top of page

Mito e Significado. Trad. Antonio Marques Bessa. Portugal: Edições 70, 1987

 

 

 

Capítulo 5 – Mito e Música

 

A relação entre mito e música, em que tanto insisti na parte inicial de Le Cru et le Cuit e também na parte final de L’Homme, é talvez o tema que deu origem à maior parte dos mal-entendidos, especialmente no mundo de língua inglesa, mas também em França, porque se pensava que essa relação era bastante arbitrária. Eu, pelo contrário, tinha a ideia de que não havia uma única relação, mas dois tipos de relação – uma de similaridade e outra de contiguidade – e de que, na realidade, eles eram de facto o mesmo. Mas não compreendi imediatamente esta relação, e foi a relação de similaridade que me chamou em primeiro lugar a atenção. Tentarei explicar como isso se passou.

Relativamente ao aspecto da similaridade, a minha convicção era que, tal como sucede numa partitura musical; é impossível compreender um mito como uma sequência contínua. Esta é a razão por que devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de o apreender como uma totalidade e descobrir que o significado básico do mito não está ligado à sequência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado.

Como é que isto acontece e porquê? Na minha opinião, é o segundo aspecto, o aspecto da contiguidade, que nos dá a chave para este problema. Na verdade, foi só quando o pensamento mitológico, não digo se dissipou ou desapareceu, mas passou para segundo plano no pensamento ocidental da Renascença e do século XVIII, que começaram a aparecer as primeiras novelas, em vez de histórias ainda elaboradas segundo o modelo da mitologia. E foi precisamente por essa altura que testemunhámos o aparecimento dos grandes estilos musicais, característicos do século XVII e, principalmente, dos séculos XVIII e XIX.

Foi como se a música mudasse completamente a sua forma tradicional para se apossar da função –função intelectual e também emotiva que o pensamento mitológico abandonou mais ou menos nessa época. Quando falo de música, devia, com certeza, qualificar o termo. A música que assumiu a função tradicional da mitologia não é um determinado tipo de música, mas a música tal como surgiu na civilização ocidental, nos primeiros quartéis do século XVII, com Frescobaldi, e nos primeiros anos do século XVIII, com Bach, música que atingiu o seu máximo desenvolvimento com Mozart, Beethoven e Wagner, nos séculos XVII e XIX.

O que eu gostaria de fazer a fim de clarificar estas afirmações era oferecer um exemplo concreto, que tomarei da tetralogia O Anel dos Nibelungos , de Wagner. Um dos temas mais importantes da tetralogia é o que em francês se chama «le thème de la renunciation à l’amour» – a renúncia ao amor. Como se sabe, este tema aparece pela primeira vez na composição O Ouro do Reno, no momento em que Alberich sabe pelas ninfas do Reno que só pode conquistar o ouro se renunciar a todas as espécies de amor humano. Este assustador motivo musical é um aviso a Alberich, dado no preciso momento em que ele diz que fica com o ouro e que renuncia ao amor de uma vez por todas. Tudo isto é muito claro e simples; é o sentido literal do tema: Alberich está a renunciar ao amor.

Ora, o segundo momento, importante e surpreendente, em que o tema reaparece é nas Valquírias, em circunstâncias que tornam extraordinariamente difícil entender porquê. No momento em que Siegmund descobre que Sieglinde é sua irmã e se apaixona por ela, e precisamente quando iam iniciar uma relação incestuosa, graças à espada que se encontra espetada na árvore e quando Siegmund a tenta arrancar – nesse momento, reaparece o tema da renúncia ao amor. Isto parece um mistério porque, nesse momento, Siegmund não está de forma alguma a renunciar ao amor – está a fazer exactamente o contrário, e a conhecer o amor pela primeira vez na sua vida, com a sua irmã Sieglinde. O terceiro momento em que o tema aparece é também

nas Valquírias, no último acto, quando Wotan, o rei dos deuses, condena a sua filha Brunilde a um longo sono mágico, rodeando-a com uma barreira de fogo. Poder-se-ia pensar que Wotan estava a renunciar também ao amor, porque renunciava ao amor pela sua filha; mas tal interpretação não é muito convincente.

Vê-se, assim, que enfrentamos aqui um mesmo tipo de problema que na mitologia. Ou seja: temos um tema – neste caso um tema musical em lugar de um tema mitológico – que aparece em três momentos diferentes numa história bastante longa: uma vez ao principio, outra vez no meio, e outra ainda no fim, se para esta análise nos limitarmos às duas primeiras obras d’O Anel dos Nibelungos . O que eu gostaria de mostrar é que a única maneira de entender estas reaparições misteriosas do tema é juntar os três acontecimentos, ainda que pareçam muito diferentes, empilhá-los uns por cima dos outros, a ver se poderão ser tratados como um único e o mesmo acontecimento.

Podemos constatar que nas três ocasiões diferentes há um tesouro que tem de ser afastado ou desviado daquilo, para que está destinado. Há o ouro, que se encontra enterrado nas profundezas do Reno; há a espada, que está enterrada na árvore, que é uma árvore simbólica, a árvore do universo ou a árvore da vida; e há a mulher chamada Brunilde, que tem de ser tirada do círculo de fogo. A repetição do tema sugere-nos que, na verdade, o ouro, a espada e Brunilde são a mesma coisa: o ouro como um meio para conquistar o poder, a espada como um meio para conquistar o amor, se assim se pode dizer. E o facto de haver uma espécie de união entre o ouro, a espada e a mulher é, realmente, a melhor explicação que poderemos ter para queno final d’O Crepúsculo dos Deuses seja através de Brunilde que o ouro volte ao Reno. Eles são uma e a mesma coisa, mas considerados de diferentes pontos de vista.

Por este processo tornam-se claros outros pontos do quebra-cabeças. Por exemplo, ainda que Alberich renunciasse ao amor mais tarde, graças ao ouro, poderia seduzir uma mulher que lhe daria um filho, Hagen. É graças à conquista da espada que Siegmund alcança também um filho, que será Siegfried. Assim, a reaparição do tema mostra-nos algo que nunca foi explicado nos poemas, isto é, que há uma espécie de gemeidade entre Hagen, o traidor, e Siegfried, o herói. Estão num estreito paralelismo. E isto explica também por que razão será possível a Siegfried e a Hagen, ou melhor, a Siegfried, primeiro como ele mesmo e depois sob o disfarce de Hagen, conquistar Brunilde em diferentes momentos da história.

Poderia continuar com temas deste género durante bastante tempo, mas talvez sejam suficientes estes exemplos para explicar a similaridade de método entre a análise do mito e a compreensão da música. Quando ouvimos música, estamos a ouvir, afinal de contas, algo que vai de um ponto inicial para um termo final e que se desenvolve através do tempo. Ouçam uma sinfonia: uma sinfonia tem um princípio, um meio e um fim; contudo nunca se entenderá nada da sinfonia nem se conseguirá ter prazer em escutá-la se se for incapaz de relacionar, a cada passo, o que antes se escutou com o que se está a escutar, mantendo a consciência da totalidade da música. Se se retiver por exemplo a fórmula musical do tema e das variações, só se pode entender e sentir a música se para cada variação se tiver em mente o tema que se ouviu em primeiro lugar; cada variação tem um sabor musical que lhe é próprio, se se conseguir relacioná-la inconscientemente com a variação escutada anteriormente.

Há, pois, uma espécie de reconstrução contínua que se desenvolve na mente do ouvinte da música ou de uma história mitológica. Não se trata apenas de uma similaridade global. É exactamente como se, ao inventar as formas musicais específicas, a música só redescobrisse estruturas que já existiam a nível mitológico. É, por exemplo, extraordinário que a fuga, como foi formalizada no tempo de Bach, seja a representação ao vivo do desenvolvimento de determinados mitos que têm duas espécies de personagens ou dois grupos de personagens.

Digamos: um bom e outro mau, embora isto constitua uma super-simplificação. A história inventariada pelo mito é a de um grupo que tenta escapar ou fugir do outro grupo de personagens. Trata-se então de uma perseguição de um grupo pelo outro, chegando às vezes o grupo A a alcançar o grupo B, distanciando-se depois novamente o grupo B – tudo como na fuga. Tem-se o que se chama em francês «le sujet et la réponse». A antítese ou antifonia continua pela história fora, até ambos os grupos estarem quase misturados e confundidos – um equivalente da stretta da fuga; finalmente, a solução ou clímax deste conflito surge pela conjugação dos dois princípios que se tinham oposto durante todo o mito. Pode ser um conflito entre os poderes de cima e os poderes de baixo, o céu e a terra, ou o sol e os poderes subterrâneos, e assim sucessivamente. A solução mítica de conjugação é muito semelhante em estrutura aos acordes que resolvem e põem fim à peça musical, porque também eles oferecem uma conjugação de extremos que se juntam por uma e última vez.

Também se poderia mostrar que há mitos, ou grupos de mitos, que são construídos como uma sonata, uma sinfonia, um rondó ou uma tocata, ou qualquer outra forma que a música, na realidade, não inventou, mas que foi inconscientemente buscar à estrutura do mito. Há uma história que gostaria de lhes contar. Quando andava a escrever Le Cru et le Cuit, decidi dar a cada, secção do livro o carácter de uma forma musical e chamar, a uma, «sonata», a outra, «rondó», e assim sucessivamente. Deparou-se-me então um mito cuja estrutura compreendia perfeitamente, mas o qual não encontrava uma forma musical que correspondesse à estrutura mitológica. Chamei então o meu amigo, o compositor René Leibowitz, e expliquei-lhe o meu problema. Descrevi-lhe a estrutura do mito: ao começo duas histórias completamente diferentes, sem relação aparente uma com a outra, mas que progressivamente se misturam e confundem, até que no fim acabam por formar um só tema. Como se chamaria uma peça musical com a mesma estrutura?

Ele pensou no assunto e disse-me que em toda a história da música não existia, que ele soubesse, uma peça musical com tal estrutura. Assim, não há nome para ela. É evidentemente possível compor uma peça musical com esta estrutura; e passadas algumas semanas ele enviou-me uma partitura que tinha composto com base na estrutura do mito que eu lhe contara.

A comparação entre a música e a linguagem é um problema extremamente espinhoso, porque, em certa medida, a comparação faz-se com mate riais muito parecidos e, ao mesmo tempo, tremendamente diferentes. Por exemplo, os linguistas contemporâneos disseram-nos que os elementos básicos da linguagem são os fonemas – ou seja, aqueles sons que nós incorrectamente representamos por letras –, que em si mesmos não têm qualquer significado, mas são combinados para diferenciar os significados. Pode-se dizer praticamente o mesmo das notas musicais. Uma nota – A, B, C, D e assim por diante – não tem significado em si. mesma; é apenas uma nota. É só pela combinação das notas que se pode criar música. Poder-se-ia dizer perfeitamente que, enquanto na linguagem se tem os fonemas como material elementar, na música temos algo que eu poderia chamar «sonemas» – em inglês, talvez que a palavra mais adequada fosse «tonemas». Isto é uma similaridade. Mas, se se pensar no nível seguinte da linguagem, verificar-se-á que os fonemas se combinam de modo á formar palavras; e as palavras, por sua vez, combinam-se para formar frases. Mas na música não há palavras: os elementos básicos – as notas – quando se combinam dão imediatamente origem a uma «frase», uma frase melódica.

Assim, enquanto na linguagem se tem três níveis muito bem definidos – fonemas que, combinados, formam palavras, e palavras que, combinadas, formam frases –, na música tem-se com as notas uma coisa parecida aos fonemas do ponto de vista lógico, mas perde-se o nível da palavra e passa-se imediatamente ao domínio da frase.

Agora pode-se comparar a mitologia quer com a linguagem, quer com a música, mas há uma diferença: na mitologia não há fonemas; os elementos básicos são as palavras. Assim, se se tomar a linguagem como um paradigma, é constituído por, em primeiro lugar, fonemas; em segundo lugar, palavras; em terceiro lugar, frases. Na música há o equivalente aos fonemas e o equivalente às frases, mas falta o equivalente às palavras. No mito há um equivalente às palavras, um equivalente às frases, mas não há equivalente para os fonemas. Há, portanto, em ambos casos, um nível que falta.

Se tentarmos entender a relação entre linguagem, mito e música, só o podemos fazer utilizando a linguagem como ponto de partida, podendo-se depois demonstrar que a música, por um lado, e a mitologia, por outro, têm origem na linguagem, mas que ambas as formas se desenvolveram separadamente e em diferentes direcções: a música destaca os aspectos do som já presentes na linguagem, enquanto a mitologia sublinha o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que também está profundamente presente na linguagem.

Foi Ferdinand de Saussure quem nos mostrou que a linguagem é feita de elementos indissociáveis, que são, por um lado, o som, e, por outro, o significado. E o meu amigo Roman Jakobson acaba de publicar um pequeno livro intitulado Le Son et le Sens, como as duas inseparáveis faces da linguagem. Temos o som, e o som tem um significado, e não há significado sem som para o veicular. Na música, é o elemento sonoro que predomina, e no mito é o significado. Desde criança que tenho sonhado ser compositor ou, pelo menos, um chefe de orquestra. Quando ainda era criança tentei arduamente com por a música para uma ópera, para a qual escrevi o libretto e pintei os cenários, mas fui incapaz de a compor porque me faltava algo no cérebro.

Penso que só a música e a matemática é que realmente exigem qualidades inatas e que uma pessoa tem de possuir herança genética para trabalhar em qualquer um destes dois campos. Lembro-me muitíssimo bem, quando vivi em Nova Iorque como refugiado durante a guerra, que almocei uma vez com um grande compositor francês, Darius Milhaud. Perguntei-lhe nessa altura: «Quando é que se convenceu de que iria ser um compositor?» Disse-me que já quando era criança, na cama, quase a dormir, ouvia uma espécie de música sem relação alguma com qualquer tipo de música por ele conhecida; descobriu mais tarde que essa era já a sua própria música.

Quando se me deparou o facto de que a música e a mitologia eram, se assim se pode dizer, duas irmãs geradas pela linguagem que seguiram caminhos diferentes, escolhendo cada uma a sua direcção – como na mitologia, em que um personagem vai para o Norte, enquanto o outro se dirige ao Sul, e nunca mais se encontram –, pensei que, se não era capaz de compor com os sons, talvez o pudesse fazer com os significados.

O tipo de paralelismo que tentei esboçar – já o disse, mas gostaria de o voltar a sublinhar mais uma vez – só se aplica, tanto quanto sei, à música ocidental tal como se desenvolveu nos últimos séculos. Mas, actualmente, estamos perante algo que, do ponto de vista lógico, é bastante semelhante ao que aconteceu quando o mito desapareceu como género literário, para ser substituído pelo romance. Estamos a testemunhar o desaparecimento do próprio romance. E é bastante provável que o que aconteceu no século XVIII, quando a música assumiu a estrutura e a função da mitologia, se esteja a passar de novo agora, agora que a denominada música serial substituiu o romance como género, no momento em que este está a desaparecer da cena literária.

© 2023 by  Limo Service. Proudly made by Wix.com 

  • w-facebook
  • Twitter Clean
  • w-googleplus
bottom of page