeito e acabado em si*
Para o senhor Moses Mendelssohn
O princípio de imitação da natureza, como fim principal das belas artes e belas letras foi rejeitado e subordinado ao do prazer, que passou a ser a primeira lei fundamental das belas artes. Diz-se que essas artes, de fato, têm em vista apenas o prazer, assim como as artes mecânicas, o útil. – Ora, mas se nos contentamos tanto com o belo quanto com o útil, como, então, diferenciamos um do outro?
No meramente útil eu me contento não tanto com o próprio objeto quanto com a representação da comodidade e do conforto, cujo uso do objeto confere a mim ou a outra pessoa. Eu me ponho por assim dizer no centro, ao qual relaciono todas as partes do objeto, isto é, considero o objeto apenas como meio – contanto que minha perfeição seja desse modo promovida – do qual eu mesmo sou o fim. O objeto meramente útil, portanto, não é em si mesmo nem um todo nem algo perfeito e acabado, mas somente se torna um quando alcança o seu fim ou se completa em mim. – Na contemplação do belo, porém, eu coloco de volta no próprio objeto o fim que estava em mim: eu não o considero como algo completo em mim, mas nele mesmo, formando, portanto, um todo em si, e proporcionando-me prazer em razão de si mesmo, e por isso o objeto belo se refere menos a mim do que eu a ele. Porque o belo me agrada mais em razão de si mesmo, e o útil agrada somente a mim, o belo me proporciona um prazer mais elevado e desinteressado do que o meramente útil. O prazer do meramente útil é mais rude e comum, e o prazer do belo, mais fino e raro. Aquele, nós o temos em comum, num certo sentido, com os animais; este nos eleva acima deles.
Como o útil não tem seu fim em si, mas fora de si, em outra coisa cuja perfeição poderá ser desse modo ampliada, alguém que queira produzir algo útil precisa ter constantemente diante dos olhos esse fim externo de sua obra. E se a obra viesse a atingir seu fim externo, não importa o modo como em si estivesse constituída, isso não seria levado em conta, já que ela é meramente útil. No que diz respeito especificamente ao útil, se um relógio não faz nada além de indicar corretamente as horas, e uma faca nada além de cortar bem, não me importo nem com o valor da caixa do relógio nem com o do cabo da faca; tampouco me interesso se a máquina do relógio ou a lâmina da faca saltam à vista. O fim do relógio e da faca se encontra fora deles, naquele que o utiliza para sua comodidade; não são, portanto, nada completo em si, e não têm nenhum valor próprio em si e para si sem o alcance possível ou real de seu fim externo. Só então tenho prazer com esses fins externos tomados em conjunto como um todo; separados desses fins eles me deixam completamente indiferente. Contemplo com prazer o relógio e a faca, somente se posso utilizá-los, e não os utilizo para poder contemplá-los.
No belo ocorre o contrário. Este não tem seu fim fora dele, e não existe em função da perfeição de outra coisa, mas em função da própria perfeição interna. O belo não é contemplado porque se pode utilizá-lo, mas é utilizado somente porque se pode contemplá-lo. Não necessitamos tanto do belo para que nos dê prazer, quanto o belo necessita de nós para ser conhecido. Podemos subsistir muito bem sem contemplar a obra de arte bela, mas a obra, como obra, não poderia subsistir sem nossa contemplação. Quanto menos sentimos sua falta, mais podemos contemplá-la por ela mesma, e pela nossa contemplação dar a ela, por assim dizer, sua existência verdadeira e completa. Pois por meio de nosso crescente reconhecimento do belo numa bela obra de arte, aumentamos por assim dizer sua própria beleza, e sempre lhe damos maior valor. Segue-se daí o desejo impaciente de que todos rendam homenagem ao belo que uma vez reconhecemos como tal: quanto mais universalmente ele é reconhecido e admirado como belo, maior valor também obtém aos nossos olhos. Segue-se daí o desprazer que sentimos com um teatro vazio, ainda que a apresentação seja exímia. Se sentíssemos o prazer do belo mais em razão de nós mesmos do que em razão dele mesmo, o que nos importaria se outra pessoa além de nós o reconhecesse? Nós nos interessamos pelo belo, nos esforçamos para produzir admiradores dele, não importa onde o encontremos: sentimos até mesmo uma espécie de compaixão quando vemos uma bela obra de arte deixada ao abandono ser observada com olhar indiferente por quem passa. – Mesmo a doce admiração, o agradável esquecimento de nós mesmos ao contemplar uma bela obra de arte, é prova de que aqui nosso prazer é algo secundário; e que voluntariamente nos deixamos ser determinados apenas pelo belo, ao qual concedemos por algum tempo uma espécie de poder supremo sobre toda nossa sensibilidade. Enquanto o belo atrai totalmente nossa contemplação, ele a faz desviar um instante de nós mesmos e parecer que nos perdemos no objeto belo; e esse perder-se, esse esquecimento de nós mesmos, é o grau mais alto de prazer puro e desinteressado que o belo nos proporciona. Nesse momento, sacrificamos nossa existência individual e limitada por uma espécie de existência mais elevada. Por isso, para ser genuíno, o prazer do belo tem de se aproximar cada vez mais do amor desinteressado. Toda referência específica a mim numa bela obra de arte dá um acréscimo ao prazer que eu senti, o qual se perde para um outro; o belo na obra de arte não é para mim puro e sem mistura até que eu afaste totalmente em pensamento a referência específica a mim, e o belo seja considerado como algo que é meramente produzido em razão de si mesmo, a fim de ser algo perfeito e acabado em si mesmo. – Mas, assim como amor e benevolência podem se tornar certamente uma necessidade para o nobre filantropo, sem que por isso se torne egoísta, assim também o prazer com o belo pode se tornar, pelo hábito, uma necessidade para o homem de gosto, sem que por isso seja perdida sua pureza original. Necessitamos simplesmente do belo tão-somente porque desejamos ter oportunidade de prestar homenagem a ele, pelo reconhecimento de sua beleza.
Uma coisa, portanto, não pode ser bela apenas porque nos dá prazer, senão todas as coisas úteis também teriam de ser belas; mas o que nos dá prazer, sem ser propriamente útil, é por nós denominado belo. Mas é impossível que aquilo que é inútil ou sem finalidade dê prazer a um ser racional. Num objeto em que falta, portanto, uma utilidade ou finalidade externa, esta precisa ser buscada no próprio objeto, para que desperte prazer em mim; ou preciso encontrar nas partes isoladas do objeto tanta
finalidade que me esqueço de perguntar para que serve então o todo? Noutras palavras: tenho de buscar num objeto belo o prazer em conseqüência dele mesmo; por fim, a falta de finalidade externa precisa ser substituída por sua finalidade interna; o objeto precisa ser algo em si mesmo perfeito e acabado.
Mas se a finalidade interna numa obra de arte bela não é grande o bastante para fazer com que me esqueça da finalidade externa; pergunto então naturalmente: para que o todo? Responde-me o artista: para lhe dar prazer; em seguida lhe pergunto: que motivo tem você para, com sua obra de arte, me despertar prazer ao invés de desprazer? Você se importou tanto com meu prazer, tornando sua obra conscientemente mais imperfeita do que já é, só para estar conforme ao meu gosto deteriorado; ou não se importou tanto com sua obra que vai procurar corresponder ao meu próprio prazer a fim de que sua beleza seja sentida por mim? Se é assim, não vejo como meu prazer momentâneo possa ser o fim de sua obra, porque ele precisaria ser antes despertado e determinado por sua própria obra. Meu prazer lhe agrada apenas porque você sabe que me acostumei a sentir prazer pelo que é realmente perfeito em si; isso, porém, não seria levado muito em consideração por você, se o que lhe importasse fosse apenas o meu prazer e não que a perfeição de sua obra devesse ser confirmada por meio do interesse que tenho por ela. Se o prazer não fosse uma finalidade tão subordinada, ou, antes, apenas conseqüência natural da bela obra de arte, por que o autêntico artista não procuraria ampliá-lo tanto quanto possível a várias pessoas, em vez de frequentemente sacrificar à perfeição de sua obra as sensações agradáveis de milhares de pessoas, para as quais a beleza da obra não desperta nenhum interesse? – Diz o artista: mas se minha obra agrada ou desperta prazer, então alcancei minha finalidade; pois eu respondo: o contrário! Porque você alcançou sua finalidade, sua obra agrada, ou que sua obra agrade, talvez possa ser um sinal de que você alcançou sua finalidade em sua obra. Mas se a verdadeira finalidade de sua obra era mais o prazer que você quis causar do que a perfeição da obra em si mesma, então a aprovação que sua obra pôde obter desta ou daquela pessoa me parece muito suspeita.
“Mas eu me esforço para agradar aos mais nobres.” – Muito bem! Mas isso não é sua finalidade última; pois eu ainda posso lhe perguntar: por que você se esforça precisamente para agradar aos mais nobres? Não é porque estes se acostumaram a sentir no mais perfeito o maior prazer? Você volta a relacionar os prazeres deles a sua obra, cuja perfeição você quer ver desse modo confirmada. Que o pensamento de aprovação que os nobres têm de sua obra o incite sempre, mas não faça disso sua finalidade última e mais elevada, senão você será o primeiro a não alcançá-la. A mais bela aprovação tampouco é a presa que se quer caçar, mas é arrebatada apenas ao longo do caminho. Que a perfeição de sua obra preencha toda sua alma durante o trabalho; coloque na sombra os mais doces pensamentos de glória, de modo que a glória frequentemente lhe apareça a fim de reanimá-lo, quando seu espírito começa a se cansar; e você vai ganhar espontaneamente aquilo por que tantos outros se esforçam em vão. Se a representação da aprovação é, porém, seu pensamento principal, e sua obra tem valor somente se ela lhe der honra, recuse a aprovação dos nobres. Sua obra é orientada por seu egoísmo: o foco da obra se deslocará para fora dela, você não a produzirá em razão dela mesma, e, portanto, também não produzirá um todo, algo perfeito e acabado em si. Você procurará o falso brilho, que talvez por algum tempo ofusque o olho da plebe, mas que desaparecerá como névoa para o olhardo sábio.
O verdadeiro artista procurará alcançar a mais elevada finalidade interna ou perfeição em sua obra; e se esta encontrar aprovação, isso o deixará alegre, mas ele já alcançou sua verdadeira finalidade com o aperfeiçoamento da obra. Da mesma maneira o verdadeiro sábio procura levar, consoante ao andar das coisas, a suprema e harmônica finalidade a todas as suas ações, e considera a mais pura bem-aventurança, ou a duração de um estado de sensações agradáveis, como uma consequência certa disso, e não como sua meta. Pois a mais pura bem-aventurança é arrebatada apenas ao longo do caminho rumo à perfeição, mas não é a presa que ser caçar. A linha da bem-aventurança corre simplesmente paralela à da perfeição; tão logo aquela se torna uma meta, a linha da perfeição toma uma direção completamente errada. Se as ações singulares visam a um estado de sensações agradáveis, recebem uma finalidade aparente; mas juntas não constituem um todo coerente e harmonioso. Sobretudo se, nas belas artes, o conceito de perfeição ou do perfeito e acabado si mesmo for subordinado ao do prazer.
“Então o prazer não é um fim?” – Respondo: o que é o prazer ou de onde surge senão da intuição da finalidade? Se houvesse, pois, algo do qual o prazer fosse o único fim, então poderia julgar a finalidade dessa coisa apenas a partir do prazer que ela me desperta. Meu prazer, porém, tem de surgir primeiro desse julgamento; ele teria de existir antes que lá estivesse. Mesmo o fim deve sempre ser algo simples como os meios que visam ao fim: se o prazer com uma bela obra de arte é, porém, composto justamente como a própria obra de arte, como posso considerá-lo algo simples a que as partes singulares da obra de arte devem visar? Tampouco a representação de uma pintura num espelho pode ser a finalidade da composição; pois esta será certamente a conseqüência de si mesma, sem que ao realizar o trabalho precise estar presente. Se um espelho embaçado representa minha obra de arte tanto mais imperfeita quanto mais perfeita ela é, então por isso a produzirei mais imperfeita para que venha perder menos beleza no espelho embaçado? –
Linhas fundamentais para uma teoria completa da bela arte*[1]
1) O belo autêntico não se encontra apenas em nós e em nosso modo de representar, mas também fora de nós, nos próprios objetos.
2) Há portanto uma verdadeira teoria do belo por meio da qual o olho é direcionado a um determinado ponto, a partir do qual o belo tem necessariamente de ser considerado para que possa ser apropriadamente avaliado e sentido.
3) Este ponto precisa sempre ser procurado na própria obra de arte: pois toda obra de arte autêntica possui esse ponto em si mesma, por meio do qual toda parte dela e suas posições se tornam necessárias umas em relações às outras, e, consideradas do ponto de vista principal, são-nos apresentadas como necessárias.
4) Ora, quanto mais necessárias são todas as partes singulares de uma obra de arte e suas posições umas em relações às outras, mais bela é a obra; quanto menos necessárias elas forem, podendo as partes ser colocadas e retiradas sem prejudicar o todo, pior e mais medíocre é a obra.
5) Para avaliar e considerar o belo nas obras de arte plásticas, o gosto deve antes ser preparado pela consideração apropriada do belo autêntico na poesia.
6) Pois a poesia descreve o belo das artes plásticas, se ela abarca com as palavras as mesmas proporções que na arte plástica são traçadas pelos contornos.
7) A exposição mais perfeita da mais perfeita formação humana é o topo mais alto da arte, a partir do qual todas as coisas podem ser medidas.
8) O belo não exclui o útil; mas se o belo se subordina ao útil, torna-se ornamento.
9) Da mais elevada mistura do belo com o nobre nasce o conceito de majestoso.
10) Se medimos o nobre na ação e na intenção pelo ignóbil, então nomeamos o nobre grande e o ignóbil, pequeno. E se medimos novamente o nobre, o grande e o belo por uma altura que se encontra bem acima de nós e que nossa capacidade de apreensão não possa atingir, então o conceito de belo se converte no conceito de sublime.
11) Nossos órgãos de sensação prescrevem sua medida ao belo.
12) A coerência da natureza inteira seria para nós o belo superior, se pudéssemos abarcá-la num piscar de olhos.
13) Cada bela totalidade da arte é, em escala menor, uma marca do mais elevado belo no grande todo da natureza.
14) O artista nato não se satisfaz contemplando a natureza, ele precisa imitá-la, emulá-la e formar e criar como ela.
15) A fruição mais elevada do belo só é possível de ser sentida nesse vir-a-ser por força própria. Cada fruição posterior do belo é apenas uma conseqüência de sua existência.
16) Para não passarmos de todo sem a fruição do belo, o gosto, ou a capacidade de sentir o belo, substitui em nós a capacidade produtiva, e dela se aproxima tanto quanto possível sem se converter nela.
17) Quanto mais perfeita for a capacidade de sentir certa espécie de belo, tanto maior será o risco de ela se iludir, de se considerar como a própria capacidade formadora e, dessa maneira, por meio de milhares de tentativas fracassadas, perturbar a paz consigo mesma.
18) O que pode formar a nós mesmos para uma verdadeira fruição do belo é aquilo pelo qual o próprio belo nasceu: Contemplação tranqüila da natureza e da arte como um único grande todo; por isso, o que o passado produziu agora se tornou para nós uma coisa só vinculada à natureza e, em união com ela, deve atuar sobre nós de maneira harmoniosa.
* Publicado na revista Monats-Schrift der Akademie der Künste und mechanischen Wissenschaften zu Berlin, ano II, vol. 3, fevereiro de 1789, p. 74-77. Republicado nos livros Launen und Phantasien von Carl Philipp Moritz, org. Carl Friedrich Klischnig (1796) e no Erinnerungen aus den zehn letzten Lebensjahren meines Freundes Anton Reiser. Als ein Beitrag zur Lebensgeschichte des Herrn Hofrath Moritz, de Karl Friedrich Klischnig, (1794). (N. do T.)
[1] Compreende-se naturalmente que estas proposições gerais, que são apenas resultados do desenvolvimento completo delas, devem ser primeiramente provadas e consideradas sob a luz que lhes convém. (N. do A.)






