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In: IRIARTE, R. (Org). Música e literatura no Romantismo alemão. Org. trad. e notas R. Iriarte. Trad. Antonieta M. A. Lopes et alli. Lisboa: Apáginastantas, 1987.

 

 

 

Recensão da Quinta Sinfonia de Beethoven (excertos)(abril/maio de 1810)

 

           

O Recensor tem diante de si uma das obras mais importantes do Mestre, a quem certamente ninguém contestará o primeiro lugar como autor de música instrumental; está impregnado pelo objeto sobre o que vai falar, e ninguém lhe poderá levar a mal, se exceder os limites das críticas comuns e procurar exprimir por palavras tudo o que sentiu no fundo da alma, ao escutar aquela composição.

Quando se fala de Música como de uma arte autônoma, deveria ter-se sempre em mente apenas a música instrumental, a qual, desprezando todo o auxílio, toda a mistura de qualquer outra arte, exprime puramente a genuína essência da Arte, que só nela pode ser encontrada. Ela é a mais romântica das artes, – quase diríamos, a única puramente romântica. A lira de Orfeu abriu os portões do Orco[1]. A Música

desvenda ao homem um reino desconhecido; um mundo que nada tem de comum com o mundo exterior sensível que o rodeia, e no qual ele deixa para trás todos os sentimentos definíveis através de conceitos, para se entregar ao inefável. Quão pouco compreenderam esta essência peculiar da Música aqueles autores de música instrumental que tentaram representar sentimentos definidos ou até acontecimentos, dando, assim, um tratamento plástico à arte que é o extremo oposto das artes plásticas! As sinfonias deste gênero, de Dittersdorf[2], bem como todas as recentes Batailles des Trois Empereurs[3], etc, devem ser punidas com o total esquecimento, como equívocos ridículos que são. No canto, onde a Poesia que se associa á Música sugere, por palavras, determinados afetos, a força mágica da Música atua como o elixir maravilhoso dos sábios, do qual bastam poucas gotas para tornar qualquer bebida deliciosa, magnífica. Todas as paixões que a ópera nos apresenta – amor, ódio, ira, desespero, etc – é a Música que as reveste com o resplendor purpúreo do Romantismo, e mesmo aquilo que sentimos na vida transporta-nos para fora da vida, para o reino do Infinito. Tão forte é a magia da Música: e, atuando com o poder crescente, tinha necessariamente que despedaçar as cadeias de qualquer outra arte.

Se alguns compositores geniais elevaram a música instrumental às alturas em que ela agora se encontra, isso não é devido á maior facilidade dos meios de expressão (aperfeiçoamento dos instrumentos, maior virtuosidade dos executantes), mas a um mais profundo e íntimo conhecimento da essência da própria da Música. Haydn e Mozart, os criadores da moderna música instrumental, foram os primeiros a mostrar-nos a Arte na sua plena glória; mas quem a intuiu com todo amor e penetrou na sua essência mais íntima é – Beethoven. As composições instrumentais destes três mestres respiram um mesmo espírito romântico, que reside exatamente na mesma captação íntima da essência peculiar da Arte; mas o caráter das suas composições distingue-se consideravelmente.

A expressão de uma alma infantil, serena, predomina nas composições de Haydn. A sua sinfonia transporta-nos a prados verdejantes, incomensuráveis, a uma multidão alegre, variegada, de pessoas felizes. Rapazes e raparigas deslizam em danças de roda; crianças ridentes escutando por trás das árvores, por trás das roseiras, cobrem-se de flores, brincando. Uma vida cheia de amor, cheia de felicidade, como antes do pecado, em eterna juventude; nem sofrimento, nem dor; só o desejo doce, melancólico da pessoa amada, que paira longe, à luz rubra do sol poente, não se aproxima e não desaparece; e enquanto ela lá estiver, não cai a noite, pois ela própria é o crepúsculo que incendeia o monte e o bosque.

Mozart transporta-nos até ás profundidades do reino dos espíritos. O temor envolve-nos, mas um temor isento e mortificação, que é sobretudo o pressentimento do Infinito. Amor e melancolia soam em vozes maviosas, a noite do mundo dos espíritos nasce numa clara cintilação purpúrea e, numa saudade inefável, somos atraídos pelas figuras que amavelmente nos convidam para as suas danças de roda e esvoaçam por entre as nuvens na eterna dança das esferas. (Por exemplo, a sinfonia em mi bemol maior de Mozart, conhecida com o nome de Canto dos Cisnes).

Assim também a música instrumental de Beethoven nos revela o reino do extraordinário e do incomensurável. Raios ardentes dardejam pela noite profunda deste reino, e nós apercebemo-nos de sombras gigantescas, que ondeiam para cima e para baixo, nos envolvem cada vez mais estreitamente e tudo aniquilam em nós, exceto a dor da saudade infinita, na qual todo prazer, depois de se ter subitamente elevado em sons jubilosos, cai e fica submerso; e só nesta dor que em si consome, sem destruir, amor, esperança e alegria, que quer despedaçar o nosso peito com uma consonância perfeita de todas as paixões, nós continuamos a viver como videntes extasiados.

O gosto romântico é raro, ainda mais raro o talento romântico: por isso tão poucos são capazes de tocar aquela lira que desvenda o maravilhoso reino do Infinito. Haydn tem uma compreensão romântica do humano na vida humana: é acessível à maioria. Mozart reclama-se do sobre-humano, do maravilhoso, que reside no íntimo do espírito. A música de Beethoven movimenta a alavanca do terror, o medo, do pavor, da dor, e desperta aquela infinita saudade que é a essência do Romantismo. Beethoven é um compositor puramente romântico (exatamente por isso verdadeiramente musical): e deve ser por isso que sua música vocal é menos conseguida, pois esta não permite o anseio indefinido, mas representa apenas os afetos designados pelas palavras, como que transpostos para o reino do Infinito; deve ser pelo mesmo motivo que sua música instrumental raras vezes agrada à multidão. Exatamente esta multidão, que não consegue penetrar na profundidade de Beethoven, não deixa de atribuir-lhe um alto grau de fantasia; em contrapartida, as suas obras são habitualmente consideradas apenas como produtos de um gênio que, despreocupado com a forma e a seleção dos pensamentos, se entregou ao seu fogo interior e às inspirações momentâneas da sua imaginação. Não obstante, no que respeita à ponderação, ele deve ser colocado exatamente ao lado de Haydn e Mozart. Ele separa o seu eu do reino interior dos sons e reina sobre eles como soberano absoluto. Tal como os geômetras da Estética se lamentaram muitas vezes por faltar em Shakespeare toda a verdadeira unidade e o nexo interno; e como só aos olhos que vêm mais fundo cresce, brotando de uma semente, uma bela árvore, botões e folhas, flores e frutos: assim também só uma penetração muito profunda na estrutura interna da música de Beethoven descobre esta elevada ponderação do mestre, que é inseparável do verdadeiro gênio e é alimentada pelo constante estudo da Arte. Bem no fundo da sua alma Beethoven tem o Romantismo da Música, que ele exprime nas suas obras com elevada genialidade e ponderação. O Recensor nunca sentiu isto mais vivamente do que na presente sinfonia que. Num clímax que até ao fim se intensifica, revela aquele Romantismo de Beethoven, mais do que qualquer outra das suas obras, e arrasta irresistivelmente o ouvinte para o maravilhoso reino espiritual do infinito (...)

Beethoven conservou a seqüência habitual dos andamentos da sinfonia; eles parecem ser encadeados de uma maneira fantástica, e a totalidade sussurra aos ouvidos como uma rapsódia genial: mas a alma de todo o ouvinte sensível é sem dúvida profundamente, intimamente arrebatada por um sentimento constante, que é exatamente aquela inefável e presciente saudade, e nele permanece até ao acorde final; durante alguns momentos a seguir ao mesmo, não conseguirá ainda sair do maravilhoso reino espiritual, onde foi circundado pelo prazer e pela dor sob a forma de sons. Além da organização interna da instrumentação, etc., é sobretudo íntimo o parentesco dos diferentes temas entre si que produz aquela unidade, que prende a alma do ouvinte numa mesma disposição íntima. Na música de Haydn e na de Mozart esta unidade está sempre presente. Ela torna-se mais clara ao músico, quando ele descobre o baixo fundamental comum a dois andamentos diferentes, ou quando a ligação de dois andamentos o faz transparecer: mas há uma afinidade mais profunda, que não pode manifestar-se daquela forma e com freqüência apenas fala de espírito para espírito; e é esta afinidade que reina entre os dois Allegros e Minuete e que anuncia magnificamente a genialidade ponderada do Mestre. O Recensor julga pode sintetizar em poucas palavras o seu juízo sobre a magnífica obra de arte do Mestre, ao dizer: genial na concepção e profundamente ponderada na execução, exprime em altíssimo grau o Romantismo em Música (...).

 

 


 

[1] Alusão ao mito de Orfeu que, com sua música, exercia um efeito mágico sobre os seres que o rodeavam, conseguindo pacificar e ordenar a natureza selvagem. Depois da morte de Eurídice, sua esposa, Orfeu desceu ao reino dos mortos (o Orço da mitologia grega), encantando e tornando indefesos os guardiões ferozes desse lugar, de onde não há regresso. Por esse meio conseguiu que Eurídice o seguisse no caminho que conduziria ao reino dos vivos; mas transgrediu a condição que lhe fora imposta pelos deuses: olhou para trás, antes de ter alcançado o termo da sua viagem e, de fato, viu Eurídice, que o seguia; só que nesse mesmo momento a perdeu para sempre.

[2] Dittersdorf (1739-1799) escreveu uma série de sinfonias programáticas. Segundo Friedrich Schnapp, Hoffmann refere-se às 12 sinfonias segundo as Metamorfoses de Ovídio. CF. E.T.A. Hoffmann: Schriften zur Musik, München 1977, p. 439.

[3] Batailles des trois Empereurs: é possível que se trate da sinfonia La Bataille d’Austerlitz de L. E. Jadin. O título da versão para piano publicada em 1806 é: La Grande Bataille d’Austerlitz surnommée la Bataille des trois Empereurs. Fait historique. Cf. op. cit. p. 439.


                                           

 

 

 

 

  E. T. A. Hoffmann (1776-1822)

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