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In: CHASIN, Ibaney. O canto dos afetos, um dizer humanista. Perspectiva, 2004, pp. 75-76; 79-80; 82-83.

 

 

 

 

Doni, Trattato di Musica Scenica

 

 

Cap. V – Demonstra-se, com outros argumentos, que a comoção do afeto em cena requer o canto, não a fala linear e ininterrupta dos diálogos.

 

(pp.75-76) Os afetos veementes são potentes incentivos à música, e quando representados em cena se requer maximamente a melodia. O que pode ser reconhecido na medida em que elevarmos naturalmente a voz - como ocorre nos lamentos, ameaças, júbilos, e outras paixões humanas - nos avizinhamos do canto; não sendo este mais do que uma variação de tom, feita ao se soltar a voz com um maior esforço das artérias através de diversos intervalos harmônicos e prolongamentos das vogais. É por isso que se pode observar que os oradores, comumente nas comiserações de seus epílogos, costumam alternar muito a voz, aproximando-se assim das cantilenas. Nesse sentido, Teofrasto demonstrou claramente  em seus  livros de

música que de três tipos de afetos (aos quais os outros se reduzem) a música deriva a sua origem: da alegria, tristeza e entusiasmo, isto é, furor divino - entendido também enquanto ímpeto generoso. Por isso então se deve adotar a melodia onde afetos símiles são expressos. De outro lado, o canto cênico sem o condimento do falar patético resulta, comom hoje se vê, friíssimo e pouco grato ao ouvido, pois lhe falta aquele incentivo que dá alma à melodia, que fertiliza, como sal fecundo, o terreno, preenchendo a imaginação do compositor com belos e suaves pensamentos. Assim, não se deve estranhar que os músicos, quando tenham de modular matérias destituídas de algum afeto – como uma simples narração, por exemplo, provem aquela dificuldade que os secretários encontram nas cartas de cumprimento. De fato, o afeto subministra vários conceitos do compositor, e mais efetivamente se os afetos transformados em conceitos, como ocorre com os poetas Entusiásticos, como Torquato Tasso ou o padre Stefonio da Companhia de Jesus, o qual, como dizem, em uma noite teria composto o último ato de seu Crispo. Então, a música destas conversações ou diálogos é muito fria em si mesma, tediosa aos ouvintes e laboriosa para os compositores. Logo, julgaria que tal música deveria ser posta de lado, e em seu lugar se aperfeiçoar tanto quanto possível a melodia dos cânticos, como faziam os antigos.

 

Em verdade, a melodia não convém aos diálogos, ou às falas alternadas (mencionamos primeiro as comédias), o que claramente se prova com a autoridade dos antigos gramáticos, como mostrei no primeiro Discurso, particularmente com o testemunho de Diomede. Este diz expressamente que os diálogos eram recitados pelos histriões, e os cânticos eram modulados por músicos. Disso a própria razão manifestamente nos persuade: frequentemente ocorre entre os atores falarem com modos baixos e plebeus, servirem-se de palavras inventadas somente para fazer rir, e, ademais, tratarem de questões comuns e vulgares - a isto malmente o canto e a música se adaptam. Assim, ninguém poderia dizer que em Plauto se modularia com garbo aquelas longas contendas entre servos, onde são ditos um  monte de impropérios, carregados de uma infinidade de injúrias, com vocábulos novos e ridícuylos, amontoados uns sobre os outros, como também aquelas contendas em Pseudolo, que são dispotas interruptamente. (...)

 

Cap. XIV – da propriedade do grave e do agudo para os afetos

 

(p. 79-80) Ora, não me parece verdadeiro que o grave e o agudo tenham naturezas contrárias, como pensam os modernos, consideração que os faz estabelecer a regra de se usar a voz grave nas coisas tristes e a aguda nas alegres. Algo que os antigos consideravam muito diversamente e de modo muito mais sutil, como tudo mais, aliás. Convém saber então que a agudez da voz possui, de um lado, teor feminino, pois as mulheres falam e cantam mais agudo do que os homens. Por outro, é mais viva, alegre, intensa e ousada que a gravidade, a qual, por sua vez, reverbera mais o fraco e lânguido: estas são as qualidades femininas, da mesma forma que as primeiras viris. E são viris porque o agudo denota maior esforço e vigor. A vos aguda é gerada pela maior força do peito e artérias, assim como pela maior tensão das cordas [vocais]; nas flautas, com mais violência do sopro e maior condensação de ar. De sorte que considerada por si mesma, a agudez representa o caráter feminino, mas quanto à sua eficiência mostra o inverso. Analogamente, a gravidade, por si, exprime caráter e qualidade viris, mas em relação ao princípio do qual procede se faz o oposto. Assim, deve-se ter por verdadeiríssimo que os sons não possuem em si nenhuma qualidade indicativa ou efetiva do próprio caráter e qualidade viris, a não ser quando imitam e representam a voz humana. Por isso é que a voz, a loqüela, o caminhar, e símiles, são coisas que apresentam vários caracteres – algo que é manifesto, de sorte que é assim que convém entender Aristóteles quando este diz que os sons – vale aqui a expressão – são coisas adaptáveis, mas não as cores. Isto é, os sons são como faces da voz humana: de uma mesma causa material, que opera por meios diversos, procedem efeitos contrários. (...) Por tudo isso, então, se pode perceber o quão trivial é a regra dos músicos modernos que propõe o grave em coisas mestas e o agudo em temática alegre. Trivial por não fazer a distinção entre uma tristeza ou dor calma e uma aflição desesperada e intensa, as quais caminham por estrada diversa. Da mesma forma como a podagra fria e quente, que a despeito de serem podagras são medicadas com remédios contrários.

 

Capítulo VIII – Qual deve ser a melodia cênica, e em que canto se deve usar o estilo recitativo.

 

(p. 82-83) Estou seguro de que minha opinião será por muitos tida como extravagante e caprichosa. E talvez, sem que se tenha considerado bem as razões adotadas ou tenham sido feitas experiências, algumas serão reprovadas e escarnecidas. (...)

(...) Entre os homens se pode distinguir três modos de falar, de recitar. O primeiro, e mais simples, é o que usamos quando falamos familiarmente uns com os outros, ou mesmo quando se fala em público à maneira dos precantes e oradores. O segundo é aquele dos poemas, recitados num tom um tanto alterado, e que se avizinha mais do verdadeiro canto, E o terceiro é o das cantilenas, onde expressamente aparece maior alteração de tom e de intervalos. Cantilena que, podendo ser mais ou menos alterada (como aliás os outros dois modos), não por isso compreende mais de uma espécie no que concerne à questão tratada.


                                              

 

 

 

 

  Giovanni Batista Doni  (1593-1647)

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