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DEWEY, John. Arte como experiência. Trad. V. Ribeiro. São Paulo, Martins Fontes, 2010. 

 

 

 

 

TER UMA EXPERIÊNCIA

 

A experiência ocorre continuamente, porque a interaçãodo ser vivo com as condições ambientais está envolvida no próprio processo de viver. Nas situações de resistência e conflito, os aspectos e elementos do eu e do mundo implicados nessa interação modificam a experiência com emoções e ideias, de modo que emerge a intenção consciente. Muitas vezes, porém, a experiência vivida é incipiente. As coisas são experimentadas, mas não de modo a se comporem em uma experiência singular. Há distração e dispersão; o que observamos e o que pensamos, o que desejamos e o que obtemos, discordam entre si. Pomos as mãos no arado e viramos para trás; começamos e paramos não porque a experiência tenha atingido o fim em nome do qual foi iniciada, mas por causa de interrupções externas ou da letargia interna.

Em contraste com essa experiência, temos uma experiência singular quando o material vivenciado faz o percurso até sua consecução. Então, e só então, ela é integrada e demarcada no fluxo geral da experiência proveniente de outras experiências. Conclui-se uma obra de modo satisfatório; um problema recebe sua solução; um jogo é praticado até o fim; uma situação, seja a de fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez, conduzir uma conversa, escrever um livro ou participar de uma campanha política, conclui-se de tal modo que seu encerramento é uma consumação, e não uma cessação. Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualiza dor e sua autossuficiência. Trata-sede uma experiência.

Os filósofos, inclusive os empíricos, falaram, em sua maioria, da experiência em geral. A linguagem vernácula, entretanto, refere-se a experiências, cada uma das quais é singular e tem começo e fim. Porque a vida não é uma marcha ou um fluxo uniforme e ininterrupto. E feita de histórias, cada qual com seu enredo, seu início e movimento para seu fim, cada qual com seu movimento rítmico particular, cada qual com sua qualidade não repetida, que a perpassa por inteiro. Uma escada, por mais mecânica que seja, procede por degraus individuais, e não por uma progressão indiferenciada, e um plano inclinado distingue-se de outras coisas, no mínimo, por uma descontinuidade abrupta. A experiência, nesse sentido vital, define-se pelas situações e episódios a que nos referimos espontaneamente como "experiências reais" - aquelas coisas de que dizemos, ao recordá-las: "isso é que foi experiência." Pode ter sido algo de tremenda importância - uma briga com alguém que um dia foi íntimo, uma catástrofe enfim evitada por um triz. Ou pode ter sido algo que, em termos comparativos, foi insignificante - e que, talvez por sua própria insignificância, ilustra ainda melhor o que é ser uma experiência. Como aquela refeição em um restaurante parisiense da qual se diz "aquilo é que foi uma experiência". Ela se destaca como um memorial duradouro do que a comida pode ser. Há também aquela tempestade por que se passou na travessia do Atlântico - uma tormenta que, em sua fúria, tal como vivenciada, pareceu resumir em si tudo o que uma tempestade pode ser, completa em si mesma, destacando-se por ter-se distinguido do que veio antes e depois.

Nessas experiências, cada parte sucessiva flui livremente, sem interrupção e sem vazios não preenchidos, para o que vem a seguir. Ao mesmo tempo, não há sacrifício da identidade singular das partes. Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá a suas partes sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes homogêneas de um lago. Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À medida que uma parte leva a outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas.

Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles pontuam e definem a qualidade do movimento. Resumem aquilo por que se passou e impedem sua dissipação e sua evaporação displicente. A aceleração contínua é esbaforida e impede que as partes adquiram distinção. Em uma obra de arte, os diferentes atos, episódios ou ocorrências se desmancham e se fundem na unidade, mas não desaparecem nem perdem seu caráter próprio ao fazê-lo - tal como, em uma conversa amistosa, há um intercâmbio e uma mescla contínuos, mas cada interlocutor não apenas preserva seu caráter pessoal, como também o manifesta com mais clareza do que é seu costume.

A experiência singular tem uma unidade que lhe confere seu nome - aquela refeição, aquela tempestade, aquele rompimento da amizade. A existência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem. Essa unidade não é afetiva, prática nem intelectual, pois esses termos nomeiam distinções que a reflexão pode fazer dentro dela. No discurso sobre uma experiência, devemos servir-nos desses adjetivos de interpretação. Ao repassar mentalmente uma experiência, depois que ela ocorre, podemos constatar que uma propriedade e não outra foi suficientemente dominante, de modo que caracteriza a experiência como um todo. Há investigações e especulações intrigantes que o cientista e o filósofo recordam como "experiências"no sentido enfático. Em sua significação final, elas são intelectuais. Mas, em sua ocorrência efetiva, também foram emocionais; tiveram um propósito e foram volitivas. No entanto, a experiência não foi a soma desses traços diferentes, os quais se perderam nela como traços distintivos. Nenhum pensador pode exercer sua ocupação, a menos que seja atraído e recompensado por experiências integrais, totais, que valham a pena intrinsecamente. Sem elas, ele nunca saberia o que é realmente pensar e ficaria completamente incapacitado de distinguir o pensamento real do artigo espúrio. O pensar se dá em fluxos de ideias, mas as ideias só formam um fluxo por serem muito mais do que a psicologia analítica chama de ideias. São fases, afetiva e praticamente distintas de uma qualidade subjacente em evolução; são variações móveis, não separadas e independentes, como as chamadas ideias e impressões de Locke e Hume, e sim matizes sutis de uma tonalidade penetrante e em desenvolvimento.

A propósito de uma experiência de pensamento, dizemos tirar uma conclusão ou chegar a ela. Muitas vezes, a formulação teórica desse processo é feita em termos que escondem por completo a semelhança da "conclusão" com a fase que consuma cada experiência integral em evolução. Aparentemente, essas formulações são instigadas a partirde proposições separadas, que são premissas, e da proposição que constitui a conclusão, tal como aparecem na página impressa. Fica-se com a impressão de que primeiro existem duas entidades prontas e independentes, que são manipuladas a fim de dar origem a uma terceira. Na verdade, em uma experiência de pensamento, as premissas só emergem quando uma conclusão se torna manifesta. A experiência, comoa de ver uma tempestade atingir seu auge e diminuir gradativamente, é de um movimento contínuo dos temas. Assim como no oceano durante a borrasca, há uma série de ondas, sugestões que se estendem e se quebram com estrondo, ou que são levadas adiante por uma onda cooperativa. Quando se chega a uma conclusão, ela é a de um movimento de antecipação e acumulação, um movimento que finalmente se conclui. A "conclusão" não é uma coisa distinta e independente; é a consumação de um movimento.

Portanto, uma experiência de pensar tem sua própria qualidade estética. Difere das experiências que são reconhecidascomo estéticas, mas o faz somente em seu material. O material das belas-artes consiste em qualidades; o da experiência que tem uma conclusão intelectual consiste em sinais ou símbolos sem qualidade intrínseca própria, mas que representam coisas que, em outra experiência, podem ser qualitativamente vivenciadas. A diferença é enorme. É uma das razões por que a arte estritamente intelectual nunca será popular como a música. Não obstante, a experiência em si tem um caráter emocional satisfatório, porque possui integração interna e um desfecho atingido por meio de um movimento ordeiro e organizado. Essa estrutura artística pode ser sentida de imediato. Nessa medida, é estética. Ainda mais importante é o fato de que não só essa qualidade é um motivo significativo para se empreender uma investigação intelectual e mantê-la verdadeira, como também nenhuma atividade intelectual é um evento integral (uma experiência), a menos que seja complementada por essa qualidade. Sem ela, o pensamento é inconclusivo. Em suma, a experiência estética não pode ser nitidamente distinguida da intelectual,uma vez que esta última precisa exibir uma chancela estética para ser completa.

A mesma afirmação se aplica a um curso de ação que seja dominantemente prático, isto é, que consista em um franco fazer. E possível ser eficiente na ação e não ter uma experiência consciente. Uma atividade pode ser automática demais para permitir uma sensação daquilo a que se referee de para onde vai. Ela chega ao fim, mas não a um desfecho ou consumação na consciência. Os obstáculos são superados pela habilidade sagaz, mas não alimentam a experiência.Há também aquelas que relutam na ação, insegura se inconclusivas como os matizes da literatura clássica. Entre os polos da inexistência de propósito e da eficiência mecânica, situam-se os cursos de ação em que os atos sucessivos são perpassados por um sentimento de significado crescente, que é conservado e se acumula em direção a um fim vivido como a consumação de um processo. Os político se generais de sucesso, que se transformam em estadistas como César e Napoleão, têm em si algo do showman. Por si só,isso não é arte, mas é um sinal, creio eu, de que o interesse não recai exclusivamente, ou talvez não principalmente, no resultado considerado em si (como no caso da mera eficiência), mas sim no resultado como desfecho de um processo.Há interesse em concluir uma experiência. E possível que essa experiência seja prejudicial ao mundo, e que sua consumação seja indesejável. Mas ela tem um caráter estético.

A identificação grega da boa conduta com a conduta dotada de proporção, graça e harmonia, a kalon-agathon,é um exemplo mais óbvio da qualidade estética que distingue a ação moral. Um grande defeito daquilo que passa pormoral é seu caráter inestético. Em vez de exemplificar uma ação resoluta e entusiástica, isso assume a forma de concessões parciais e ressentidas às exigências do dever. Masas ilustrações talvez só façam obscurecer o fato de que qualquer atividade prática, desde que seja integrada e se mova por seu próprio impulso para a consumação, tem uma qualidade estética.

Talvez possamos ter uma ilustração geral, se imaginarmos que uma pedra que rola morro abaixo tem uma experiência. Com certeza, trata-se de uma atividade suficientemente "prática". A pedra parte de algum lugar e se move, com a consistência permitida pelas circunstâncias,para um lugar e um estado em que ficará em repouso – em direção a um fim. Acrescentemos a esses dados externos, à guisa de imaginação, a ideia de que á pedra anseia pelo resultado final; de que se interessa pelas coisas que encontrano caminho, pelas condições que aceleram e retardam seu avanço, com respeito à influência delas no final; de que age e se sente em relação a elas conforme a função de obstáculo ou auxílio que lhes atribui; e de que a chegada finala o repouso se relaciona com tudo o que veio antes, como a culminação de um movimento contínuo. Nesse caso, a pedra teria uma experiência, e uma experiência com qualidade estética.

Se passarmos desse caso imaginário para nossa própria experiência, veremos que grande parte dele é mais próximad  o que acontece com a pedra real do que qualquer coisa que cumpra as condições que a fantasia acabou de ditar. Isso porque, em muito de nossa experiência, não nos interessamos pela ligação de um incidente com o que veio antes e o que vem depois. Não há um interesse que controle a rejeição ou a seleção atenta do que será organizado na experiência em evolução. As coisas acontecem, mas não são definitivamente incluídas nem decisivamente excluídas; vagamos com a correnteza. Cedemos de acordo com a pressão externa ou fugimos e contemporizamos. Há começos e cessações, mas não inícios e conclusões autênticos. Uma coisa substitui outra, mas não a absorve nem a leva adiante. Há experiência, porém ela é tão frouxa e discursiva que não é uma experiência singular. E desnecessário dizer que tais experiências são inestéticas.

Portanto, o inestético situa-se entre dois limites. Emum polo, está a sucessão solta, que não começa em nenhum lugar particular e que termina - no sentido de cessar – em um lugar inespecífico. No polo oposto, estão a suspensão e a constrição, que avançam desde as partes que têm apenas uma ligação mecânica entre si. Existe um número tão grande desses dois tipos de experiência que, inconscientemente, elas passam a ser tidas como a norma de toda experiência. Assim, quando aparece o estético, ele contrasta tão nitidamente com a imagem formada sobre a experiência que é impossível combinar suas qualidades especiais com as características da imagem, e o estético recebe um lugar e um status externos. A descrição feita aqui da experiência que é dominantemente intelectual e prática pretende mostrar que tal contraste não está envolvido no ter-se uma experiência; que, ao contrário, nenhuma experiência de nenhum tipo constitui uma unidade, a menos que tenha qualidade estética.

Os inimigos do estético não são o prático nem o intelectual. São a monotonia, a desatenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual. Abstinência rigorosa, submissão coagida e estreiteza, por um lado, desperdício, incoerência e complacência displicente, por outro, são desvios emdireções opostas da unidade de uma experiência. Algumas considerações desse tipo talvez tenham sido o que induziu Aristóteles a invocar a "média proporcional" como designação adequada daquilo que é característico na virtude e no estético. Ele estava formalmente correto. No entanto, "média"e "proporção" não são autoexplicativas, não devem ser tomadas em um sentido matemático a priori, mas são propropriedades pertinentes a uma experiência que tem um movimento evolutivo rumo a sua consumação.

Enfatizei que toda experiência integral se desloca para um desfecho, um fim, uma vez que só para depois que as energias nela atuantes fazem seu trabalho adequado. Esse fechamento de um circuito de energia é o oposto da paralisação, da estase. O amadurecimento e a fixação são opostos polares. A própria luta e o conflito podem ser desfrutados, apesar de serem dolorosos, quando vivenciados como um meio para desenvolver uma experiência; fazem parte dela por levarem-na adiante, e não apenas por estarem presentes. Há, como veremos dentro em pouco, um componente de sujeição, de sofrimento no sentido lato, em toda experiência.Caso contrário, não haveria uma incorporação do que veio antes. E que "incorporar", em qualquer experiência vital, é mais do que pôr algo no alto da consciência, acima do que era sabido antes. Envolve uma reconstrução que pode ser dolorosa. Se a fase necessária do submeter-se a alguma coisa é prazerosa ou dolorosa em si mesma, depende de condições específicas. É indiferente para a qualidade estética total, a não ser pelo fato de haver poucas experiências estéticas que são totalmente jubilosas. Decerto elas não devem ser caracterizadas como divertidas e, ao incidirem sobre nós, envolvem um sofrimento que ainda assim é coerente com a percepção completa desfrutada - ou, a rigor, é parte dela.

Falei da qualidade estética que arredonda uma experiência, em sua completude e unidade, como emocional. Talvez essa referência cause dificuldades. Tendemos a pensar nos sentimentos como coisas tão simples e compactas quanto as palavras com que  os denominamos. Alegria, tristeza, esperança,medo, raiva ou curiosidade são tratados como se, por si só, cada um fosse uma espécie de entidade que entra em cena já pronta, uma entidade capaz de durar muito ou pouco tempo, mas cuja duração, crescimento e carreira é irrelevante para sua natureza. Na verdade, quando significativas, as emoções são qualidades de uma experiência complexa que se movimenta e se altera. Digo quando significativas porque, de outro modo, elas não passam de explosões e irrupções de um bebê perturbado. Todas as emoções são qualificações de um drama e se modificam com o desenrolar do drama. Diz-se,à s vezes, que as pessoas se apaixonam à primeira vista. Mas aquilo por que caem de amores não é uma coisa daquele instante. Onde ficaria o amor, se fosse comprimido em um momento em que não houvesse espaço para a estima e a solicitude? A natureza íntima da emoção manifesta-se na experiência de quem assiste a uma peça no palco ou lê um romance. E concomitante ao desenvolvimento da trama; e a trama requer um palco, um espaço cm que se desenvolver e tempo para se desdobrar. A experiência é afetiva, mas nela não existem coisas separadas, chamadas emoções.

Do mesmo modo, as emoções ligam-se a acontecimento se objetos em seu movimento. Não são privadas, a não ser em casos patológicos. E até uma emoção "anobjetal" exige algo além dela mesma a que se prender e, por isso, gera prontamente uma ilusão, na falta de algo real. A emoção faz parte do eu, certamente. Mas faz parte do eu interessado no movimento dos acontecimentos em direção a um desfecho desejado ou indesejado. Pulamos de imediato ao nos assustarmos, assim como enrubescemos no instante em que sentimos vergonha. Mas o susto e o recato envergonhado não são, nesses casos, estados afetivos. Em si, não passam de reflexos automáticos. Para se tornarem emocionais, precisam fazer parte de uma situação inclusiva e duradoura que envolva o interesse pelos objetos e por seus desfechos. O pulo de susto transforma-se em um medo emocional quando se constata ou se supõe existir um objeto ameaçador, o qual é preciso enfrentar ou do qual convém fugir. O rubor converte-se em uma emoção de vergonha quando, em pensamento, a pessoa liga um ato que praticou a uma reação desfavorável de alguém mais a ela.

Coisas físicas, vindas dos confins da Terra, são fisicamente transportadas e fisicamente levadas a agir e reagir umas sobre as outras, na construção de um novo objeto. O milagre da mente é que algo parecido ocorre em uma experiência sem transporte nem montagem físicos. A emoção é a força motriz e consolidante. Seleciona o que é congruente e pinta com suas cores o que é escolhido, com isso conferindo uma unidade qualitativa a materiais externamente díspares e dessemelhantes. Com isso, proporciona unidade nas e entre as partes variadas de uma experiência. Quando a unidade é do tipo já descrito, a experiência tem um caráter estético, mesmo que não seja, predominantemente, uma experiência estética.

Dois homens se encontram; um deles é candidato a um emprego, enquanto o outro detém a possibilidade de decidira questão. A entrevista pode ser mecânica, composta por perguntas padronizadas, cujas respostas decidem superficialmente o assunto. Não há uma experiência em que os dois homens se conheçam, nada que não seja uma repetição, por meio da aceitação ou recusa, de algo que já aconteceu dezenas de vezes. A situação é tratada como se fosse um exercício de anotação em um registro contábil. Mas é possível que ocorra uma interação em que se desenvolva uma nova experiência. Onde devemos buscar uma descrição de tal experiência? Não em registros contábeis nem em um tratado de economia, sociologia ou psicologia organizacional, mas no teatro ou na ficção. Sua natureza e importância só podem expressar-se pela arte, porque há uma unidade da experiência que só pode ser expressa como uma experiência. A experiência é de um material carregado de suspense e avança para sua consumação por uma série interligada de incidentes variáveis. As emoções primárias, por parte do candidato, podem ser a esperança ou a desesperança no início, e a euforia ou o desapontamento no final. Essas emoções qualificam a experiência como uma unidade. Mas, à medida que a entrevista prossegue, desenvolvem-se emoções secundárias, como variações do afeto primário subjacente. É possível até que cada atitude e gesto, cada frase, quase cada palavra, produzam mais do que uma oscilação na intensidade da emoção fundamental; em outras palavras, produzam uma mudança de matiz e coloração em sua qualidade. O empregador discerne, por meio de suas próprias reações afetivas, o caráter do candidato. Projeta-o imaginariamente no trabalho a ser feito e avalia sua aptidão pela maneira como os elementos da cena se reúnem e entram em choque, ou se encaixam. A presença e o comportamento do candidato harmonizam-se com suas atitudes e desejos, ou entram em conflito e se chocam. Fatores como esses, de qualidade intrinsecamente estética, são as forças que levam os componentes variados da entrevista a um desfecho decisivo. Entram na resolução de qualquer situação, seja qual for sua natureza dominante, em que haja incerteza e suspense.

Por conseguinte, existem padrões comuns a várias experiências, por mais diferentes que elas sejam entre si nos detalhes de seu conteúdo. Há condições a serem satisfeitas, sem as quais a experiência não pode vir a ser. Os contornos do padrão comum são ditados pelo fato de que toda experiência é resultado da interação entre uma criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive. Um homem faz algo: digamos, levanta uma pedra. Em consequência disso, fica sujeito a algo, sofre algo: o peso, o esforço, a textura da superfície da coisa levantada. As propriedades assim vivenciadas determinam a ação adicional. A pedra pode ser pesada ou angulosa demais, ou insuficientemente sólida; ou então, as propriedades vivenciadas mostram que ela se presta para o uso a que se destina. O processo segue até emergir uma adaptação mútua entre o eu e o objeto, e essa experiência específica chega ao fim. O que se aplica a esse exemplo simples é aplicável, em termos da forma, a todas as experiências. A criatura atuante pode ser um pensador em seu gabinete de estudos e o meio com que ele interage pode consistirem ideias em vez de uma pedra. Mas a interação dos dois constitui a experiência total vivenciada, e o encerramento que a conclui é a instituição de uma harmonia sentida.

Uma experiência tem padrão e estrutura porque não apenas é uma alternância do fazer e do ficar sujeito a algo, mas também porque consiste nas duas coisas relacionadas. Pôr a mão no fogo não é, necessariamente, ter uma experiência. A ação e sua consequência devem estar unidas na percepção. Essa relação é o que confere significado; apreendê-lo é o objetivo de toda compreensão. O âmbito e o conteúdo das relações medem o conteúdo significativo de uma experiência. A experiência de uma criança pode ser intensa, mas, por falta de uma base de experiências anteriores, as relações entre o estar sujeita a algo e o fazer são mal apreendidas, e a experiência não tem grande profundidade nem largueza. Ninguém jamais atinge uma maturidade tal que perceba todas as conexões envolvidas. Certa vez, um autor (o Sr.Hinton) escreveu um romance intitulado The Unleaner [O desaprendedor]. Ele retratava toda a duração infinita da vida após a morte como um reviver dos incidentes ocorridos em uma vida curta na Terra, em urna descoberta contínua das relações envolvidas entre eles.

A experiência é limitada por todas as causas que interferem na percepção das relações entre o estar sujeito e o fazer. Pode haver interferência pelo excesso do fazer ou pelo excesso da receptividade daquilo a que se é submetido. O desequilíbrio em qualquer desses lados embota a percepção das relações e torna a experiência parcial e distorcida, comum significado escasso ou falso. O gosto pelo fazer, a ânsia de ação, deixa muitas pessoas, sobretudo no meio humano apressado e impaciente em que vivemos, com experiências de uma pobreza quase inacreditável, todas superficiais. Nenhuma experiência isolada tem a oportunidade de se concluir, porque o indivíduo entra em outra coisa com muita precipitação. O que é chamado de experiência fica tão disperso e misturado que mal chega a merecer esse nome. A resistência é tratada como uma obstrução a ser vencida, e não como um convite à reflexão. O indivíduo passa a buscar,mais ainda inconscientemente do que por uma escolha deliberada, situações em que possa fazer o máximo de coisas no prazo mais curto possível.

As experiências também têm seu amadurecimento abreviado pelo excesso de receptividade. Nesse caso, o que se valoriza é o mero passar por isto ou aquilo, independentemente da percepção de qualquer significado. O acúmulo de tantas impressões quanto for possível é tido como "vida", muito embora nenhuma delas seja mais do que um adejo e um gole bebido depressa. Talvez passem mais fantasias e impressões pela consciência do sentimentalista ou do sonhador do que pela do homem movido pela ânsia de ação. Mas sua experiência é igualmente distorcida, porque nada cria raízes na mente quando não há equilíbrio entre o agir eo receber. É necessária uma ação decisiva para que se estabeleça contato com as realidades da vida, e para que as impressões possam relacionar-se com os fatos de tal maneira que seu valor seja testado e organizado.

Como a percepção da relação entre o que é feito e o que é suportado constitui o trabalho da inteligência, e como o artista é controlado, em seu processo de trabalho, por sua apreensão da conexão entre o que ele já fez e o que fará a seguir, a ideia de que o artista não pensa de maneira tão atenta e penetrante quanto o investigador científico é absurda. O pintor tem de vivenciar conscientemente o  efeito de cada pincelada que dá ou não saberá o que está fazendo nem para onde vai seu trabalho. Além disso, tem de discernir uma relação particular entre o agir e o suportar em relação ao todo que deseja produzir. Apreender tais relações é pensar, uma das modalidades mais exigentes do pensamento. A diferença entre os quadros de diferentes pintores se deve tanto a diferenças de capacidade de levar adiante esse pensar quanto a diferenças de sensibilidade à simples cor e a diferenças na destreza da execução. No que concerne à qualidade básica dos quadros, a diferença, com efeito, depende mais da qualidade da inteligência empregada na percepção das relações do que de qualquer outra coisa - embora, é claro, não se possa separar a inteligência da sensibilidade direta,além de ela estar ligada, ainda que de maneira mais externa, à habilidade.

Toda ideia que desconhece o papel necessário da inteligência na produção de obras de arte se baseia na identificação do pensamento com o uso de um tipo de material específico de signos verbais e palavras. Pensar efetivamente, em termos das relações entre qualidades, é uma exigência tão severa ao pensamento quanto pensar em termos de símbolos verbais e matemáticos. Aliás, uma vez que é fácil manipular as palavras mecanicamente, a produção de uma autêntica obra de arte provavelmente exige mais inteligência do que a maior parte do chamado pensamento que se dá entre os que se orgulham de ser "intelectuais".

Procurei mostrar, nesses capítulos, que o estético não é algo que se intromete na experiência de fora para dentro, seja pelo luxo ocioso ou pela idealização transcendental, masque é o desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente completa. Essa é a realidade que considero a única base segura sobre a qual se pode erigir a teoria estética. Resta sugerir algumas simplificações da realidade subjacente.

Na língua inglesa não há uma palavra que inclua deforma inequívoca o que é expresso pelas palavras "artístico"e "estético". Visto que "artístico" se refere primordialmente ao ato de produção, e "estético", ao de percepção e prazer, a inexistencia de um termo que designe o conjunto dos dois processos é lamentável. Às vezes, o efeito disso é separá-los um do outro, é ver a arte como algo que se superpõe ao material estético ou, por outro lado, leva à suposição de que, como a arte é um processo de criação, a percepção dela e o prazer que dela se extrai nada têm em comum com o ato criativo. Seja como for, há um certo incômodo verbal no fato de ora sermos compelidos a usar o termo"estético" para abranger o campo inteiro, ora a limitá-lo ao aspecto perceptual receptivo de toda a operação. Refiro-me a esses fatos óbvios como preliminar de uma tentativa de mostrar que a concepção da experiência consciente comoa percepção de uma relação entre o fazer e o estar sujeito a algo permite compreender a ligação que a arte como produção, por um lado, e a percepção e apreciação como prazer, por outro, mantêm entre si.

A arte denota um processo de fazer ou criar. Isso tanto se aplica às belas-artes quanto às artes tecnológicas. A arte envolve moldar a argila, entalhar o mármore, fundir o bronze, aplicar pigmentos, construir edifícios, cantar canções, tocar instrumentos, desempenhar papéis no palco, fazer movimentos rítmicos na dança. Toda arte faz algo com algum material físico, o corpo ou alguma coisa externa a ele, com ou sem o uso de instrumentos intervenientes, e com vistas à produção de algo visível, audível ou tangível. Tão acentuada é a fase ativa ou do "agir" na arte que os dicionários costumam defini-la em termos da ação habilidosa, da habilidade na execução. O Oxford Dictionary ilustra com uma citação de John Stuart Mill: "A arte é o esforço de perfeição na execução", enquanto Matthew Arnold a chama de"habilidade pura e impecável".

A palavra "estético" refere-se, como já assinalamos, à experiência como apreciação, percepção e deleite. Mais denota o ponto de vista do consumidor do que o do produtor. É o gusto, o gosto; e, tal como na culinária, a clara ação habilidosa fica do lado do cozinheiro que prepara os alimentos, enquanto o gosto fica do lado do consumidor, assim como,na jardinagem, há uma distinção entre o jardineiro que planta e cuida e o morador que desfruta do produto acabado.

Essas próprias ilustrações, porém, assim como a relação existente ao se ter uma experiência entre o agir e o ficar sujeito a algo, indicam que a. distinção entre o estético e o artístico não pode ser levada a ponto de se tornar uma separação. A perfeição na execução não pode ser medida ou definida em termos da execução; implica aqueles que percebem e desfrutam do produto executado. O cozinheiro prepara a comida para o consumidor, e a medida do valor do que é preparado se encontra no consumo. A mera perfeição na execução, julgada isoladamente em seus próprios termos, provavelmente poderia ser mais bem alcançada por uma máquina do que pela arte humana. Por si só, ela é técnica, no máximo, e existem grandes artistas que não figuram nas fileiras superiores dos técnicos (a exemplo de Cézanne), do mesmo modo que há grandes pianistas que são grandes no plano estético, e que Sargent não é um grande pintor.

Para que a habilidade seja artística, no sentido final, ela precisa ser "amorosa"; precisa importar-se profundamente com o tema sobre o qual a habilidade é exercida. Vem-nos à mente um escultor cujos bustos sejam maravilhosamente exatos. Talvez seja difícil dizer, na presença da fotografia de um deles e de uma fotografia do original, qual é a da pessoa em si. No plano do virtuosismo, eles são admiráveis. Entretanto, resta saber se o criador dos bustos teve uma experiência pessoal, a. qual se interessou por fazer com que fosse compartilhada pelos que observam seus produtos. Para ser verdadeiramente artística, uma obra também tem de ser estética – ou seja, moldada para uma percepção receptiva prazerosa. E claro que a observação constante é necessária para o criador, enquanto ele produz. Mas, se sua percepção não for também de natureza estética, será um reconhecimento monótono e frio do que foi produzido, usado como estímulo para o passo seguinte, em um processo essencialmente mecânico.

Em suma, a arte, em sua forma, une a mesma relação entre o agir e o sofrer, entre a energia de saída e a de entrada, que faz que uma experiência seja uma experiência. Graças à eliminação de tudo o que não contribui para a organização recíproca dos fatores da ação e da recepção uns nos outros, e em vista da escolha apenas dos aspectos e traços que contribuem para sua interpenetração recíproca, o produto é uma obra de arte estética. O homem desbasta,entalha, canta, dança, gesticula, molda, desenha e pinta. O fazer ou o criar é artístico quando o resultado percebido é de tal natureza que suas qualidades, tal como percebidas, controlam a questão da produção. O ato de produzir, quando norteado pela intenção de criar algo que seja desfrutado na experiência imediata da percepção, tem qualidades que faltam à atividade espontânea ou não controlada. O artista, ao trabalhar, incorpora em si a atitude do espectador.

Suponhamos, à guisa de ilustração, que um objeto finamente elaborado, cuja textura e proporção sejam sumamente agradáveis à percepção, seja tido como obra de um povo primitivo. Depois, descobrem-se provas que revelam tratar-se de um produto natural acidental. Como coisa externa, ele continua a ser exatamente o que era antes. Mas deixa prontamente de ser uma obra de arte e se transforma em uma "curiosidade" natural. Passa a ter lugar em um museu de história natural, e não em um museu de arte. E o extraordinário é que a diferença assim produzida não é apenas de classificação intelectual. Cria-se uma diferença na percepção apreciativa, e de maneira direta. Portanto, a experiência estética - em seu sentido estrito - é vista como inerentemente ligada à experiência de criar.

uando estética, a satisfação sensorial dos olhos e ouvidos o é porque não existe sozinha, mas ligada â atividade de que é consequência. Até os prazeres do paladar têm para o gastrônomo uma qualidade diferente da que apresentam para alguém que meramente "goste" dos alimentos ao comê-los. Essa diferença não é apenas de intensidade. O gastrônomo tem consciência de muito mais do que o sabor da comida. Nesse sabor, tal como diretamente experimentado, entram qualidades que dependem da referência a sua fonte e a sua forma de preparação, ligada a critérios de excelência. Assim como a produção deve absorver em si as qualidades do produto, tal como percebidas, e ser regulada por elas, a visão, a audição e o paladar tornam-se estéticos, por outro lado, quando a relação com uma forma distinta de atividade classifica o que é percebido.

Há um componente de paixão em toda percepção estética. No entanto, quando somos tomados pela paixão, comona raiva, no medo ou no ciúme extremos, a experiência é decididamente inestética. Não se sente uma relação com as qualidades da atividade que gerou a paixão. Por conseguinte, faltam ao material da experiência elementos de equilíbrio e proporção. É que estes só podem estar presentes quando, como na conduta que tem graça ou dignidade, o ato é controlado por um senso refinado das relações que ele sustenta - sua adequação à ocasião e à situação.

O processo da arte em produção relaciona-se organicamente com o estético na percepção - tal como Deus, na criação, inspecionou sua obra e a considerou boa. Até ficar perceptualmente satisfeito com o que faz, o artista continua a moldar e remoldar. O fazer chega ao fim quando seu resultado é vivenciado como bom - e essa experiência não vem por um mero julgamento intelectual e externo, mas na percepção direta. O artista, comparado a seus semelhantes, é alguém não apenas especialmente dotado de poderes de execução, mas também de uma sensibilidade inusitada às qualidades das coisas. Essa sensibilidade também orienta seus atos e criações.

Ao manipularmos, tocamos e sentimos; ao olharmos, vemos; ao escutarmos, ouvimos. A mão se move com a agulha usa da para gravar ou com o pincel. O olho acompanha e relata a consequência daquilo que é feito. Graças a essa ligação íntima, o fazer posterior é cumulativo, e não uma questão de capricho nem de rotina. Em uma enfática experiência artístico-estética, a relação é tão estreita que controla ao mesmo tempo o fazer e a percepção. Essa intimidade vital da ligação não pode ser alcançada quando apenas a mão e os olhos estão implicados. Quando ambos não agem como órgãos do ser total, existe apenas uma sequência mecânica de senso e movimento, como em um andar automático. A mão e o olho, quando a experiência é estética, são apenas instrumentos pelos quais opera toda a criatura viva, impulsionada e atuante durante todo o tempo. Portanto, a expressão é emocional e guiada por um propósito.

Graças à relação entre o que é feito e o que é sofrido, há na percepção um sentido imediato das coisas como compatíveis ou incompatíveis, reforçadoras ou interferentes. As consequências do ato de fazer, tal como transmitidas nos sentidos, mostram se aquilo que é feito transmite a ideia que está sendo executada ou assinala um desvio e uma ruptura. Na medida em que o desenvolvimento de uma experiência é controlado, em referência a essas relações imediatamente sentidas de ordem e realização, essa experiência passa a ter uma natureza predominantemente estética. O impulso para a ação torna-se um impulso para o tipo de ação que resulte em um objeto satisfatório na percepção direta. O moleiro molda o barro para fazer um pote útil para guardar cereais, mas o faz de um modo tão regulado pela série de percepções que resumem os atos sequenciais do fazer que o pote é marcado por uma graça e encanto duradouros. A situação geral é a mesma ao se pintar um quadro ou esculpir um busto. Além disso, há em cada etapa uma antecipação do que virá. Essa antecipação é o elo que liga o fazer seguinte a seu efeito para os sentidos. O que é feito e o que é vivenciado, portanto, são instrumentais um para o outro, de maneira recíproca, acumulativa e contínua.

O fazer pode ser enérgico, e o sofrer pode ser agudo e intenso. Contudo, a menos que se relacionem entre si para formar um todo na percepção, a coisa feita não é plenamente estética. O fazer, por exemplo, pode ser uma exibição de virtuosismo técnico, e o vivenciar, uma onda de sentimentos ou um devaneio. Quando o artista não aperfeiçoa uma nova visão em seu processo de fazer, ele age mecanicamente e repete algum velho modelo, fixado como uma planta baixa em sua mente. Uma dose incrível de observação e do tipo de inteligência exercido na percepção de relações qualitativas caracteriza o trabalho criativo na arte. As relações devem ser notadas não apenas com respeito umas às outras, duas a duas, mas ligadas ao todo em construção; são exercidas tanto na imaginação quanto na observação. Surgem irrelevâncias que são distrações tentadoras; sugerem-se digressões disfarçadas de enriquecimento. Há momentos em que a apreensão da ideia dominante se enfraquece e o artista é inconscientemente levado a preenchê-la, até seu pensamento voltar a se fortalecer. O verdadeiro trabalho do artista é construir uma experiência que seja coerente na percepção ao mesmo tempo que se mova com mudanças constantes em seu desenvolvimento.

Quando um escritor põe no papel ideias já claramente concebidas e coerentemente ordenadas, é porque o verdadeiro trabalho foi feito previamente. Ou então, ele talvez confie em que a maior perceptibilidade induzida pela atividade e sua transmissão sensível orientem sua conclusão do trabalho. O mero ato de transcrição é esteticamente irrelevante, a não ser na medida em que entra integralmente na formação de uma experiência que se move para a completude. Até a composição concebida mentalmente, e portanto fisicamente privada, é pública em seu conteúdo significante,visto que é concebida com referência à execução em um produto que é perceptível e que pertence, portanto, ao mundo comum. Caso contrário, seria uma aberração ou um sonho passageiro. A ânsia de expressar através da pintura as qualidades percebidas de uma paisagem é contígua à demanda de lápis ou pincel. Sem uma encarnação externa, a experiência permanece incompleta; em termos fisiológicos e funcionais, os órgãos dos sentidos são órgãos motores e se ligam por meio da distribuição de energias no corpo humano, e não apenas anatomicamente, a outros órgãos motores. Nãoé por uma coincidência linguística que "edificação", "construção"e "obra" designam tanto um processo quanto seu produto final. Sem o significado do verbo, o do substantivo permanece vazio.

O escritor, o compositor musical, o escultor ou o pintor podem retraçar, durante o processo de produção, aquilo que fizeram anteriormente. Quando isso não é satisfatório, na fase perceptual ou em andamento da experiência, eles podem, até certo ponto, começar de novo. Esse retraçar nãoé fácil de realizar no caso da arquitetura - o que talvez seja uma das razões de haver tantas construções feias. Os arquitetos são obrigados a levar suas ideias à conclusão antes que ocorra a tradução delas em um objeto completo da percepção. A impossibilidade de construir simultaneamente a ideia e sua encarnação objetiva impõe uma desvantagem. No entanto, eles também são forçados a elaborar suas ideias em termos do meio de encarnação e do objeto da percepção final, a não ser que trabalhem de maneira mecânica e rotineira. É provável que a qualidade estética das catedrais medievais se deva, em certa medida, ao fato de sua construção não ter sido tão controlada quanto são as de hoje por projetos e especificações feitos de antemão. Os projetos iam crescendo junto com as construções. Entretanto, mesmo um produto próprio de Minerva, sendo artístico, pressupõe um período anterior de gestação, no qual os atos e percepções projetados na imaginação interagem e se modificam mutuamente. Toda obra de arte segue o plano e o padrão de uma experiência completa, fazendo que ela seja sentida de maneira mais intensa e concentrada.

Não é muito fácil, no caso de quem percebe e aprecia, compreender a união íntima do fazer com o sofrer, tal como se dá no criador. Somos levados a crer que o primeiro simplesmente absorve o que existe sob forma acabada, sem sedar conta de que essa absorção envolve atividades comparáveis às do criador. Mas receptividade não é passividade. Também ela é um processo composto por uma série de atos reativos que se acumulam em direção à realização objetiva.

Caso contrário, não haveria percepção, mas reconhecimento. A diferença entre os dois é imensa. O reconhecimento é a percepção refreada antes de ter a possibilidade de se desenvolver livremente. No reconhecimento, existe o começo de um ato de percepção. Mas esse começo não é autorizado a servir ao desenvolvimento de uma percepção plena da coisa reconhecida. É detido no ponto em que serve a uma outra finalidade, como ao reconhecermos um homem na rua para cumprimentá-lo ou evitá-lo, e não para ver o que há nele.

No reconhecimento, tal como no estereótipo, recaímos em um esquema previamente formado. Um detalhe ou arranjo de detalhes serve de pista para a simples identificação. No reconhecimento, basta aplicar esse simples contorno ao objeto presente, como um estêncil. Às vezes, no contato com um ser humano, temos a atenção chamada para traços, talvez apenas de características físicas, dos quais antes nãotínhamos conhecimento. Percebemos nunca ter conhecido aquela pessoa, não tê-la visto em um sentido pregnante. Começamos então a estudá-la e "absorvê-la". A percepção substitui o mero reconhecimento. Há um ato de reconstrução, e a consciência torna-se nova e viva. Esse ato de ver envolve a cooperação de elementos motores, embora eles permaneçam implícitos, em vez de se explicitarem, e envolve a cooperação de todas as ideias acumuladas que possam servir para completar a nova imagem em formação. O reconhecimento é fácil demais para despertar uma consciência vívida. Não há resistência suficiente entre o novo e o velho  para assegurar a consciência da experiência vivida. Até o cão que late e abana o rabo alegremente ao ver seu dono voltar é mais plenamente vivo em sua acolhida do amigo do que o ser humano que se contenta com o mero reconhecimento.

O simples reconhecimento satisfaz-se quando se afixa uma etiqueta ou um rótulo apropriado, tendo "apropriado"o sentido daquele que serve a um propósito externo ao ato de reconhecer - do mesmo modo que um vendedor identifica mercadorias por uma amostra. Ele não envolve nenhuma agitação do organismo, nenhuma comoção interna. Mas o ato de percepção procede por ondas que se estendem em série por todo o organismo. Assim, não existe na percepção um ver ou um ouvir acrescido da emoção. O objeto ou cena percebido é inteiramente perpassado pela emoção. Quando uma emoção despertada não permeia o material percebido ou pensado, ela é preliminar ou patológica.

A fase estética ou vivencial da experiência é receptiva. Envolve uma rendição. Mas a entrega adequada do eu só é possível através de uma atividade controlada, que bem pode ser intensa. Em grande parte de nossa interação com o que nos cerca, nós nos retraímos, ora por medo - nem que seja de gastar indevidamente nossa reserva de energia - ora por preocupação com outras questões - como no caso do reconhecimento. A percepção é um ato de saída da energia para receber, e não de retenção da energia. Para nos impregnarmos de uma matéria, primeiro temos de mergulhar nela. Quando somos apenas passivos diante de uma cena, ela nos domina e, por falta de atividade de resposta, não percebemos aquilo que nos pressiona. Temos de reunir energia e colocá-la em um tom receptivo para absorver.

Todos sabem que é preciso um aprendizado para enxergar através de um microscópio ou um telescópio, ou para ver uma paisagem tal como o geólogo a vê. A ideia de que a percepção estética é assunto de momentos ocasionais é uma das razões para o atraso das artes entre nós. O olho e o aparelho visual podem estar intactos, e o objeto pode estar fisicamente presente - a Catedral de Notre Dame ou o retrato de Hendrickje Stoffels pintado por Rembrandt. Em um sentido simples, os objetos podem ser "vistos". Podem ser olhados, possivelmente reconhecidos, e ter os nomes corretos ligados a eles. Mas, por falta de uma interação contínua entre o organismo total e os objetos, estes não são percebidos, decerto não esteticamente. Um grupo de visitantes, conduzido por um guia em uma galeria de pintura, tendo a atenção chamada para tal ou qual ponto alto, aqui e ali, nãopercebe; só por acaso é que há sequer interesse em ver um quadro por seu tema vividamente realizado.

Para perceber, o espectador ou observador tem de criar sua experiência. E a criação deve incluir relações comparáveis às vivenciadas pelo produtor original. Elas não são idênticas, em um sentido literal. Mas tanto naquele que percebe quanto no artista deve haver uma ordenação dos elementos do conjunto que, em sua forma, embora não nos detalhes, seja idêntica ao processo de organização conscientemente vivenciado pelo criador da obra. Sem um ato de recriação, o objeto não é percebido como uma obra de arte. O artista escolheu, simplificou, esclareceu, abreviou e condensou a obra de acordo com seu interesse. Aquele que olha eleve passar por essas operações, de acordo com seu ponto de vista e seu interesse. Em ambos, ocorre um ato de abstração, isto é, de extração daquilo que é significativo. Em ambos, existe compreensão, na acepção literal desse termo- isto é, uma reunião de detalhes e particularidades fisicamente dispersos em um todo vivenciado. Há um trabalho feito por parte de quem percebe, assim como há um trabalho por parte do artista. Quem é por demais preguiçoso, inativo ou embotado por convenções para executar esse trabalho não vê nem ouve. Sua "apreciação" é uma mescla de retalhos de saber com a conformidade às normas da admiração convencional e com uma empolgação afetiva confusa, mesmo que genuína.

As considerações já apresentadas implicam a semelhança e a dessemelhança, graças a ênfases específicas, entre uma experiência, no sentido pregnante, e a experiência estética. A primeira tem uma qualidade estética; se assim não fosse, seu material não se configuraria em uma experiência coerente singular. Não é possível separar entre si,em uma experiência vital, o prático, o intelectual e o afetivo,e jogar as propriedades de uns contra as características dos outros. A fase afetiva liga as partes em um todo único; "intelectual"simplesmente nomeia o fato de que a experiência tem sentido; e "prático" indica que o organismo interage com os eventos e objetos que o cercam. A mais complexa investigação filosófica ou científica e a mais ambiciosa iniciativa industrial ou política têm, quando seus diversos ingredientes constituem uma experiência integral, qualidade estética. É que, nesse momento, suas partes variadas se interligam, em vez de meramente sucederem umas às outras. E as partes, por sua ligação vivenciada, movem-se para uma consumação e um desfecho, e não para uma mera cessação no tempo. Além disso, tal consumação não espera na consciência até que toda a empreitada se conclua. É antecipada durante todo o processo e reiteradamente saboreada com especial intensidade.

Todavia, as experiências em questão são predominantemente intelectuais ou práticas, e não distintivamente estéticas, em função do interesse e do propósito que as iniciam e as controlam. Em uma experiência intelectual, a conclusão tem valor por si só. Pode ser extraída como uma fórmula ou uma "verdade", e pode ser usada em sua totalidade independente como um fator e um guia em outras investigações. O fim, o término, é importante não por si, mas como integração das partes. Não tem outra existência. Uma peça teatral ou um romance não são a frase final, mesmo que os personagens sejam descartados como vivendo felizes para sempre. Em uma experiência nitidamente estética, algumas características atenuadas em outras experiências se revelam dominantes; as subordinadas tornam-se controladoras – a saber, as características em virtude das quais a experiência é uma experiência integrada e completa por si só.

Em toda experiência integral existe forma, porque existe organização dinâmica. Chamo a organização de dinâmica por ela levar tempo para ser completada, por ser um crescimento. Há início, desenvolvimento, consumação. O material é ingerido e digerido pela interação com aquela organização vital dos resultados da experiência anterior que constitui a mente do trabalhador. A incubação prossegue até que aquilo que é concebido seja partejado e tornado perceptível como parte do mundo comum. Uma experiência estética só pode compactar-se em um momento no sentido de um clímax de processos anteriores de longa duração se chegar em um movimento excepcional que abarque em si todas as outras coisas e o faça a ponto de todo o resto ser esquecido. O que distingue uma experiência como estética é a conversão da resistência e das tensões, de excitações que em si são tentações para a digressão, em um movimento em direção a um desfecho inclusivo e gratificante.

Vivenciar a experiência, como respirar, é um ritmo de absorções e expulsões. Sua sucessão é pontuada e transformada em um ritmo pela existência de intervalos, períodos em que uma fase é cessada e uma outra é inicial e preparatória.William James fez uma comparação oportuna entre o curso de uma experiência consciente e os voos e pousos alternados de um pássaro. Os voos e pousos ligam-se intimamente uns aos outros; não são um punhado de alçamentos não relacionados, seguidos por alguns saltinhos igualmente não relacionados. Cada lugar de repouso, na experiência, é um vivenciar em que são absorvidas e incorporadas as consequências de atos anteriores, e, a menos que esses atos sejam de extremo capricho ou pura rotina, cada um traz em si um significado que foi extraído e conservado. Tal como no avanço de um exército, todos os ganhos do que já foi efetuado são periodicamente consolidados, sempre com vista são que será feito a seguir. Se nos movemos depressa demais,afastamo-nos da base de suprimentos - da acumulação de significados  -, e a experiência torna-se agitada, superficial e confusa. Se demoramos demais, depois de haver extraído um valor líquido, a experiência morre de inanição.

A forma do todo, portanto, está presente em todos os membros. Realizar e consumar são funções contínuas, e nãomeros fins localizados em apenas um lugar. O gravador, o pintor ou o escritor encontram-se no processo de completar algo a cada etapa de seu trabalho. A cada momento, têm de preservar e resumir o que se deu antes como um todo e com referência a um todo que virá. Caso contrário, não há coerência nem segurança em seus atos sucessivos. A sucessão de feituras no ritmo da experiência confere variedade e movimento; protege o trabalho da monotonia e das repetições inúteis. As vivências experimentadas são os elementos correspondentes no ritmo e proporcionam unidade; protegem o trabalho da falta de propósito de uma mera sucessão de excitações. Um objeto é peculiar e predominantemente estético, gerando o prazer característico da percepção estética, quando os fatores determinantes de qualquer coisa que se possa chamar de experiência singular se elevam muito acima do limiar da percepção e se tornam manifestos por eles mesmos.

 

 

        

 

 

 

John Dewey (1859-1952)

  

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