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O Fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores. Trad. L. J. Baraúna. Revisão J. M. Coelho. São Paulo: Editora Nova Cultural: 1996.

 

[1938] (Excertos

 

 

As queixas acerca da decadência do gosto musical são, na prática, tão antigas quanto esta experiência ambivalente que o gênero humano fez no limiar da época histórica, a saber: a música constitui, ao mesmo tempo, a manifestação imediata do instinto humano e a instância própria para o seu apaziguamento. Ela desperta a dança das deusas, ressoa da flauta encantadora de Pã, brotando ao mesmo tempo da lira de Orfeu, em torno da qual se congregam saciadas as diversas formas do instinto humano. Toda vez que a paz musical se apresenta perturbada por excitações bacânticas, pode-se falar da decadência do gosto. Entretanto, se desde o tempo da noética grega a função disciplinadora da música foi considerada um bem supremo e como tal se manteve, em nossos dias, certamente mais do que em qualquer outra época histórica, todos tendem a obedecer cegamente à moda musical, como aliás acontece igualmente em outros setores. Contudo, assim como não se pode qualificar de dionisíaca a consciência musical contemporânea das massas, da mesma forma pouco têm a ver com o gosto artístico em geral as mais recentes modificações desta consciência musical. O próprio conceito de gosto está ultrapassado. A arte

responsável orienta-se por critérios que se aproximam muito dos do conhecimento: o lógico e o ilógico, o verdadeiro e o falso. De resto, já não há campo para escolha; nem sequer se coloca mais o problema, e ninguém exige que os cânones da convenção sejam subjetivamente justificados; a existência do próprio indivíduo, que poderia fundamentar tal gosto, tornou-se tão problemática quanto, no pólo oposto, o direito à liberdade de uma escolha, que o indivíduo simplesmente não consegue mais viver empiricamente. Se perguntarmos a alguém se "gosta" de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas. Tal indivíduo já não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. As categorias da arte autônoma, procurada e cultivada em virtude do seu próprio valor intrínseco, já não têm valor para a apreciação musical de hoje. Isto ocorre, em grande escala, também com as categorias da música séria, que, para descartar com maior facilidade, se costuma designar com o qualificativo de "clássica". Se se objeta que a música ligeira e toda a música destinada ao consumo nunca foram experimentadas e apreciadas segundo as mencionadas categorias, não há como negar a verdade desta objeção. Contudo, esta espécie de música é afetada pela mudança, e isto precisamente em virtude da seguinte razão: proporciona, sim, entretenimento, atrativo e prazer, porém, apenas para ao mesmo tempo recusar os valores que concede. Aldous Huxley levantou em um de seus ensaios a seguinte pergunta: quem ainda se diverte realmente hoje num lugar de diversão? Com o mesmo direito poder-se-ia perguntar: para quem a música de entretenimento serve ainda como entretenimento? Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. Assume ela em toda parte, e sem que se perceba, o trágico papel que lhe competia ao tempo e na situação específica do cinema mudo. A música de entretenimento serve ainda — e apenas — como fundo. Se ninguém mais é capaz de falar realmente, é óbvio também que já ninguém é capaz de ouvir. Um especialista americano em propaganda radiofônica — que utiliza com predileção especial a música — manifestou ceticismo com respeito ao valor de tais anúncios, alegando que os ouvintes aprenderam a não dar atenção ao que ouvem, mesmo durante o próprio ato da audição. Tal observação é contestável quanto ao valor publicitário da música. Mas é essencialmente verdadeira quando se trata da compreensão da própria música. (...)

 

O prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo. Os momentos parciais já não exercem função crítica em relação ao todo pré-fabricado, mas suspendem a crítica que a autêntica globalidade estética exerce em relação aos males da sociedade. A unidade sintética é sacrificada aos momentos parciais, que já não produzem nenhum outro momento próprio a não ser os codificados, e mostram-se condescendentes a estes últimos. Os momentos de encantamento demonstram-se irreconciliáveis com a constituição imanente da obra de arte, e esta última sucumbe àqueles toda vez que a obra artística tenta elevar-se para transcendência. Os referidos momentos isolados de encantamento não são reprováveis em si mesmos, mas tão-somente na medida em que cegam a vista. Colocam-se a serviço do sucesso, renunciam ao impulso insubordinado e rebelde que lhes era próprio, conjuram-se para aprovar e sancionar tudo o que um momento isolado é capaz de oferecer a um indivíduo isolado, que há muito tempo já deixou completamente de existir. Os momentos de encanto e de prazer, ao se isolarem, embotam o espírito. Quem a eles se entrega é tão pérfido quanto os antigos noéticos em seus ataques ao prazer sensual dos orientais. A força de sedução do encanto e do prazer sobrevive somente onde as forças de renúncia são maiores, ou seja: na dissonância, que nega a fé à fraude da harmonia existente. O próprio conceito de ascética é dialético na música. (...)

 

A arte considera negativa precisamente aquela possibilidade de felicidade, à qual se contrapõe hoje a antecipação apenas parcial e positiva da felicidade. Toda arte ligeira e agradável tornou-se mera aparência e ilusão: o que se nos antolha esteticamente em categorias de prazer já não pode ser degustador: a promesse du bonheur — foi assim que uma vez se definiu a arte — já não se encontra em lugar algum, a não ser onde a pessoa tira a máscara da falsa felicidade. O prazer só tem lugar ainda onde há presença imediata, tangível, corporal. Onde carece de aparência estética é ele mesmo fictício e aparente segundo critérios estéticos e engana ao mesmo tempo o consumidor acerca da sua natureza. Somente se mantém fidelidade à possibilidade do prazer onde cessa a mera aparência.

A nova etapa da consciência musical das massas se define pela negação e rejeição do prazer no próprio prazer. Assemelha-se tal fenômeno aos comportamentos que as pessoas soem manter em face do esporte ou da propaganda. A expressão "prazer artístico" ou "gosto artístico" assumiram um significado curioso e cômico. A música de Schoenberg, tão diferente das canções de sucesso, apresenta em todo caso uma analogia com elas: não é degustada, não pode ser desfrutada. Quem ainda se deliciasse com os belos trechos de um quarteto de Schubert ou com um provocantemente sadio "concerto grosso" de Haendel seria catalogado como um defensor suspeito da cultura, bem abaixo dos colecionadores de borboletas. O que o cataloga nesta categoria de amadores não é o "novo". O fascínio da canção da moda, do que é melodioso, e de todas as variantes da banalidade, exerce a sua influência desde o período inicial da burguesia. Em outros tempos este fascínio atacou o privilégio cultural das camadas sociais dominantes. Hoje, contudo, quando este poder da banalidade se estendeu a toda a sociedade, sua função se modificou. A modificação de função atinge todos os tipos de música. Não somente a ligeira — reino em que o poder da banalidade se faria notar comodamente como simplesmente "gradual", com respeito aos meios mecânicos de difusão. A unidade e harmonia das esferas musicais separadas deve ser repensada e recomposta. A sua separação estática, tal como a defendem e promovem ocasionalmente alguns conservadores da cultura antiquada, é ilusória — chegou-se a atribuir ao totalitarismo do rádio a tarefa de, por um lado, propiciar entretenimento e distração aos ouvintes, e por outro, a de incentivar e promover os chamados valores culturais, como se ainda pudesse haver bom entretenimento e como se os bens da cultura não se transformassem em algo de mau, precisamente em virtude do modo de cultivá-los. Assim como a música séria, desde Mozart, tem a sua história na fuga da banalidade e como aspecto negativo reflete os traços da música ligeira, da mesma forma presta ela hoje em dia testemunho, nos seus representantes mais credenciados, de sombrias experiências, que se prefiguram, carregadas de pressentimentos, na despreocupada simplicidade da música ligeira. Inversamente seria igualmente cômodo ocultar a separação e a ruptura entre as duas esferas e supor uma continuidade, que permitiria à formação progressiva passar sem perigo do jazz e das canções de sucesso aos genuínos valores da cultura. A barbárie cínica de forma alguma é preferível à fraude cultural. O que alcança, quanto à desilusão do superior, é por ela compensado através das ideologias de originalidade e vinculação com o natural, mediante as quais transfigura o mundo musical inferior: um submundo que já não ajuda, por exemplo, na contradição dos excluídos da cultura, mas limita-se a se alimentar com o que lhe é dado de cima. A ilusória convicção da superioridade da música ligeira em relação à séria tem como fundamento precisamente essa passividade das massas, que colocam o consumo da música ligeira em oposição às necessidades objetivas daqueles que a consomem. É habitual alegar, a este propósito, que as pessoas na realidade apreciam a música ligeira, e só tomam conhecimento da música séria por motivos de prestígio social, ao passo que o conhecimento de um único texto de canção de sucesso é suficiente para revelar que função pode desempenhar o que é lealmente aceito e aprovado. Em consequência, a unidade de ambas as esferas da música resulta de uma contradição não resolvida. Ambas não se relacionam entre si como se a inferior constituísse uma espécie de propedêutica popular para a superior, ou como se a superior pudesse haurir da inferior a sua perdida força coletiva. Não é possível, a partir da mera soma das duas metades seccionadas, formar o todo, mas em cada uma delas aparecem, ainda que em perspectiva, as modificações do todo, que só se move em constante contradição. Se a fuga da banalidade se tornasse definitiva, reduzir-se-ia a zero a possibilidade de venda e de consumo da produção séria, em conseqüência de suas demandas objetivas inerentes, e a padronização dos sucessos se efetua mais abaixo, de modo a não atingir de maneira alguma o sucesso de estilo antigo, admitindo somente a mera participação. Entre a incompreensibilidade e a inevitabilidade não existe meio-termo possível: a situação polarizou-se em extremos que na realidade acabam por tocar-se. Entre eles já não há espaço algum para o "indivíduo", cujas exigências — onde ainda eventualmente existirem — são ilusórias, ou seja, forçadas a se amoldarem aos padrões gerais. A liquidação do indivíduo constitui o sinal característico da nova época musical em que vivemos. (...)

 

Se as duas esferas da música se movem na unidade da sua contradição recíproca, a linha de demarcação que as separa é variável. A produção musical avançada se independentizou do consumo. O resto da música séria é submetido à lei do consumo, pelo preço do seu conteúdo. Ouve-se tal música séria como se consome uma mercadoria adquirida no mercado. Carecem totalmente de significado real as distinções entre a audição da música "clássica" oficial e da música ligeira. Os dois tipos de música são manipulados exclusivamente à base das chances de venda; deve-se assegurar ao fã das músicas de sucesso que os seus ídolos não são excessivamente elevados para ele. Quanto mais premeditadamente os organismos dirigentes plantam cercas de arame farpado para separar as duas esferas da música, tanto maior é a suspeita de que sem tais separações os clientes não poderiam entender-se com facilidade. Tanto Toscanini como o chefe de uma "bandinha" qualquer são denominados "maestros", embora neste último caso com uma certa ponta de ironia. Uma certa música famosa — "Music, maestro, please" — obteve êxito impressionante imediatamente depois que Toscanini foi condecorado pela opinião pública, com a cobertura do rádio. O reino daquela vida musical que se estende pacificamente desde as organizações de compositores como Irving Berlin e Walter Donaldson (the world's best composer — o melhor compositor do mundo), passando por Gershwin, Sibelius e Tchaikóvski, até a Sinfonia em Si Menor denominada Inacabada, é dominado por fetiches. O princípio do "estrelato" tornou-se totalitário. As reações dos ouvintes parecem desvincular- se da relação com o consumo da música e dirigir-se diretamente ao sucesso acumulado, o qual, por sua vez, não pode ser suficientemente explicado pela espontaneidade da audição mas, antes, parece comandado pelos editores, magnatas do cinema e senhores do rádio. As "estrelas" não são apenas os nomes célebres de determinadas pessoas. As próprias produções já começam a assumir esta denominação. Vai-se construindo um verdadeiro panteão de best sellers. Os programas vão se encolhendo, e este processo de encolhimento vai separando não somente o que é medianamente bom, o bom como termo médio de qualidade, mas os próprios clássicos comumente aceitos são submetidos a uma seleção que nada tem a ver com a qualidade. Nos Estados Unidos, a Quarta Sinfonia de Beethoven já se perde entre as autênticas raridades. Esta seleção perpetua-se e termina num círculo vicioso fatal: o mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso. Consequentemente, é gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A própria escolha das produções-padrão orienta-se pela "eficácia" em termos de critérios de valor e sucesso que regem a música ligeira ou permitem ao maestro de orquestra famoso exercer fascínio sobre os ouvintes de acordo com o programa; os crescendo da Sétima Sinfonia de Beethoven são colocados no mesmo plano do indizível solo de trompa do movimento lento da Quinta Sinfonia de Tchaikóvski. Melodia significa aqui o mesmo que melodia no registro médio-agudo com simetria de oito compassos. Esta é registrada como um "achado" do compositor, que se acredita poder levar para casa como uma coisa comprada, da mesma forma como é atribuída ao compositor como sua propriedade legal. (...)

 

O campo que o fetichismo musical mais domina é o da valorização pública dada às vozes dos cantores. O atrativo exercido por estes últimos é tradicional, bem como o é a vinculação estreita do sucesso com a pessoa do cantor dotado de bom "material". Entretanto, nos dias de hoje, esqueceu-se que a voz é apenas um elemento material. Ter boa voz e ser cantor são hoje expressões sinônimas para o vulgar apreciador materialista da música. Em outros tempos exigia-se dos ases do canto, dos "castrati" e das primas- donas, no mínimo, alto virtuosismo técnico. Agora exalta-se o material em si mesmo, destituído de qualquer função. E inútil perguntar pela capacidade de exposição puramente musical. Nem sequer se espera que o cantor domine mecanicamente os recursos técnicos. Requer-se tão-somente que a sua voz seja particularmente potente ou aguda para legitimar o renome de seu dono. (...)

 

O conceito de fetichismo musical não se pode deduzir por meios puramente psicológicos. O fato de que "valores" sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria. Com efeito, a música atual, na sua totalidade, é dominada pela característica de mercadoria: os últimos resíduos pré-capitalistas foram eliminados. A música, com todos os atributos do etéreo e do sublime que lhes são outorgados com liberalidade, é utilizada sobretudo nos Estados Unidos, como instrumento para a propaganda comercial de mercadorias que é preciso comprar para poder ouvir música. Se é verdade que a função propagandística é cuidadosamente ofuscada em se tratando de música séria, no âmbito da música ligeira tal função se impõe em toda parte. Todo o movimento do jazz, com a distribuição grátis das partituras às diversas orquestras, está orientado no sentido de a execução ser usada como instrumento de propaganda para a compra de discos e de reduções para piano. Inúmeros são os textos de músicas de sucesso que enaltecem a própria canção, cujo título repetem constantemente em maiúsculas. O que transparece em tais letreiros monstruosos é o valor de troca, no qual o quantum do prazer possível desapareceu. Marx descreve o caráter fetichista da mercadoria como a veneração do que é autofabricado, o qual, por sua vez, na qualidade de valor de troca se aliena tanto do produtor como do consumidor, ou seja, do "homem". Escreve Marx: "O mistério da forma mercadoria consiste simplesmente no seguinte: ela devolve aos homens, como um espelho, os caracteres sociais do seu próprio trabalho como caracteres dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais e sociais dessas coisas; em consequência, a forma mercadoria reflete também a relação social dos produtores com o trabalho global como uma relação social de objetos existente fora deles". Este é o verdadeiro segredo do sucesso. É o mero reflexo daquilo que se paga no mercado pelo produto: a rigor, o consumidor idolatra o dinheiro que ele mesmo gastou pela entrada num concerto de Toscanini. O consumidor "fabricou" literalmente o sucesso, que ele coisifica e aceita como critério objetivo, porém, sem se reconhecer nele. "Fabricou" o sucesso, não porque o concerto lhe agradou, mas por ter comprado a entrada. E óbvio que no setor dos bens da cultura o valor de troca se impõe de maneira peculiar. Com efeito, tal setor se apresenta no mundo das mercadorias precisamente como excluído do poder da troca, como um setor de imediatidade em relação aos bens, e é exclusivamente a esta aparência que os bens da cultura devem o seu valor de troca. Ao mesmo tempo, contudo, fazem parte do mundo da mercadoria, são preparados para o mercado e são governados segundo os critérios deste mercado. (...)

 

Quanto mais coisificada for a música, tanto mais romântica soará aos ouvidos alienados. E precisamente através disto que tal música se torna "propriedade". Uma sinfonia de Beethoven, executada e ouvida, enquanto totalidade, espontaneamente, jamais poderia tornar-se propriedade de alguém. A pessoa que no metrô assobia triunfalmente o tema do último movimento da Primeira Sinfonia de Brahms, na realidade relaciona-se apenas com suas ruínas. (...)

 

O processo de coisificação radical produz a sua própria aparência de imediatidade e intimidade. Inversamente, a dimensão do íntimo, precisamente por ser excessivamente sóbrio, é exagerada e explorada pelos "arranjos", e colorida. Os momentos de encantamento dos sentidos, que resultam das unidades isoladas e decompostas, são em si mesmos — pelo fato de serem apenas momentos separados do conjunto — demasiadamente fracos para produzir o encantamento dos sentidos que deles se exige, e para cumprir os requisitos publicitários que lhes são impostos. (...)

 

Entretanto o processo de feitichização invade até mesmo a música supostamente séria, que mobiliza o páthos da distância contra o entretenimento elevado. A pureza do serviço prestado aos genuínos interesses da arte, com a qual apresenta as suas produções, evidencia-se freqüentemente tão hostil ao entretenimento elevado como a depravação e o arranjo. O ideal oficial da interpretação, que predomina em toda parte na esteira do trabalho extraordinário de Toscanini, ajuda a sancionar um estado de coisas que — para usar uma expressão de Eduard Steuermann — pode-se denominar "barbárie da perfeição". Inquestionavelmente, aqui não mais são fetichizados os nomes das obras famosas, embora as não famosas, que chegam a ocupar um lugar nos programas de concertos, praticamente façam aparecer como desejável a limitação ao pequeno número das outras. Certamente aqui não se esmagam com os pés os momentos da invenção criadora, nem se depuram os contrastes, a fim de exercer o fascínio. Reina aqui uma disciplina férrea. Precisamente férrea. O novo fetiche, neste caso, é o aparato como tal, imponente e brilhante, que funciona sem falha e sem lacunas, no qual todas as rodas engrenam umas nas outras com tanta perfeição e exatidão que já não resta a mínima fenda para a captação do sentido do todo. A interpretação perfeita e sem defeito, característica do novo estilo, conserva a obra a expensas do preço da sua coisificação definitiva. Apresenta-a como algo já pronto e acabado desde as primeiras notas; a execução soa exatamente como se fosse sua própria gravação no disco. A dinâmica é de tal forma predisposta e pré-fabricada, que não deixa espaço algum para tensões. As resistências do material sonoro são eliminadas tão impiedosamente no ato da produção do som, que já não há possibilidade de atingir a síntese, a autoprodução da obra, que constitui o significado e a característica de cada uma das sinfonias de Beethoven. (...)

 

No polo oposto ao fetichismo na música opera-se uma regressão da audição. Com isto não nos referimos a um regresso do ouvinte individual a uma fase anterior do próprio desenvolvimento, nem a um retrocesso do nível coletivo geral, porque é impossível estabelecer um confronto entre os milhões de pessoas que, em virtude dos meios de comunicação de massas, são hoje atingidos pelos programas musicais e os ouvintes do passado. O que regrediu e permaneceu num estado infantil foi a audição moderna. Os ouvintes perdem com a liberdade de escolha e com a responsabilidade não somente a capacidade para um conhecimento consciente da música — que sempre constitui prerrogativa de pequenos grupos — mas negam com pertinácia a própria possibilidade de se chegar a um tal conhecimento. Flutuam entre o amplo esquecimento e o repentino reconhecimento, que logo desaparece de novo no esquecimento. Ouvem de maneira atomística e dissociam o que ouviram, porém desenvolvem, precisamente na dissociação, certas capacidades que são mais compreensíveis em termos de futebol e automobilismo do que com os conceitos da estética tradicional. Não são infantis no sentido de uma concepção segundo a qual o novo tipo de audição surge porque certas pessoas, que até agora estavam alheias à música, foram introduzidas na vida musical. E todavia são infantis; o seu primitivismo não é o que caracteriza os não desenvolvidos, e sim o dos que foram privados violentamente da sua liberdade. (...)

 

A audição regressiva relaciona-se manifestamente com a produção, através do mecanismo de difusão, o que acontece precisamente mediante a propaganda. A audição regressiva ocorre tão logo a propaganda faça ouvir a sua voz de terror, ou seja: no próprio momento em que, ante o poderio da mercadoria anunciada, já não resta à consciência do comprador e do ouvinte outra alternativa senão capitular e comprar a sua paz de espírito, fazendo com que a mercadoria oferecida se torne literalmente sua propriedade. Na audição regressiva o anúncio publicitário assume caráter de coação. (...)

 

Os ouvintes regressivos apresentam muitos traços em comum com o homem que precisa matar o tempo porque não tem outra coisa com que exercitar o seu instinto de agressão, e com o trabalhador de meio expediente. Precisa-se dispor de muito tempo livre e de muito pouca liberdade ou ficar colado o dia inteiro ao rádio para tornar-se um bom perito em jazz; e a habilidade de dar conta, com a mesma desenvoltura, tanto das síncopes do jazz como dos ritmos fundamentais, é comparável à do funileiro de automóveis, que se considera capaz de consertar alto-falantes e instalações elétricas. Os modernos ouvintes assemelham-se a certo tipo de mecânicos, especializados e ao mesmo tempo capazes de empregar os seus conhecimentos técnicos em misteres inesperados, fora do ofício que aprenderam. Entretanto, o abandono da sua especialização só aparentemente os ajuda a se libertarem do sistema. Quanto mais intensamente se dedicam às exigências do seu ofício, tanto mais se escravizam aos ditames do sistema. (...)

 

Enaltece-se um aspecto positivo da nova música de massas e da audição regressiva: a vitalidade e o progresso técnico, a ampla aceitação coletiva e a relação com uma prática indefinida, em cujos conceitos entrou a autodenúncia dos intelectuais, os quais em última análise podem eliminar a sua alienação das massas porque unificam sua consciência com a atual consciência de massas. Ora, este aspecto que se diz positivo na verdade é negativo, ou seja, a irrupção, na música, de uma fase catastrófica da própria sociedade. O positivo só existe na sua negatividade. A música de massas fetichizada ameaça os valores culturais fetichizados. A tensão entre as duas esferas musicais cresceu de tal forma que se torna difícil à música oficial sustentar-se. Embora tenha muito pouco a ver com os padrões técnicos dos ouvintes da música de massas, se compararmos os conhecimentos musicais de um perito de jazz com os de um adorador de Toscanini, verifica-se que os do primeiro ultrapassam de muito os deste último. (...)

 

Não é em vão que Mahler constitui o escândalo secreto de toda a estética musical burguesa. Qualificam-no de carente de capacidade criativa porque ele deixa em suspenso seu próprio conceito de "criar". Tudo aquilo que Mahler manipula já existe. Toma-o como é em sua forma de depravação. Seus temas não são seus, são desapropriados. A despeito deste fato, nenhum dos seus temas apresenta o som habitual, todos são guiados como por um ímã. Precisamente o que já está "gasto" cede maleavelmente à mão improvisadora; precisamente os temas "batidos" recebem nova vida como variações. Assim como o conhecimento que o motorista possui do seu carro velho e usado pode capacitá-lo a conduzi-lo pontualmente ao termo desejado, da mesma forma pode a expressão de uma melodia batida e repisada posta em tensão sob o som agudo da clarineta em mi bemol e de oboés em registros altos atingir píncaros que a linguagem musical escolhida jamais atingiu sem perigo. Tal música consegue assumir os elementos depravados e formar um conjunto realmente novo, mas é incontestável que o seu material é tirado da audição regressiva. Poder-se-ia até pensar que na música de Mahler esteja sismograficamente registrada a experiência do autor, quarenta anos antes que tal experiência penetrasse a sociedade. Se, porém, Mahler foi contrário ao conceito do progresso musical, não se pode colocar sob o signo do progresso a música nova e radical que, nos seus representantes mais avançados, se apóia nele e o invoca paradoxalmente como precursor. Esta nova música propõe-se a resistir conscientemente à experiência da audição regressiva. O medo que, hoje como ontem, difundem Schoenberg e Webern não procede da sua incompreensibilidade, mas precisamente por serem demasiadamente bem compreendidos. A sua música dá forma àquela angústia, àquele pavor, àquela visão clara do estado catastrófico ao qual os outros só podem escapar regredindo. Chamam-lhes de individualistas, e no entanto a sua obra não é senão um diálogo único com os poderes que destroem a individualidade — poderes cujas "sombras monstruosas" se projetam, gigantescas, sobre a sua música. As forças coletivas liquidam também na música a individualidade que já não tem chance de salvação. Todavia, somente os indivíduos são capazes de representar e defender, com conhecimento claro, o genuíno desejo de coletividade em face de tais poderes.

 


 

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