
in: CHASIN, IBANEY. O canto dos afetos, um dizer humanista. Perspectiva, 2004, pp. 12-17; 25; 34.
Carta de Girolamo Mei a Vincenzo Galilei (1572)(excertos)
P.12-13 Disse a M. Pirro, pessoalmente, assim como ele nos fez entender, que eu tinha por certo que cantar dos antigos fosse, como em qualquer canção, uma única ária [melodia], como hoje, na igreja, ouvimos o salmodiar do ofício divino, em especial quando celebrado solenemente. E assim era ainda que o coro, junto aos antigos, contasse com muitas vozes: nas tragédias, por lei, deveria ser de quinze; nas comédias antigas, o número era restrito a vinte e quatro. Em relação ao coro das sátiras, dos ditirambos e de outros hinos que habitualmente eram cantados, em [ocasiões] religiosas, por um grande número de cantores em conjunto, não pude observar quantos, de fato, os cantavam. E aqui me refiro apenas aos coros, pois no que concerne aos personagens de cena (na tragédia, na comédia e na sátira), ou àqueles que sozinhos cantavam qualquer forma de poema (sobre a lira, sobre o aulo, ou outro instrumento), não existe a dúvida [quanto ao número de árias que entoavam], pois tratando-se de uma única voz, necessariamente não poderiam cantar senão uma única (ária).Quanto à ária da voz ser igual àquela do instrumento que a acompanhava: se as notas da
ária vocal eram as mesmas que as do instrumento, seja no que se refere à agudez e gravidade, como em relação à rapidez ou lentidão do número e ritmo, a seu tempo se argumentará. Tive a convicção de que se todo o coro cantasse uma mesma ária, ao notar que a música dos antigos era tomada como valoroso meio de comover os afetos, o que se encontra em muitas observações narradas pelos escritores. Como também, atentar que a música coeva é, como vulgarmente se diz, apta, antes, a algo completamente distinto. Ora [essa distinção entre a música dos antigos e a coeva] nasce necessariamente por força de suas opostas qualidades contrárias, que cada uma costuma trazer naturalmente consigo. As qualidades da antiga são ordenadas e aptas a fazer aquilo que operavam [-mover os afetos]; as da moderna, contrariamente, impedem-lhe este fim. Quanto a estes fundamentos e princípios [da música], é necessário que sejam naturais e sólidos; não derivados, pois, de algo variável. Nesse sentido, visto que a música concerne que concerne ao canto gravita em torno das qualidades da voz, e nisto, especialmente, em ser aguda, média ou grave, pareceu-me que deveria ser primordial que a virtude desta arte repousasse seu principal fundamento necessariamente nestas disposições , mesmas faculdades. De fato, por serem contrárias entre si – nascidas das disposições [humanas e sonoras] contrárias, ocorria, necessariamente, que tivessem propriedades contrárias, as quais, por sua vez, tinham força para produzir reciprocamente efeitos contrários. Visto que a voz foi concedida pela natureza aos seres animados, e aos homens, em particular, para a significação de seus próprios conceitos, era efetivamente divergentes umas das outras – fossem adequadas, cada uma por si e distintamente, para expressar as afeições determinadas; como também era necessário, ademais, que cada uma exprimisse, comodamente, as suas próprias afeições e não as das outras. De tal modo, que a voz aguda não pudesse exprimir a afeição da média com justeza, e menos ainda a da grave; nem a grave, inversamente, a da média, e menos ainda da aguda; nem a média, tampouco, a afeição da aguda ou grave. Mas, ao revés, que a qualidade de uma, sendo necessariamente àquela oposta e reversa, surgisse como impedimento à operação da outra. A partir desta ideação e fundamento passei a argumentar que se a música dos antigos cantasse simultânea e misturadamente várias árias na mesma canção, como fazem nossos músicos com o baixo, tenor, contralto e soprano – ou mesmo com mais ou menos vozes dispostas a um só tempo, sem dúvida teria sido impossível que tivesse podido, galhardamente, mover os afetos desejados no ouvinte, como se vê que a isto chegasse pelos inúmeros relatos e testemunhos de grandes e nobre escritores.
P. 14-15. É coisa igualmente sabida que, dos tons [modos], os da mediania – que estão entre a extrema agudez e a extrema gravidade – são aptos a demonstrar calma e moderada disposição de afeto; os muito agudos são de alma muito comovida e exaltada, e os muitos graves expressam pensamentos tanto abjetos como íntimos. Da mesma forma que um número mediano entre a velocidade e a lentidão revela ânimo pousado, e a velocidade, concitado; a tardança, espírito lento e mandrião. E é claro que, em conjunto, todas essas qualidades da harmonia [= sonoridade melódica] e dos números hão de mover [na alma de outrem], por suas naturais faculdades, aquelas afeições semelhantes a si próprias. Daí que os tons muito agudos e muito graves foram refutados pelos platônicos na sua República; aqueles por serem lamentosos, e estes, lúgubres; aceitos, somente os medianos. Analogamente agiram no atinente aos números e ritmos. Além do mais, todas as qualidades contrárias – naturais ou adquiridas – se enfraquecem ao se misturarem e confundirem entre si. De certo modo, embotam-se mutuamente se possuem força semelhante. Mas da mesma forma se debilitam se as forças de cada qual são distintas, debilitamento que se faz proporcional à potência e vigor de cada uma delas. Disto nasce que , ao se misturarem, operam, quanto a si próprias, na imperfeição ou debilidade. Pois aquele que mesclasse, com iguais quantidades, água fervente e gelada, produziria uma água que, por ser temperada, não apenas impediria a ação de suas forças – no sentido de prover frio ou calor, como as reduziria a uma disposição mediana. Água que, por esta natureza, seria inapta a resfriar ou aquecer, a não ser, quiçá, pelas qualidades da matéria que compõe aquele que dela se servisse. Isto é sendo esta matéria , per si, mais inclinada a este ou àquele excesso, frio ou calor, poderia talvez operar um mais do que o outro.
P. 16-17. E agregue-se: aquilo que os nossos músicos chamam de consonâncias imperfeitas – a terça menor e maior; a sexta menor e maior, assim como todas as outras consonâncias que tais, abundantes em suas canções, não encontra junto aos antigos nenhuma memória. O que sem dúvida – para aqueles que querem discorrer com justeza sobre o problema – tem origem, e nisso se deve e pode racionalmente crer, no fato de que os antigos não se serviam das consonâncias, logo não as conheciam praticamente, assim não as podiam considerar por suas imperfeições. E era natural que não fossem utilizadas, pois cantando com uma única ária, e tendo nisso objetivo inteiramente diverso daquele dos modernos, não tinham tal necessidade, que os nosso músicos têm. Estes receberam e aprovaram as consonâncias imperfeitas somente pela necessidade – criada por eles mesmos – de variar os acordes [produzidos] por estas tão diversas árias que se sobrepõem. Se assim não ocorresse, isto é, inexistisse a preocupação com tal variabilidade dos acordes, e então apenas as consonâncias perfeitas fossem utilizadas, que são pouquíssimas, aos músicos o canto assim pareceria de grande tédio ao ouvido, pois seu deleite é, sem outro fim qualquer, o único objetivo hoje; [não se trata] de incutir mais eficazmente o conceito na alma através do canto, ou de despertar em outrem mais um afeto do que outro. E deste cantar [que deleita], creio eu, os músicos têm um verdadeiro medo. Empregam um tal esforço em fazê-lo enjooso, e isso com tanta delicadezas, que por eles é tido como lei o seguinte: é um grande pecado a realização de um encadeamento entre duas consonâncias perfeitas da mesma espécie. E que os antigos não discutiram sobre as consonância imperfeitas na prática musical porque estas não eram utilizadas – e não somente porque fossem imperfeitas como se poderia argumentar -, é algo que se pode julgar, ou mesmo se ver com clareza, em função de que os antigos refletiram sobre muitas outras qualidades destes mesmo intervalos, como, ademais, de outros imperfeitos (designemo-los hoje assim): a díese [quarto de tom], enarmônica, as duas cromáticas, o lemma e o semitom [maior], a sesquiáltera e o tom. E chamando todos estes intervalos, aptos ou não ao canto, de dissonantes, e mesmo se servindo de alguns simplesmente pelo próprio nome do intervalo posto pela voz – de modo algum então designados por consonância, os antigos, pois, não faziam discernimento desta qualidade. Então, não foi necessário considera-la em sua essência, acidentes e virtudes. Surge assim com muita clareza, pelas coisas ditas, que a música junto aos antigos, cantassem eles suas canções com muitas ou poucas vozes, era um canto e uma ária apenas. Donde não nos deve surpreender demais que, quando composta por um bom maestro, ordenada por artífices judiciosos nesta matéria, e exercitada por pessoas peritas e vozes acomodadas, ao comover outrem tornava-lhe os afetos mais galhardos, algo que se lê [nos antigos]. De sorte que cantando todos uma mesma melodia em um simples tom (e os melhores o faziam com reduzida quantidade de notas, de modo que com sues movimentos descendentes e ascendentes a melodia não ultrapassava em nada os confins naturais do afeto que as palavras pareciam querer exprimir), e se utilizando, a um só tempo, de um mesmo número e ritmo (rápido, lento ou temperado, segundo aquilo que, posto um determinado entendimento do conceito, se buscava exprimir), o canto não poderia deixar de realizar, na maioria das vezes, tudo aquilo que propunha [expressar].
p. 25. Quanto aos efeitos admiráveis da música dos antigos no mover dos afetos, e o fato de que a música moderna não apresenta qualquer vestígio desta condição, ao se observar com olhos sãos aquilo que se disse acima acorrerá que disto não nos espantaremos mais. Nossa música não tem o mesmo fim, talvez por não possuir, como a antiga possuía, maneira de alcança-lo; seu objetivo, unicamente, é o prazer do ouvido; da grega, conduzir outrem, através deste prazer auditivo, à mesma afeição que guarda em si.
p.34(...) o verdadeiro fim, o objetivo real dos antigos músicos, mostra-o certamente o que se disse, e o confirma, indubitavelmente, ver que as faculdades dos músicos, no princípio, eram ligadíssimas à poesia, sendo que os primeiros e melhores foram a um só tempo músicos e poetas. Que a poesia tenha por finalidade a imitação é coisa tão validada que reconfirma-la mais uma vez pareceria ambição despropositada.Por último, se eu penso ser a música e cantar dos antigos algo mais bonito ou mais feio do que a nossa, só posso responder assim: a mim deleitam muito mais os prazeres que são menos artificiosos e mais naturais, e mais harmonizados com suas potências racionalmente mais ativas – às quais, pois, os prazeres realmente pertencem. De modo que quanto mais um efeito de prazer nascer eficazmente dos acentos da voz, de seus tempos, e, por fim, do próprio falar ordenado – pois, por este meio, quem ouve entende aquilo que quem o utiliza quer exprimir -, creio que seria sempre mais aprovado por mim, e me seria de maior deleite, e o teria sempre como coisa mais perfeita, em seu gênero mais bela, face àquele que lhe ficasse aquém de algum modo, por alguma razão ou comparação.
Girolamo Mei (1519-1594)






