
Tipos de Comportamento Musical. In: Introdução à Sociologia da Música: Doze Preleções Teóricas. Trad. F. R. de Moraes Barros. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
[178] Tipos de Comportamento Musical
Quem tivesse que dizer, com desembaraço, o que é Sociologia da Música, provavelmente logo responderia: conhecimentos sobre a relação entre os ouvintes musicais, como indivíduos socializados, e a própria música. Tais conhecimentos necessitariam da investigação empírica mais extensa possível. E esta só se tornaria inicialmente produtiva, só se elevaria para além da compilação de fatos insignificantes, quando os problemas já se achassem estruturados teoricamente; quando se soubesse o que é relevante e sobre o que se espera obter esclarecimento. Para tanto, um questionamento específico pode ter uma serventia maior que as considerações mais genéricas sobre música e sociedade. Assim, de início, ocupar-me-ei teoricamente dos comportamentos típicos de escuta musical sob as condições da sociedade atual Nesse aspecto, não se pode simplesmente passar ao largo de situações anteriores; o contrário, esvair-se-ia aquilo que é característico de nossos dias.
Em contrapartida, como em muitos setores da Sociologia material, faltam dados de pesquisa comparáveis e confiáveis relativos ao passado. Na discussão científica, sua ausência é de bom grado utilizada para equalizar a crítica ao estado existente das coisas, na medida em que se supõe que antigamente não teria sido melhor. Quanto mais a pesquisa se fia no estabelecimento dos dados disponíveis sem levar em consideração a dinâmica em que se achavam enredados, mais apologética ela se torna; vendo-se tanto mais inclinada a assumir a situação que ela toma por tema como um dado último, reconhecendo-a no duplo sentido da palavra. Assevera- se, por exemplo, que os meios de produção mecânicos e de massa teriam, pela primeira vez, levado a música a um número incontável de indivíduos e que, por isso, conforme os conceitos de generalidade estatística, o nível de escuta teria elevado-se. Hoje, não tencionaria adentrar nesse assunto complexo, no qual há pouca coisa benéfica: a incansável convicção do progresso cultural e a jeremiada culturalmente conservadora //[179] acerca do nivelamento são dignas uma da outra. Materiais para uma resposta responsável ao problema encontram-se no trabalho de E. Suchman, que veio à luz sob o título Convite à música, no volume Radio Research 1941, em Nova York. Tampouco conto proferir teses definitivas sobre a distribuição dos tipos de escuta. Eles devem ser concebidos apenas enquanto perfis qualitativamente descritivos, com os quais se ilustra algo a respeito da escuta musical a título de um índex sociológico e, provavelmente, também algo a propósito de suas diferenciações e seus elementos determinantes. Sempre que se fizer afirmações de teor quantitativo - algo que dificilmente pode ser evitado em considerações teórico-sociológicas -, elas têm de ser verificadas e não devem, pois, ser entendidas como asserções conclusivas. É quase desnecessário sublinhar que os tipos de escuta não vêm à tona de modo puramente químico. Decerto estão expostos à desconfiança geral da ciência empírica em relação às tipologias, e, em especial, da Psicologia. Aquilo que, segundo tal tipologia, vigora de modo inevitável como tipo misto, em verdade, não é um tipo, mas um testemunho de que o princípio de estilização escolhido se torna obrigatório ao material; trata-se, antes do mais, da expressão de uma dificuldade metódica, não de uma propriedade intrínseca à coisa mesma. Todavia, os tipos não são imaginados de modo arbitrário. São pontos de cristalização determinados por considerações fundamentais sobre a Sociologia da Música. Partindo-se do princípio de que a problemática e a complexidade sociais também se expressam por meio das contradições presentes na relação entre a produção e a recepção musicais, na estrutura da escuta inclusive, não se deve esperar, pois, nenhum continuum ininterrupto desde uma escuta perfeitamente adequada a uma escuta desconexa e sub-rogada [surrogathaften], mas, ao contrário, que tais contradições e oposições também sejam refletidas na própria natureza da escuta musical, bem como nos hábitos de escuta. Contrariedade significa descontinuidade. O que se contradiz acha-se deslocado em relação ao outro. A reflexão sobre a problemática social primária da música, assim como as observações ampliadas e sua múltipla autocorreção, conduziram à tipologia. Se esta tivesse sido traduzida para critérios empíricos e testada a contento, decerto teria de ser novamente modificada e diferenciada, // [180] em especial, no que se refere ao tipo de "ouvinte do entretenimento" [Unterhaltungshorer]. Quanto mais grosseiras são as produções do espírito estudadas pela Sociologia, tanto mais finos precisam tornar-se os procedimentos que visam dar conta de tais fenômenos. É muito mais difícil discernir por que um bit musical [ein Schlager] é admirado e outro não que elucidar por que razão se alude mais a Bach que a Telemann, ou, então, a uma sinfonia de Haydn mais que a uma peça de Stamitz. A intenção da tipologia é, com consciência dos antagonismos sociais e de maneira plausível, agrupar a descontinuidade das reações diante da própria música.
Essa tipologia deve ser entendida apenas como definição de tipos de ideais puros; isso ela partilha com todas as outras. Transições permanecem fora de questão. Se as considerações feitas estiverem certas, os tipos, ou, ao menos alguns deles, deveriam ser separados entre si de maneira mais plástica do que provavelmente supõe uma mentalidade científica que forma seus grupos não de acordo com o sentido dos fenômenos, mas apenas de modo instrumental ou conforme uma classificação não conceitual do material empírico. Deveria ser possível atribuir aos tipos individuais marcas tão tangíveis a ponto que se pudesse decidir quanto à legitimidade ou não de sua adoção, e, se necessário, após o estabelecimento de uma distribuição, fosse dado formar algumas correlações em termos sociais e sociopsicológicos. Mas, para se tomarem frutíferas, as chamadas investigações empíricas teriam de se orientar pela relação da sociedade com os objetos musicais. Tal sociedade consiste no conjunto dos ouvintes ou não ouvintes musicais, mas as propriedades estruturais e objetivas da música determinam, por certo, as reações dos ouvintes. O cânon que regula a construção dos tipos não se refere, tal como ocorre nas investigações empíricas mera e subjetivamente orientadas, apenas ao gosto, às preferências, às aversões e aos costumes dos ouvintes. Ele se assenta, antes do mais, sobre a adequação ou inadequação da escuta com relação ao que é escutado. Pressupõe-se que as obras são algo pleno de sentido e, em si, objetivamente estruturado, abrindo-se à análise e podendo ser apreendido e experimentado em diferentes níveis de acuidade. Sem se vincular de modo demasiadamente rígido a isso e sem exigir completude, os tipos contam delimitar um âmbito que vai da completa adequação da escuta, // [181] tal como esta corresponde à consciência desenvolvida dos músicos profissionais mais avançados, até a total falta de compreensão e a completa indiferença ao material, que, aliás, de maneira alguma deve ser confundida com a falta de sensibilidade musical. A ordenação não é, porém, unidimensional; sob diferentes pontos de vista, ora este, ora aquele tipo pode coadunar-se mais com o objeto de análise. Os comportamentos característicos são mais importantes que a exatidão lógica da classificação. São enunciadas suposições sobre a significância [Signifikanz] dos tipos que se destacam.
A dificuldade de apreender cientificamente o conteúdo subjetivo da experiência musical, para além dos índices mais extrínsecos, é quase proibitiva. O experimento pode atingir os graus de intensidade da reação, mas dificilmente os de qualidade. Os efeitos literais, fisiológicos e mensuráveis que uma música exerceabriu-se mão, inclusive, das acelerações da pulsação- não são, em absoluto, idênticos à experiência estética de uma obra de arte considerada como tal. A introspecção musical é extremamente incerta. A verbalização do vivido musical depara-se, para a maioria dos seres humanos, com obstáculos intransponíveis, na medida em que não se dispõe da terminologia técnica; além disso, a expressão verbal já se acha pré-filtrada, sendo que, para as reações primárias, seu valor cognitivo é duplamente questionável. Por isso, no que diz respeito à constituição específica do objeto a partir do qual podemos apreender uma atitude, a diferenciação da experiência musical parece ser o método mais frutífero para se ir além de trivialidades nesse setor da Sociologia da Música, que lida, não com a música em si, mas com os seres humanos. A pergunta pelos critérios de conhecimento do expert, a quem facilmente se atribui a competência nessa matéria, está submetida à própria problemática social e inerentemente musical. A communis opinio de uma agremiação de especialistas sobre o assunto não seria uma base suficiente. A interpretação do conteúdo musical se decide na compoição interna das obras e, sendo assim, levando em conta a força da teoria ligada à experiência de tais obras.
O próprio expert, como primeiro tipo, deveria ser definido segundo o critério de uma escuta totalmente // [182] adequada. Ele seria o ouvinte plenamente consciente, ao qual, a princípio, nada escapa e que, ao mesmo tempo, presta contas daquilo que escuta. Aquele que, digamos, ao se confrontar com uma peça dissolvida e avessa a anteparos arquitetônicos tangíveis, como, por exemplo, o segundo movimento do Trio para cordas de Webern, soubesse nomear suas partes formais, este bastaria, de saída, para constituir tal tipo. Ao seguir espontaneamente o curso de uma música intrincada, ele escuta a sequência de instantes passados, presentes e futuros de modo tão contíguo que uma interconexão de sentido se cristaliza. Ele apreendedistintamente até mesmo os elementos intrincados da simultaneidade, como a harmonia e da polifonia. O comportamento completamente adequado poderia ser caracterizado como escuta estruturada. Seu horizonte é a lógica musical concreta compreende-se aquilo que se apreende em sua necessidade, que decerto nunca é literalmente causal. O lugar dessa lógica é a técnica; para aquele que também pensa com o ouvido, os elementos individuais da escuta se tornam imediatamente atuantes como elementos técnicos, sendo que nas categorias técnicas se revela, essencialmente, a interconexão de sentido. Atualmente, esse tipo poderia limitar-se, em boa medida, ao círculo dos músicos profissionais, sem que todos estes cumprissem satisfatoriamente seus critérios já que muitos intérpretes contrapor-se-iam a eles. É provável que, em termos quantitativos, tal tipo malseria levado em consideração; marcaria o valor limítrofe de uma série de tipos que dele se afastam. Há de se ter cautela para não explicar apressadamente o privilégio de profissionais desse tipo a partir do processo social de alienação entre o espírito objetivo e os indivíduos na fase tardia burguesa, e, com isso, desvalorizar o próprio tipo. Desde que as declarações dos músicos são transmitidas, em geral eles concedem o entendimento integral de seu trabalho apenas a seus pares. O crescente grau de complexidade das composições teria, no entanto, reduzido o círculo dos ouvintes plenamente competentes, pelo menos em relação ao número crescente destes que escutam música.
Todavia, aquele que desejasse fazer experts todos ouvintes, // [183] comportar-se-ia de modo desumano e utópico sob as condições sociais dominantes. A coerção que a figura integral da obra exerce sobre o ouvinte é inconciliável, não apenas com sua constituição, sua situação e seu nível de formação musical não profissional, mas também com a liberdade individual. Isso legitima, face ao tipo de ouvinte-expert, aquele que designa o bom ouvinte. Também este último escuta além do detalhe musical; estabelece inter-relações de maneira espontânea e tece juízos bem fundamentados, que não se fiam em meras categorias de prestígio ou no arbítrio do gosto. Mas não tem consciência ou, pelo menos, não está plenamente ciente das implicações técnicas e estruturais. Compreende a música tal como se compreende, em geral, a própria linguagem mesmo que desconheça ou nada saiba sobre sua gramática e sintaxe, ou seja, dominando inconscientemente a lógica musical imanente. É o tipo que pensamos quando dizemos de alguém que ele é musical, desde que se lembre, com tais palavras, de sua capacidade de escuta imediata e prenhe de ·discernimento, e não do fato' de alguém simplesmente "gostar" de música. Do ponto de vista histórico, tal musicalidade exigiu uma determinada homogeneidade da cultura musical; além disso, uma certa compacidade da situação geral, ao menos, da que está relacionada aos grupos que reagem às obras de arte. Algo desse tipo teria sobrevivido até o século XIX nos círculos nobres e aristocráticos. O próprio Chopin queixou-se, em carta, sobre a forma dispersa da vida da alta sociedade, conferindo-lhe, no entanto, legítima compreensão, na medida em que censurava o fato de a burguesia só ter sensibilidade para desempenhos circenses e impactantes - diria-se, hoje, parashows. Em Proust, no círculo de Guermantes, surgem figuras que fazem jus a esse tipo, tal como o Barão de Charlus. Poder-se-ia conjecturar que o bom ouvinte, mais uma vez de modo inversamente proporcional ao crescente número de ouvintes musicais em geral, torna-se cada vez mais raro com o incontido processo de aburguesamento da sociedade e com a vitória do princípio de troca e rendimento, estando ameaçado inclusive de desaparecer. Dá-se a conhecer uma polarização das extremidades da tipologia: de acordo com a tendência, hoje vigora um tudo ou nada. Isso se deve, é claro, ao declínio da iniciativa musical dos não profissionais // [184] sob a pressão dos meios de comunicação de massa e de reprodução mecânica. O amateur ainda poderia sobreviver onde se conservaram restos de uma sociedade aristocrática, como em Viena. O tipo em questão já não poderia ser encontrado em meio à pequena burguesia, afora aventureiros individuais e polêmicos, que se travestiam de experts e com os quais, de resto, o bom ouvinte outrora se dava muito melhor se comparado à forma como os chamados eruditos atualmente se dão com a produção avançada.
Do ponto de vista sociológico, a herança do amateur cedeu terreno a um terceiro, que, em rigor, vem à luz como um tipo burguês, e, via de regra, como frequentador de óperas e concertos. É possível chamá-lo de ouvinte de cultura ou consumidor cultural [Bildungskonsumenten]. Escuta muito, e, sob certas circunstâncias, de modo incessante; é bem informado e coleciona discos. Respeita a música como um bem cultural, e, muitas vezes, como algo que se deveria conhecer pela própria importância social; tal atitude vai desde o sentimento de respeito sério até um esnobismo vulgar. A relação espontânea e direta com a música, a capacidade de execução conjunta e estrutural é substituída pela quantidade máxima possível de conhecimentos sobre música, e, em especial, acerca de dados biográficos e méritos dos intérpretes, assuntos sobre os quais se conversa inutilmente horas a fio. Não raro, este tipo dispõe de extensor conhecimento do acervo musical, mas de sorte que lhe permite resumir os temas das obras musicais famosas e recorrentemente repetidas, identificando imediatamente aquilo que se escuta. Pouco importa o desenvolvimento de uma composição, sendo que a estrutura auditiva é atomizada: o tipo fica à espera de momentos determinados, melodias supostamente belas e momentos grandiosos. Sua relação com a música tem, em geral algo de fetichista. Consome conforme a medida da legitimação pública do que é consumido. A alegria pelo consumo, por aquilo que, de acordo com sua linguagem, a música lhe dá, prepondera sobre a alegria consoante à própria obra de arte e que esta lhe exige. Há uma ou duas gerações, cumpriria imputar a esse tipo a alcunha de wagneriano; hoje, ele provavelmente insultaria Wagner. Se porventura ele assiste ao concerto de um violinista, aquilo que lhe interessa é, como se diz, // [185] o som por ele emitido, e, isto quando não é o próprio violino; a voz, quando lhe é dado escutar um cantor; e, eventualmente, a afinação do piano, quando da escuta de um pianista. É o homem da aclamação [Würdigung]. A única coisa a que esse tipo reage primariamente é ao desempenho exorbitante, por assim dizer, mensurável, ou seja, um certo virtuosismo arriscado, bem no sentido do ideal de show. A técnica, o meio, impõe-se-lhe como um fim em si mesmo; quanto a isto, ele não está tão distante da escuta de massa atualmente disseminada. Contudo, comporta-se de modo hostil com relação às massas e age de maneira elitista. Seu milieu é a alta e elevada burguesia com transições rumo à pequena burguesia; sua ideologia é, não raro, reacionária e culturalmente conservadora. Quase sempre tem aversão à arrojada música nova; comprova-se o nível de seu potencial para discriminar e, simultaneamente, conservar valores à medida que, em conjunto, lança ofensas ao material supostamente amalucado. Conformismo e convencianalismo definem amplamente o caráter social desse tipo. Em termos quantitativos, até mesmo em países com grànde tradição musical como, por exemplo, Alemanha e Áustria, ele também seria de pouca importância, embora englobe notadamente mais representantes que o segundo tipo. Trata-se, pois, de um grupo-chave. Decide, em grande medida, o que se passa na vida musical official. Desse grupo são recrutados não apenas os habituais assinantes das grandes sociedades de concerto e das casas de ópera; não só aqueles que peregrinam rumo a festivais tais como os de Salzburg e Bayreuth, mas, em especial, as agremiações que formam os programas e planos de recital e, antes de mais nada, as damas americanas dos comitês de concertos filarmônicos. Estas induzem àquele gosto reificado que, sem razão de ser, sente-se superior ao gosto da indústria cultural. Mais e mais, os bens culturais musicais administrados por esse tipo se transmudam nos bens atinentes ao consumo manipulado.
Deveríamos acrescentar um tipo que, também, não se deixa determinar por meio da relação com a constituição específica do que é escutado, mas pela sua própria mentalidade independente, distante do objeto: o ouvinte emocional. Sua relação com a música é menos enrijecida e indireta que a do consumidor cultural embora esteja, sob um outro ponto de vista, bem mais distante daquilo que é percebido; o qual se transforma para ele em expediente essencial para a ativação de excitações instintivas reprimidas ou domadas pelas normas civilizatórias,// [186] convertendo-se em uma fonte variegada de irracionalidade que ainda permite, àqueles que se aferram inexoravelmente ao sistema de autoconservação racional, sentir alguma coisa. Na maioria das vezes, já não tem mais nada a ver com a forma do escutado: a função dominante é a de ativação. Escuta-se de acordo com o princípio de energias sensíveis específicas: percebe-se a luz quando esta incide sobre o olho. No entanto, esse tipo pode, de fato, reagir de modo particularmente intenso a uma música de tom emocional evidente, como, por exemplo, a música de Tchaikovsky; é fácil fazê-lo chorar. As transições rumo ao consumidor cultural ·são fluidas; também raramente falta, em seu arsenal, apelo aos valores sentimentais da música autêntica. Na Alemanha, o ouvinte emocional - talvez sob o fascínio do respeito à cultura musical- parece ser menos característico que nos países anglo-saxões, nos quais a pressão civilizatória mais estrita obriga a evadir-se em âmbitos sentimentais internos e incontroláveis; mesmo em países atrasados do ponto de vista do desenvolvimento tecnológico, como, por exemplo, os países eslavos, o tipo de ouvinte em questão ainda poderia desempenhar um papel relevante. A produção contemporânea aceita e produzida na União Soviética é feita aos moldes desse tipo; de qualquer modo, seu ideal de Eu musical reproduz o cliché do eslavo que pende de maneira impetuosa de lá para cá entre o fervor sentimental e a melancolia. Tal como se dá musicalmente, esse tipo decerto também é, conforme o hábito geral, ingênuo, ou, pelo menos, insiste em sê-lo. O caráter imediato de sua reação acompanha uma cegueira, às vezes taciturna, diante das coisas às quais reage. Não que saber de nada, por isso, é desde o início fácil de comandar. A indústria cultural musical termina por incorporá-lo; na Alemanha e na Áustria, algo semelhante ocorre desde o início da década de 1930, com o gênero da canção popular artificial [des synthetischen Volkslieds]. Do ponto de vista social, seria difícil identificar tal tipo. Cumpre com certeza acreditar que ele seria capaz de manifestar algum entusiasmo; é, possivelmente, menos enrijecido e autocomplacente que o consumidor cultural, em relação ao qual ele assume uma posição mais profunda conforme os conceitos do gosto estabelecido. Mas tal tipo também pode ser incluído justamente no grupo dos obstinados homens de negócio, dos ominosos tired businessmen, que, em um âmbito que permanence sem consequências à vida, // [187] procuram uma compensação para aquilo de que, em geral, devem abdicar. O tipo vai desde aqueles que, independentemente da espécie de música, são incitados a elaborar representações e associações imagéticas até aqueles cujas vivências musicais se aproximam do vago sonho diurno, do cochilo [Dosen]; a ele se assemelha, ao menos, o ouvinte sensual [sinnliche Horer] no sentido estrito do termo, que, de modo culinário, saboreia o estímulo sonoro isolado. Algumas vezes, gostariam de utilizar a música como um receptáculo no qual pudessem derramar as próprias emoções amedrontadas, ou, conforme a teoria psicanalítica, as emoções "livremente flutuantes"; noutras ocasiões, por meio da identificação com a música, desejariam atrair para essa última as emoções que sentem falta em si próprios. Problemas tão difíceis como estes carecem tanto da investigação como da pergunta pela efetividade ou pelo caráter fictício das emoções auditivas; talvez, ambas não se diferenciem tão claramente entre si. Se as diferenciações no modo de reação musical devem ser remetidas às diferenciações da pessoa em geral, ou, em outro termo, às diferenciações sociológicas, eis algo que, por ora, ficará apenas subentendido. Caberia suspeitar do efeito de uma ideologia pré-fabricada da cultura musical oficial sobre o ouvinte emocional; o mesmo é dizer, daquele relativo ao anti-intelectualismo.
A escuta consciente é confundida com um comportamento frio e extrinsecamente reflexivo diante da música. Com ímpeto, o tipo emocional opõe-se às tentativas de ensejar-lhe uma escuta estrutural- talvez, com mais impetuosidade que o consumidor cultural, que, por fim, estaria disposto a isto por amor à cultura [Bildung]. Em verdade, a escuta adequada também não seria concebível sem uma possessão afetiva. Com a ressalva de que, aqui, a própria coisa é possuída, sendo que a energia psíquica é absorvida pela concentração sobre ela; ao passo que, para o ouvinte emocional, a música consiste em um meio para os fins de sua própria economia pulsional. Ele não se abstém da coisa que também está apta a lhe recompensar com sentimento, mas a transforma em um meio de mera projeção.
Ao menos na Alemanha, formou-se um drástico contratipo [Gegentypus] face ao ouvinte emocional, o qual, em vez de escapar, por meio da música, das proibições da civilização contra o sentimento e do tabu mimético, apropria-se de tais proibições e as erige justamente em norma de seu próprio comportamento musical. Seu ideal é// [188] aquele da escuta estático-musical. Ele desdenha a vida musical oficial como algo desgastado e ilusório; não trata, porém, de ir além dela, senão que foge para trás em direção a períodos que acredita estarem protegidos contra o caráter mercadológico dominante, contra a reificação. Em virtude de seu enrijecimento, termina por render tributos à própria reificação a que se opõe. Poder-se-ia batizar esse tipo essencialmente reativo como ouvinte do ressentimento [Ressentiment-Horer]. A este pertencem aqueles fãs de Bach contra os quais uma vez já advoguei em prol do compositor alemão; e tanto mais aqueles que se enchem de capricho com a música pré-bachiana. Na Alemanha, até o passado mais recente, quase todos os adeptos do Jugendbewegung permaneceram fascinados com tal comportamento. O ouvinte do ressentimento, aparentemente inconformista em seu protesto contra o sistema musical, simpatiza na maior parte das vezes com as ordenações e coletividades pelo simples fato destas existirem, com todas as consequências políticas e sociopsicológicas. Disso prestam testemunho as faces tenazmente sectárias e potencialmente iradas que se agrupam nas chamadas horas bachianas e nos encontros musicais vespertinos. Em sua esfera particular, também são versados na ativa prática musical, de sorte que podem exercê-la sem nenhum empecilho; mas tudo se acha ligado a uma visão de mundo e retorcida. A inadequação [Inadaquanz] consiste em eliminar esferas musicais inteiras, cuja percepção seria bem-vinda em termos de sua relevância. A consciência desse tipo é pré-formada pelos estabelecimentos de metas fixadas por suas confrarias, que, em geral, são partidárias de ideologias extremamente reacionárias, assim como pelo historicismo. A lealdade à obra mantida face ao ideal burguês do showmanship musical torna-se um fim em si mesmo; a seu ver, não se trata tanto de expor e experimentar adequadamente o sentido das obras, mas, antes, de pôr-se em alerta para que nenhum detalhe seja desviado daquilo que consideram a prática de execução de épocas passadas, por mais questionável que seja essa última. Se o tipo emocional tende para o kitsch, o ouvinte do ressentimento tende para a falsa austeridade, que, em nome da segurança no seio da coletividade, opera uma repressão mecânica do próprio estímulo. Outrora se denominavam musicantes; somente sob uma administração fanaticamente antirromântica eles abriram mão de tal nome. Sob a ótica psicoanalítica, // [189] o epíteto continua tendo um caráter muito distintivo, como apropriação justamente daquilo contra o qual se pretende opor. Ele atesta uma ambivalência. O que desejam não é apenas o contrário do musicante, mas são inspirados pelo afeto mais violento contra sua imago. O mais íntimo impulso do ouvinte do ressentimento deveria ser aquele que leva a cabo o antiquíssimo tabu civilizatório contra o impulso mimético da própria arte, ou, melhor ainda, da arte que vive desse impulso. Pretendem eliminar aquilo que não foi domesticado por rígidos ordenamentos, o que há de errático, indomado, cujo último e triste vestígio são os rubati e as exibições dos solistas; tal como outrora nos campos de concentração, trata-se de eliminar da música também os ciganos, a quem concedíamos as operetas como uma esfera a eles reservado. Para o ouvinte do ressentimento, a subjetividade e a expressão acham-se intimamente ligadas à promiscuidade, sendo que ele não consegue sequer suportar o pensamento acerca desta última. No entanto- conforme a concepção de Bergson contida em Deux sources -, a nostalgia de uma sociedade aberta, manifestada na arte, é algo tão forte que mesmo tal ódio não ousa aboli-la. O compromisso é o disparate de uma arte expurgada de mímesis, e, em boa medida, asséptica. Seu ideal é o segredo do ouvinte do ressentimento. Nesse tipo, a sensibilidade para diferenças qualitativas no interior do acervo musical que lhe é preferível é nitidamente menos desenvolvida; a ideologia da unidade deu ocasião para que a sensibilidade em relação às nuances se atrofiasse. Em geral, a diferenciação é tida por algo puritano. É, pois, difícil delimitar a disseminação do ouvinte do ressentimento; atuando de modo organizado e propagandístico, exercendo a mais ampla influência sobre a pedagogia musical, ele também faz as vezes de grupo-chave, aquele que designa as pessoas musicalizadas. Não se pode saber ao certo, porém, se ele possui demasiados representantes para além das organizações. O elemento masoquista de um modo de comportamento que precisa, continuamente, proibir algo a si mesmo remete à coerção coletiva que é sua condição necessária. Tal coerção, enquanto aspecto determinante desse tipo de escuta, também poderia vigorar de forma internalizada lá onde a real situação de escuta acha-se isolada, como ocorre, com frequência, no rádio. Tais interconexões são bem mais complicadas do que aquilo que se deixaria simplesmente determinar pelas correlações // [189] entre o pertencimento a certas organizações e o gosto musical.
Até hoje, a completa decifração social desse tipo ainda não foi realizada; sua orientação está por ser indicada. Em muitos casos, é recrutado da pequena burguesia ascendente, que tinha, diante dos olhos, seu próprio declínio. A dependência, crescent há décadas, característica dos membros dessa camada social os impede cada vez mais de se tornarem indivíduos exteriormente determinados, e, com isso, internamente desenvolvidos. Isso também impediu a experiência da grande música, mediada pelo indivíduo e por sua liberdade, o que de modo algum teve início apenas a partir de Beethoven. Mas, em função do antigo medo da proletarização que vigora no interior do mundo burguês, tal camada se aferra, a um só tempo, à ideologia da ascensão social, do elitista, dos "valores interiores". Sua consciência e seu posicionamento diante da música são resultantes de um conflito entre posição social e· ideologia. Ela procura mediar o conflito criando a ilusão, para si e para os outros, que a coletividade que lhes julga e na qual temem se perder é algo mais elevado que a individuação, como se aquela estivesse existencialmente unida e fosse plena de sentido, humana e por aí em diante. A seu favor concorre o fato de que, em vez de introduzirem a condição real e pós-individual de sua própria coletivização, eles instauram a condição pré-individual tal como esta é sugerida pela música artificial dos musicantes, bem como, em geral, pelo assim chamado Barroco. Imaginam ser possível outorgar a tal coletivização a aura do santo e do imaculado. Conforme a ideologia dos valores interiores, a regressão forçada é travestida em algo melhor do que aquilo que lhes é denegado, o que é formalmente comparável à manipulação fascista, que revestia a imposição coletiva dos atomizados com as insígnias da comunidade popular pré-capitalista e originalmente natural.
Ultimamente, na literatura de periódicos própria ao tipo do ressentimento [Ressentiment-Typus], deparamo-nos com discussões sobre o jazz. Se, durante um bom tempo, tais periódicos viam essa música com desconfiança por algo corrosivo, emerge cada vez mais simpatias que podem estar ligadas à domesticação do jazz, algo que há muito ocorre na América e que na Alemanha é apenas uma questão de tempo. Os tipos expert em jazz // [191] e fã de Jazz - que não são tão diferentes entre si, tal como segabam os experts- são aparentados ao ouvinte do ressentimento no hábito da "heresia percebida", do protesto socialmente retesado e tornado inofensivo contra a cultura oficial, na necessidade de uma espontaneidade musical que se oponha à mesmice prescrita, bem como no que diz respeito ao caráter sectário. Especialmente na Alemanha, qualquer comentário crítico sobre o jazz em sua forma admirada e respectivamente sofisticada é interpretado pelo círculo interno como sacrilégio por parte de um não iniciado. Com o tipo do ressentimento, o ouvinte de jazz também comunga da aversão ao ideal de música clássico- romântico; embora esteja livre do gesto ascético-sacral [asketisch-sakralen]. Aproveita-se justamente do aspecto mimético, mesmo que o tenha padronizado como standard devices. Às vezes - embora nem sempre -, também ele compreende seu objeto de maneira adequada, participando, porém, da limitação do que é reativo. Em virtude de sua justificada relutância contra a impostura cultural, ele preferiria, antes de mais nada, substituir o comportamento estético por uma atitude desportivo-tecnicizada [technifiziert-sportliches]. Arroga-se ousado e vanguardista, quando, em verdade, seus excessos mais extremados foram ultrapassados e levados às últimas consequências há mais de cinquenta anos pela música séria. Entretanto, em aspectos decisivos, como a harmonia impressionista ampliada e a forma simples padronizada, o jazz permanece, em momentos decisivos, limitado a um estreito raio de ação. O predomínio indiscu tível do tempo a que todas as artes sincopadas devem obedecer; a incapacidade de pensar a música em seu sentido propriamente dinâmico, como algo que se desenvolve livremente, concede a esse tipo de ouvinte o caráter do vínculo à autoridade. É claro que, nele, tal caráter adquire a forma edipiana no sentido freudiano: a revolta contra o pai que já se acha eivada da disposição para se sujeitar a ele. Conforme a consciência social, esse tipo é variavelmente progressivo; encontra-se com mais frequência, é claro, em meio à juventude, embora também seja cultivado e explorado pelo comércio voltado ao público teenager. O protesto dificilmente dura muito tempo; em muitos, o que perdura é a disposição para participar. Os ouvintes de jazz são desagregados entre si, sendo que os grupos tratam de manter as variedades específicas. Aqueles que // [192] possuem plena competência técnica desdenham o tosco partidarismo a Elvis Presley considerando - o "coisa de moleque" [Halbstarke]. Se as apresentações relativas a este ou àquele estão, consideradas ao extremo, efetivamente separadas por mundos diferentes, eis algo que caberia à análise musical averiguar. Mesmo aqueles que, segundo ponto de vista próprio, esforçam-se com desespero para separar o puro jazz daquele que foi comercialmente desfigurado não podem, de sua parte, deixar de aceitar os band leaders comerciais em seu distrito de adoração. O âmbito do jazz já se acha ligado à música comercial em função do próprio material inicial dominante, a saber, do hit. À sua fisionomia pertence a incapacidade dilettante de fazer jus ao elemento musical a partir de conceitos musicais precisos - uma incapacidade que, em vão, tenta-se racionalizar referindo-se à dificuldade de precisar o segredo das irregularidades do jazz, quando há muito tempo a notação da música séria aprendeu a fixar variações incomparavelmente mais difíceis. A alienação relativa à cultura musical sancionada remonta, nesse tipo, a uma barbárie pré-artística que se revela, sem mais nem menos, como o irromper de sentimentos primordiais. Tal tipo também é, por ora, numericamente modesto, mesmo quando se considera seus líderes como coparticipantes, mas poderia ampliar-se na Alemanha, fundindo-se, em um tempo não muito distante, com o ouvinte do ressentimento.
Do ponto de vista quantitativo, o mais substancial dentre todos os tipos decerto é aquele que só escuta música como entretenimento, e nada mais. Se pensássemos unicamente em critérios estatísticos, e não no peso dos tipos isolados na sociedade e na vida musical, bem como nas posições típicas a respeito do assunto, então o tipo relativo ao entretenimento seria o único relevante. Mas mesmo segundo tal qualificação, parece questionável se, tendo em vista sua preponderância, o desenvolvimento de uma tipologia mais englobante valeria a pena à Sociologia. A questão se apresenta de modo bem diferente, assim que se considera a música não só algo meramente para-outro [ein Für anderes], qual uma função social, senão algo em-si [ein Ansich]; de sorte que, por fim, a atual problemática social da música se vincula justamente à aparência de sua socialização. O tipo de ouvinte do entretenimento é aquele pelo qual se calibra a indústria cultural, seja porque esta // [193] conforma-se a ele a partir de sua própria ideologia, seja porque ela o engendra ou o traz à tona. Talvez a pergunta isolada sobre a prioridade esteja mal colocada: ambos são função do estado da sociedade, na qual produção e consumo se acham entrelaçados. Do ponto de vista social, o ouvinte do entretenimento deveria ser correlacionado ao fenômeno assaz ressaltado, embora relativo única e exclusivamente a uma consciência subjetiva, de uma ideologia unitária nivelada. Caberia investigar se as diferenças sociais subjacentes observadas em tal ideologia também se revelam nos ouvintes do entretenimento. Uma hipótese seria a de que a camada inferior se deixa levar pelo entretenimento de modo não racionalizado, ao passo que a camada superior o apetrecha, de modo idealístico, com a forma do espírito e da cultura, e, depois, o elege. A música de entretenimento elevada, extremamente divulgada, faria jus a esse compromisso entre ideologia e escuta efetiva. Em função da falta de uma relação específica com o objeto, o tipo consoante ao entretenimento já se acha preparado nesse tipo próprio ao consumidor cultural; para ele, a música não consiste numa estrutura de sentido, mas numa fonte de estímulo. Estão em jogo, aqui, tanto os elementos da escuta emocional quanto os da escuta desportiva. Mas, pela necessidade mesma de uma música que atue como conforto distrativo, tudo isso termina por ser nivelado. No caso extremo deste tipo, é possível que nem mesmo os estímulos atomizados sejam degustados, de sorte que a música já não é mais apreciada a partir de algum sentido inteligível. A estrutura desse tipo de escuta assemelha- se àquela consoante ao ato de fumar. É antes definida mediante o mal-estar ocasionado pelo desligamento do aparelho de rádio do que mediante o prazer obtido, por mais moderado que seja, enquanto ele ainda se acha ligado. Desconhece-se a amplitude do grupo daqueles que, como muito já se falou, se deixam tocar pela música de rádio sem se colocar verdadeiramente à escuta; a partir dele, porém, pode-se lançar luz sobre o âmbito global Impõe-se, então, a comparação com o vício [Süchtigkeit]. O comportamento vicioso possui, em geral, sua componente social: como uma das possíveis imagens de reação frente à atomização, que, como os sociólogos já sublinharam, acompanha a densificação do tecido social O viciado se resigna com a situação de pressão social assim como com sua solidão, à medida que, de certo modo, adorna-a como uma realidade de sua própria essência: a partir do “deixe-me sossegado", cria uma espécie de// [194] reino privado ilusório, no qual acredita poder ser ele mesmo. Mas, como é de se esperar, na total falta de trato com a coisa por parte do ouvinte do entretenimento extremo, seu próprio mundo interior continua totalmente vazio, abstrato e indeterminado. Lá onde essa postura se radicaliza, onde se formam paraísos artificiais tais como os dos fumantes de haxixe, poderosos tabus são quebrados. A tendência ao vício é inata às constituições sociais e não pode ser facilmente reprimida. Resultantes do conflito são, pois, todos os esquemas de comportamento que satisfazem com brandeza a necessidade viciada, sem interferir em demasia na moral do trabalho dominante e na sociabilidade: a postura, no mínimo indulgente, da sociedade para com a degustação de álcool, bem como a aprovação social do ato de fumar. A dependência musical de um bom número de ouvintes do entretenimento teria o mesmo sentido. Prende-se, de qualquer modo, à tecnologia afetivamente dominada. O caráter de compromisso não poderia mostrar-se de forma mais drástica do que naquele comportamento que deixa o rádio ligado enquanto, ao mesmo tempo, põe-se a trabalhar. Em termos históricos, essa atitude desconcentrada está, desde há muito, preparada pelo ouvinte do entretenimento, sendo, de resto, sustentada de diversas maneiras pelo material relativo a tal escuta.
O imenso número desse tipo de ouvinte justifica a hipótese de ele constituir uma espécie da famosa miscelânea a respeito da qual fala a Sociologia norte-americana. Possivelmente, oferece demasiada heterogeneidade para um só denominador. Poder-se-ia imaginar uma classificação que vai desde aquele que não pode trabalhar sem o som do rádio, passando por aquele que, mediante uma escuta, lhe faz sentir a ilusão de estar acompanhado, mata o tempo e paralisa a solidão; vai dos fãs de pot-pourris e melodias de operetas, que valorizam a música como meio de relaxamento, até o grupo nada desprezível de pessoas genuinamente musicalizadas, mas que, excluídas da formação e do âmbito musical em geral por conta de sua posição no processo de trabalho, não participam da música genuína e deixam- se contentar com mercadorias estocadas. Pode-se facilmente encontrar tais indivíduos entre os chamados músicos populares das localidades provincianas. Na maioria das vezes, no entanto, os representantes do tipo do entretenimento são decididamente passivos e reagem com impetuosidade contra o // [195] esforço que as obras de arte lhes impõem; em Viena, por exemplo, faz décadas que a rádio recebe cartas desse grupo em protesto contra as transmissões daquilo que denominam, com uma terrívd expressão, música-opus [opus-Musik] reiterando sua preferência pelo "cromático" - quer dizer, pelo acordeão [Ziehharmonika]. Se o consumidor cultural torce o nariz para a música leve, a preocupação do ouvinte do entretenimento passa a ser, então, a de que já não o tenham em alta conta. Ele é um low-brow consciente de si mesmo, que faz de sua mediocridade uma virtude. Imputa à cultura musical a culpa de ter-lhe sobrecarregado socialmente, afugentando-lhe de sua experiência. O modo específico de escuta é aquele da distração e desconcentração, entrecortado por instantes abruptos de atenção e reconhecimento; essa estrutura auditiva seria, talvez, acessível inclusive ao experiment laboratorial; o program analyzer é o instrumento apropriado a seu caráter primitivo. Resulta ser difícil atribuir aos ouvintes do entretenimento um grupo social determinado. Ao menos na Alemanha, a camada propriamente bem formada irá, conforme sua própria ideologia, distanciar-se dele, sem que pudesse ser demonstrado que a maioria de seus membros de fato escuta algo muito diferente. Na América, faltam tais impedimentos, sendo que também na Europa eles se tornarão frouxos. Conforme seu material predileto, é de se esperar algumas diferenciações sociais no interior dos ouvintes do entretenimento. Assim é que alguns jovens alheios ao culto do jazz poderiam, por exemplo, regozijar-se com os hits, bem como as partes rurais da população poderiam deliciar-se com a música popular com a qual são inundadas. A Radio Research norte-americana deparou-se com o fato fantasmagórico de que a música cowboy e hill billy produzida pela indústria cultural é particularmente apreciada em regiões em que, de fato, ainda vivem cowboys e hill billies. O ouvinte do entretenimento só se deixará descrever adequadamente quando contextualizado a partir dos meios de comunicação de massa tais como o rádio, o cinema e a televisão. Do ponto de vista psicológico, a fraqueza do Eu [Ich-Schwache] é algo que lhe é próprio: como convidado de transmissões radiofônicas, aplaude com empolgação ao sinal de luz que o anima para tanto. Criticar a coisa é algo tão estranho quanto se esforçar para apreendê-la. É cético em relação a tudo aquilo // [196] que lhe exige autorreflexão; como consumidor, está sempre disposto a se solidarizar com seu próprio julgamento, mostrando-se um adepto contumaz da fachada da sociedade que lhe sorri, com os dentes à mostra, nas revistas ilustradas. Sem que fosse politicamente moldado, tal tipo se conforma, seja do ponto de vista musical, seja na realidade, com qualquer dominação que não interfira de modo demasiadamente explícito em seu padrão de consumo. Por fim, caberia dizer algo a respeito do tipo musicalmente indiferente, não musical e antimusical, se for permitido, é claro, reuni-los num só tipo. Não se trata, no caso, como apregoa a convenu burguesa, de uma falta de disposição natural, senão de processos ocorridos durante a primeira infância. Ousamos lançar a hipótese de que, em tal período, esse tipo foi vitimado por uma autoridade brutal, ocasionando-lhe, pois, alguns defeitos. Em geral, crianças com pais particularmente rígidos parecem ser, inclusive, incapazes de aprender à leitura da notação musical- que, aliás, hoje é a precondição de uma formação musical humanamente digna. Esse tipo é nitidamente portador de uma forma de pensar supervalorizada, ou, poder-se-ia dizer, patético-realista; encontrei-o já entre os dotados de talentos técnicos especiais e extremos. Mas não causaria surpresa encontrá-lo, reativo, em grupos alheios à cultura burguesa por conta do privilégio da formação e da situação econômica, como resposta, por assim dizer, à desumanização, e, simultaneamente, como reafirmação. O que significa a falta de musicalidade do ponto de vista social, em seu sentido mais amplo ou mais restrito? Eis algo que ainda não foi estudado; haveria muito que se aprender a partir disto.
As interpretações equivocadas de meu esboço podem estar ligadas à rejeição daquilo que foi dito. Meu propósito não é desdenhar aqueles que fazem parte dos tipos de escuta negativamente descritos nem deformar a imagem da realidade derivando, a partir da constituição problemática da escuta musical, um juízo sobre o estado do mundo. Portar-se intelectualmente dessa forma, como se os seres humanos vivessem apenas para escutar de maneira correta, seria um grotesco eco de esteticismo, bem como seria, inversamente, a tese de que a música, sob a aparência de humanidade, estaria à disposição dos seres humanos apenas para fomentar o pensar sob categorias de troca, como se todo existir fosse tão só um meio para uma outra coisa, // [197] e que, desprezando-se a verdade do tema em questão, se tratasse de falar às pessoas tal como estas gostam que se lhe falem. A situação imperante visada pela tipologia crítica não é culpa daqueles que escutam isso e não aquilo e nem mesmo do sistema da indústria cultural, que fixa sua condição spiritual para poder canibalizá-los melhor, mas se assenta em profundas camadas da vida social, tal como na separação entre o trabalho intelectual e o corporal; entre arte inferior e elevada; na formação superficial [Halbbildung] socializada e, por fim, no fato de que uma consciência correta não é possível em um mundo falso e no qual os modos sociais de reação diante da música permanecem sob o feitiço da falsa consciência. Às diferenciações sociais no interior das diretrizes aqui traçadas não se concede importância demasiadamente grande. Os tipos, ou, ao menos, muitos deles, serão entrecortados pela sociedade em diagonal, como se costuma dizer no jargão da Social Research. Pois, nas insuficiências de cada um deles se reflete o todo cindido, de sorte que cada um é antes representante de uma totalidade em si antagônica do que uma variante social específica. Mostrar-se-ia extremamente limitado aquele que intentasse deduzir os tipos, assim como a supremacia do ouvinte do entretenimento, a partir do conceito de massificação, tão popular entre as massas. Ao ouvinte de entretenimento, indiferente àquilo que lhe é falso atualmente ou desde há muito, não converge as massas sublevadas contra uma cultura que, em sua oferta, lhes é recusada. Seu movimento é reflexo, qual o mal-estar na cultura diagnosticado por Freud, mas habilmente dirigido contra ele. Como em quase todos os tipos, em tal mal-estar também se oculta o potencial de algo melhor, por mais aviltado que este seja, de maneira que sobrevivem ainda a nostalgia e a possibilidade de um comportamento humanamente digno em relação à música e à arte em geral. Decerto seria uma dedução muito improvisada igualar, sem mais, tal comportamento relativo à arte a um comportamento íntegro em relação à realidade. A condição antagônica do todo se expressa no fato de que modos de comportamento musicalmente corretos podem, mediante seu lugar no todo, ensejar ao menos momentos fatais. Aquilo que se faz é incorreto. Mais do que nunca, o ouvinte-expert carece de uma especialização, sendo que a diminuição proporcional do tipo de bom ouvinte - caso termine por se tornar // [198] uma realidade - seria com certeza uma função de tal especialização. Mas, não raro, esta é adquirida com grandes incômodos em relação à realidade, com deformações neuróticas e até mesmo psicóticas do caráter. Por menos que tais condições sejam, conforme o antiquado slogan do gênio e da loucura, necessárias à musicalidade de um estilo significante, tais defeitos são, porém, sintomáticos de uma experiência desregulamentada no caso de músicos extremamente qualificados. Sem dúvida, isso está longe de ser algo acidental, senão que subjaz ao processo da própria especialização o fato de que muitos deles, assim que são confrontados com questões para além de sua área específica de atuação, mostram-se ingênuos e canhestros, chegando a uma completa desorientação e a uma pseudo-orientação desviada. A consciência musical adequada não envolve, nem mesmo imediatamente, uma consciência artística totalmente adequada. A especialização atinge o relacionamento com os diferentes meios; um grupo de jovens artistas plásticos vanguardistas portou-se como fãs de jazz, sem que a diferença de nível se lhes tivesse tornado consciente. Em casos de tal desintegração, cumpre, por certo, pôr em dúvida a pertinência das intenções aparentemente avançadas. Tendo em vista tais complicações, ninguém dentre os milhões de seres assustados, aprisionados e sobrecarregados pode ser apontado com o dedo indicador e cobrado pelo fato de que deveria entender um pouco de música, ou, ao menos, interessar-se por ela. Mesmo a liberdade, que prescinde disto, possui seu aspect humanamente digno, referente a uma condição na qual a cultura já não é imposta a ninguém. Aquele que contempla o céu pacificamente tem, quiçá, mais chance de estar na verdade do que aquele que acompanha corretamente a Eroica. Mas o repúdio à cultura conduz a conclusões acerca do repúdio da cultura aos próprios seres humanos, assim como sobre aquilo que o mundo fez destes últimos. A contradição entre a liberdade respectivamente à arte e os sinistros diagnósticos quanto ao uso de tal liberdade constitui, pois, uma contradição da realidade mesma, e não apenas da consciência que a analisa a fim de contribuir, ainda que minimamente, para sua modificação.





