
O Sobrinho de Rameau. In: Os Pensadores. Trad. Marilena Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
(Excertos)
(...)
ELE — Não entendo lá grande coisa de tudo que declamais. Cheira a filosofia. Já vos previno que não me meto nisso. Tudo o que sei é que eu gostaria de ser um outro, quem sabe até arriscarme a ser um homem de gênio, um grande homem. Sim, devo confessar, há algo dentro de mim que me diz. Nunca ouvi louvar um único homem sem enraivecer-me secretamente. Sou invejoso.
Quando fico sabendo de algum fato degradante de sua vida privada, escuto com prazer; isto nos aproxima e suporto mais facilmente minha mediocridade. Digo para mim mesmo: certo, nunca terias feito Maomé, mas nem o elogio de Mapéoux.9 Estive e estou, pois, irritado por ser medíocre. Sim, sim, sou medíocre e estou zangado. Nunca ouvi tocar a abertura das índias Galantes, nunca ouvi cantar Profundos Abismos do Tenário, Noite, Eterna Noite, sem me dizer dolorosamente: “Eis o que nunca farás”. Sentia ciúme de meu tio. E se, em sua morte, encontrasse em sua pasta algumas belas peças para cravo, não teria vacilado entre permanecer eu mesmo ou ser ele.
EU — Se é só isto que vos magoa, não vale muito a pena.
ELE — Não é nada, são momentos que passam. (Em seguida põe-se a cantar a abertura das Índias Galantes e a ária Profundos Abismos e acrescenta:)
Cá dentro algo me fala; diz: Rameau, tu bem querias ter composto esses dois trechos. Se os tivesses composto, terias certamente composto outros dois, e, depois que tivesses composto um certo número, serias executado e cantado em toda parte. Quando andasses, terias a cabeça erguida, tua consciência seria
testemunha de teu próprio mérito, os outros te apontariam dizendo: “E ele o compositor das belas gavotas”. (E canta as gavotas; em seguida, com o ar de um homem comovido, nadando na alegria e com os olhos úmidos, acrescenta esfregando as mãos:) Terias uma boa casa (mede o tamanho dela com os braços), um bom leito (estica-se nele indolentemente), bons vinhos (saboreia estalando a língua contra o céu da boca), uma boa carruagem (levanta o pé para subir), belas mulheres (já agarra com violência e com olhar voluptuoso); cem patifes viriam incensar-te todos os dias. (E acredita vê-los ao seu redor: Palissot, Poincinet, os Fréron, pai e filho, Laporte; ouve-os, empertiga-se, aprova-os, sorri-lhes, desdenha-os, despreza-os, expulsa-os, chama-os de volta, e em seguida continua:) E assim, pela manhã, dir-te-iam que és um grande homem. Lerias na história dos Três Séculos que és um grande homem; à noite, estarias convencido de que és um grande homem. E o grande homem, Rameau sobrinho, adormeceria com o doce murmúrio do elogio a ressoar em seus ouvidos. Mesmo dormindo teria o ar satisfeito: seu peito se dilataria, se elevaria, se abaixaria com desembaraço, roncaria como um grande homem. (E, dizendo isto, escorrega molemente num banquinho, fecha os olhos, imitando o sonho feliz que imagina. Depois de haver saboreado alguns instantes a doçura desse repouso, desperta, boceja, esfrega os olhos e procura, ainda à sua volta, seus aduladores insípidos.)
P. 348
Ao mesmo tempo, põe-se na atitude de um tocador de violino; cantarola um allegro de Locatelli; seu braço direito imita o movimento de arco, sua mão esquerda e seus dedos parecem deslizar pela extensão do cabo; se desafina, interrompe, sobe ou desce a corda, distende-a com a unha para assegurar-se de que está certa; retoma o trecho onde o deixou; bate o compasso com o pé, agita freneticamente a cabeça, os pés, as mãos, os braços, o corpo. Como se vê às vezes, no concerto religioso, Ferrari, Chiabran, ou algum outro virtuose nas mesmas convulsões, oferecendo a imagem do mesmo suplício e causando quase a mesma pena, pois não é doloroso ver apenas tormento naquele que se ocupa em transmitir prazer? Puxai uma cortina que esconda de mim o homem que quiser mostrar-me um estudioso aplicado a uma dificuldade. No meio de suas agitações e de seus gritos, se porventura apresentava uma posição, um desses trechos harmoniosos em que o arco se move lentamente sobre várias cordas ao mesmo tempo, seu rosto tomava uma expressão extasiada, sua voz suavizava, escutava a si mesmo com arrebatamento. É certo que os acordes ressoavam em suas orelhas e nas minhas. Depois, recolocando seu instrumento sob seu braço esquerdo com a mesma mão com que o segurava, deixou cair a mão direita com seu arco: “Muito bem!”, disse. “Que achais?”
EU — Maravilhoso!
ELE — Está bem, parece-me. Soa mais ou menos como os outros.
E imediatamente acocora-se, como um músico que se põe ao cravo.
“Tende piedade de mim e de vós”, digo-lhe.
ELE — Não, não. Visto que vos retenho, escutareis. Não quero uma opinião emitida sem que se saiba por quê. Vosso louvor terá um tom mais seguro e me valerá um aprendiz.
EU — Sou tão pouco relacionado que vos cansareis sem proveito.
ELE — Nunca me canso.
Como percebo que desejava inutilmente apiedar-me do homem porque a sonata ao violino o havia ensopado, decido consentir. Ei-lo, pois, sentado ao cravo, as pernas dobradas, a cabeça erguida para o teto onde parece ver uma partitura escrita, cantando, preludiando, executando uma peça de Alberti ou de
Galuppi, não sei de qual dos dois. Sua voz passa como o vento e seus dedos rodopiam sobre as teclas, ora deixando as agudas pelas graves, ora deixando a parte do acompanhamento para voltar às agudas. As paixões sucedem-se em seu rosto: distingue-se a ternura, a cólera, o prazer, a dor; sentem-se os piano, os forte,e estou certo de que um outro mais hábil do que eu teria reconhecido o trecho pelo movimento, pelo caráter, por suas expressões e por alguns fragmentos de canto, que lhe escapavam em intervalos. Porém, ainda mais extravagante é vê-lo tatear de vez em quando, como se tivesse errado, vê-lo contrariar-se por não ter mais a peça em seus dedos.
Endireitando-se e enxugando as gotas de suor que lhe descem pela face, diz: “Enfim, podeis ver que também sabemos colocar um trítono, uma quinta supérflua, e que o encadeamento das dominantes nos é conhecido. Essas passagens enarmônicas, de que meu caro tio faz tanta questão, não são um bicho-de-sete-cabeças. Nós nos saímos muito bem”.
EU — Tivestes a bondade de mostrar-me que sois muito hábil, mas sou homem capaz de vos acreditar sob palavra.
ELE — Muito hábil? Oh! não! Para meu ofício sei mais ou menos. E já é mais do que preciso, pois neste país quem é obrigado a saber aquilo que ensina?
EU — Tanto quanto a saber aquilo que aprende.
P. 350-351
EU — Sonho que tudo o que acabais de dizer é mais especioso do que sólido. Deixemos isso. Ensinastes, dizeis, o acompanhamento e a composição?
ELE — Sim.
EU — E não sabíeis absolutamente nada?
ELE — Palavra de honra que não. E é por isso que havia piores do que eu: os que acreditavam saber alguma coisa. Pelo menos eu não estragava o gosto nem as mãos das crianças.
Passando de mim para um bom professor, como nada haviam aprendido, pelo menos nada tinham para desaprender, o que era tempo e dinheiro poupados.
EU — Como fazíeis?
ELE — Como todos fazem. Chegava, jogava-me numa cadeira. “Como o tempo está ruim! Como é cansativo andar a pé!” Tagarelava sobre algumas novidades: “A Srta. Lemierre devia executar o papel de vestal na nova ópera, mas está grávida pela segunda vez e não se sabe quem irá dublá-la. A Srta. Arnauld13
acaba de abandonar seu condezinho; diz-se que está negociando com Bertin. O condezinho, porém, encontrou a porcelana do Sr. de Montamy.14 No último concerto dos amadores havia uma italiana que cantou como um anjo. Esse Préville15 tem um corpo raro, é preciso vê-lo no Mercúrio Galante; o trecho do enigma é impagável. A pobre Dusmenil16 não sabe mais o que faz. Vamos, senhorita, pegai vosso livro”. Enquanto a senhorita, sem a menor pressa,procura o livro que deixou extraviar, chama-se uma criada, esbraveja-se. Continuo: “— A Clairon é verdadeiramente incompreensível. Fala-se de um casamento muito ridículo: o da senhorita... como se chama mesmo? Uma criaturinha que ele mantinha, em quem fez duas ou três crianças e que havia sido mantida por muitos outros. — Vamos, Rameau, não é possível dizeis um disparate. — Não digo disparate algum. Diz-se mesmo que a coisa já está consumada. Corre o boato que Voltaire morreu; melhor. — E por que melhor? — É que deve estar preparando uma boa galhofa. É seu costume morrer quinze dias antes”. Que vos direi ainda? Contava algumas obscenidades que ouvira em outras casas, pois somos todos grandes mexeriqueiros. Bancava o louco. Escutavam-me, riam, gritavam: “É sempre encantador”. Entrementes, o livro da senhorita havia sido, enfim, encontrado sob uma poltrona onde fora arrastado, mastigado e raspado pelo cachorrinho ou pelo gatinho. Punha-se ao cravo. Primeiro fazia ruído sozinha, em seguida eu me aproximava, depois de ter feito à mãe um sinal de aprovação. A mãe: “Não vai mal; bastaria querer, mas não quer. Prefere perder seu tempo a tagarelar, a falar de bagatelas, a correr, e não sei mais o quê. Nem bem partis, e o livro já está fechado para ser reaberto apenas quando voltais. Também, nunca a repreendeis”. Entretanto, como era preciso fazer alguma coisa, tomava-lhe as mãos para colocá-las numa outra posição; contrariava-me, gritava: “Sol, sol, sol, senhorita, é um sol”. A mãe: “Menina, não tens ouvido? Eu, que não estou ao cravo, que não vejo teu livro, sinto que é preciso um sol. Dás um trabalho infinito ao senhor; não compreendo uma paciência como a dele; não reténs nada do que te diz, não progrides...” Então eu rebatia um pouco os golpes, meneando a cabeça, dizia: “Perdoai-me, senhora, perdoai-me. Poderia ser melhor se a senhorita quisesse, se estudasse um pouco, mas não está muito mal”. A mãe: “Em vosso lugar, eu a conservaria um ano na mesma peça”. “Oh! quanto a isso não vos preocupeis, mas em breve não haverá uma cujas dificuldades não possa superar.” “Senhor Rameau, estais a elogiá-la. Sois muito bom. De toda a lição, ela irá guardar apenas isso para repetir-me na ocasião adequada.” A hora transcorria; minha
discípula apresentava-me o pequeno pagamento da lição com a graça do gesto e a reverência que o professor de dança lhe ensinara. Eu o guardava no bolso, enquanto a mãe dizia: “Muito bem, menina. Se Javillier17 estivesse aqui, vos aplaudiria”. Por delicadeza eu ainda tagarelava um pouco e, em seguida, desaparecia. Eis o que se chamava, então, uma aula de acompanhamento.
EU — E hoje, é diferente?
ELE-Santo Deus! Creio que sim. Chego.Sério, apresso-me em tirar meu regalo, abroo cravo, experimento as teclas. Estou sempre apressado; se me fazem esperar um pouco, grito como se me tivessem roubado uma moeda. Daqui a uma hora deverei estar noutro lugar; em duas horas, em casa da sra. duquesa de tal; sou esperado para jantar em casa de uma bela marquesa e, saindo de lá, para um concerto em casa do senhor Barão de Bacq, rua Neuve-des-Petits-Champs.
P. 367-375
ELE — Mas era o que eu vos dizia! A atrocidade da ação vos arrasta para além do desprezo e é a razão de minha sinceridade. Quis que conhecêsseis quanto me sobressaio em minha arte, arrancar-vos a confissão de que sou pelo menos original em meu aviltamento, obrigar-vos a colocar-me na linhagem dos grandes infames e gritar: Vivat Mascarillus, fourbum imperator! Vamos, alegria, meu caro senhor filósofo! Coro! Vivat Mascarillus, fourbum imperator! 47
E começa um canto em fuga muito curioso. Ora a melodia é grave e cheia de majestade, ora leve e folgazã. Num momento imita o baixo, num outro o tenor. Com o braço e o pescoço espichados indica-me os sustenidos. Executa e compõe por si próprio um canto de triunfo. Sem dúvida, entende mais de boa música do que de bons costumes.
Quanto a mim, não sabia se deveria ficar ou fugir, rir ou irar-me. Fiquei. Tinha o propósito de desviar a conversa para algum assunto que expulsasse o horror que invadia minha alma. Começava a suportar com dificuldade a presença de um homem que discutia uma ação horrível, uma prevaricação execrável como
um especialista em pintura ou poesia examina as belezas de uma obra de gosto, ou como um moralista ou historiador releva e ilumina uma ação heróica. Tornei-me sombrio malgrado eu próprio. Percebeu e disse-me:
ELE — Que tendes? Estais mal?
EU — Um pouco, mas passará.
ELE — Tendes o ar inquieto de um homem atormentado por alguma idéia desagradável.
EU — É isso.
Por um instante permanecemos em silêncio, enquanto passeia assobiando e cantando. Para trazê-lo de volta ao seu talento 48, digo-lhe:
EU — Que fazeis no momento?
ELE — Nada.
EU — É fatigante.
ELE — Como se já não fosse suficientemente idiota, ainda fui ouvir a música de Douni e de nossos outros jovens fazedores. Isto acabou comigo.
EU — Aprovais, então, esse gênero?
ELE — Sem dúvida.
EU — E encontrais beleza nesses novos cantos?
ELE — Se encontro? Raios me partam! Como é declamado! que verdade! que expressão!
EU — O modelo de toda arte imitativa encontra-se na natureza. Qual o modelo de um músico quando compõe um canto?
ELE — Por que não começar mais de cima? O que é o canto?
EU — Confessarei que a questão está acima de minhas forças. Somos todos assim: temos na memória somente palavras que cremos compreender por seu uso freqüente e por sua aplicação correta; mas no espírito há somente noções vagas. Quando pronuncio o termo canto, não tenho uma noção mais clara do que vós e os de vossa laia ao pronunciardes os termos reputação, censura, honra, vício, virtude, pudor, decência, vergonha, ridículo.
ELE — Por meio da voz ou do instrumento, o canto é uma imitação sonora de ruídos físicos e dos acentos da paixão inventada pela arte ou inspirada pela natureza, conforme vos agrade49. E vede que, mudando aqui e acolá o que for preciso, tem-se a definição conveniente da pintura, da eloqüência, da escultura e da poesia. Voltando à vossa questão. Qual o modelo do músico ou do canto? A declamação, se o modelo for um vivente ou um pensante. O ruído, se inanimado. A declamação deve ser considerada como uma linha e o canto como uma outra que serpenteia sobre a primeira. Quanto mais forte e verdadeira a declamação tanto mais o canto que a ela se conforma cortá-la-á em numerosos pontos e será mais verdadeiro. Quanto mais verdadeiro o canto, mais belo. Foi o que sentiram muito bem nossos jovens músicos. Quando se ouve “Sou um pobre diabo”, crê-se reconhecer o lamento de um avaro. Se não cantasse, falaria no mesmo tom à terra quando lhe confia seu ouro e lhe diz: “Ó terra, recebe meu tesouro”. E a menina que sente o coração palpitante, enrubescida e perturbada, suplicando ao seu senhor que a deixe partir, poderia exprimir-se de outro modo? Há nessas obras todo tipo de caracteres, uma variedade infinita de declamações. É sublime, sou eu que vos digo. Ide, ide ouvir o trecho em que o rapaz, sentindo-se morrer, grita: “Vai-se meu coração”. Escutai o canto, escutai a sinfonia e depois me direis qual a diferença entre as verdadeiras vozes de um moribundo e a forma desse canto. Vereis se a linha da melodia não coincide inteiramente com a da declamação. Não vos falo do compasso, também uma das condições do canto. Atenho-me à expressão, e nada mais evidente do que a seguinte passagem que li em algum lugar: Musicis seminarium accentus — a música é a sementeira da melodia. Por aí podeis julgar a dificuldade e a importância de saber compor um bom recitativo. Não há uma bela ária que não permita um belo recitativo, e nenhum recitativo de que um homem hábil não consiga tirar uma bela ária. Não quero assegurar que quem recita bem cantará bem, mas ficaria surpreso se quem canta bem não souber recitar bem. Podeis crer, tudo que vos disse é verdadeiro.
EU — Não pediria outra coisa, mas há um pequeno inconveniente.
ELE — Qual?
EU — Se essa música for sublime, então a do divino Lúlio, a de Campra, Destouches, Mouret, a do querido tio devem ser um pouco rasteiras.50
ELE — (Chegando perto de meu ouvido.) Não gostaria de ser ouvido, pois há muita gente que me conhece. Mas é mesmo. Não que eu me preocupe com o caro tio, visto que me custa caro. É uma pedra. Poderia ver-me de língua de fora que não me daria um copo de água. Mas, faça quantas oitavas ou sétimas quiser, faça “la Ia la ra, tra tralalalá” quanto quiser, numa balbúrdia dos diabos; nunca será aceito por aqueles que começam a entender do riscado e que não tomam ruído por música. Dever-se-ia proibir com uma ordem policial que qualquer pessoa, de qualquer posição ou condição social, cantasse o Stabat de Pergolese. Palavra, esses malditos palhaços, com suas Serva Amante, Tracollo, nos deram um rude pontapé na bunda. Outrora, um Tancredo, uma Isséia, uma Europa Galante, as Índias, Castor, Talentos Líricos ficavam cinco ou seis meses nos teatros. Arrnida teve representações infindáveis.51 Atualmente uns caem sobre os outros como um castelo de cartas. Rebel e Francoeur52 deitam azeite na fogueira. Dizem que está tudo perdido, que estão arruinados e que, se a canalha de saltimbancos for tolerada por mais tempo, a música nacional levará a breca, restando à Academia Real do beco-semsaída53 o trabalho de fechar as portas. Há alguma verdade nisso. As velhas perucas que há trinta ou quarenta anos baixam aí todas as sextas-feiras não se divertem mais — entediam-se e bocejam sem saber por quê. Mesmo que perguntassem, não saberiam responder. Ah! se me perguntassem... A predição de Douni cumprir-se-á. Do jeito que a coisa vai, quero morrer se em quatro ou cinco anos ainda houver um gato pingado no célebre beco. Os coitados renunciaram às suas próprias sinfonias para executar as italianas. Pensaram que poderiam entregar os ouvidos a ela sem conseqüências para sua música vocal, como se a sinfonia não estivesse para o canto (com um pouco de libertinagem inspirada pela extensão do instrumento e mobilidade dos dedos) como o canto está para a declamação real. Como se o violino não fosse o imitador do cantor, que um dia, quando o difícil substituir o belo, se tornará o imitador do violino.54 O primeiro que executou Locatelli foi o apóstolo da nova música. Vão cantar noutra freguesia! Vão dizer isso a quem quiserem, mas não a mim! Irão acostumar-nos pelo canto, voz e instrumentos com a imitação dos tons da paixão ou dos fenômenos da natureza, objetos da música, e, no entanto, conservaremos nosso gosto pelos vôos, lances, glórias, triunfos, vitórias? Ora, vão ver se estou na esquina! Imaginaram que chorariam nas cenas de tragédia e ririam nas de comédia musicada; que trariam aos ouvidos as inflexões de furor, ódio, ciúme, das verdadeiras queixas de amor, as ironias e as graças do teatro italiano e francês, e no entanto permaneceriam admiradores de Ragonda e Platéia.55 Eu vos respondo, seus palermas, que os coitados que imaginaram essa salada musical logo sentiriam com que facilidade, com que flexibilidade e doçura a harmonia, a prosódia, as elipses e inversões da língua italiana se prestam à arte, ao movimento, à expressão, às voltas do canto e ao valor dos sons. E, assim, os coitados continuariam a ignorar como a sua é rígida, surda, pesada, pedante e monótona. Claro! Claro! Persuadiram-se de que, depois de haver misturado suas lágrimas com o pranto de uma mãe desolada com a morte do filho, ou tremido com a ordem de assassinato ditada por um tirano, não se entediariam com sua própria féerie, sua insípida mitologia, seus pequenos madrigais adocicados que assinalam mais a miséria da arte que os aceita do que o mau gosto do poeta que os compõe. Pobres coitados, não é possível. O verdadeiro, o bom e o belo têm seus direitos. Podemos contestá-los, mas, por fim, passamos a admirá-los. O que não estiver cunhado nesses metais pode ser admirado durante um certo tempo, mas depois acabamos bocejando. Bocejai, meus caros senhores! Bocejai sem cerimônia! À vontade! O império da natureza e de minha trindade, contra a qual as portas do inferno não prevalecerão jamais, firma-se suavemente — o verdadeiro, o Pai que engendra o bom, o Filho, donde procede o belo, o Espírito Santo. O deus estrangeiro coloca-se humildemente ao lado do ídolo do país. Fortifica-se pouco a pouco. Um belo dia, dá uma cotovelada em seu companheiro e, catapum!, lá vai o ídolo abaixo. Parece que foi assim que os jesuítas implantaram o cristianismo na China e nas Índias. E os jansenistas podem esbravejar à vontade: em minha opinião, esse método, que atinge o alvo sem alarde, sem derramamento de sangue, sem mártires e sem arrancar um fio de cabelo, é o melhor.
EU — O que dizeis chega a ser razoável.
ELE — Razoável? Ótimo! O diabo que me carregue se me empenhei nisso. Vou dizendo como me dá na telha. Sou como os músicos do teco na ocasião em que meu tio apareceu. Acerto na mosca porque o filho de um carvoeiro sempre falará melhor de seu ofício do que uma academia inteira ou todos os Duhamel do mundo... 56
E novamente começou a passear, esgoelando-se numa ária de A Ilha dos Loucos, e depois numa de O Pintor Amoroso por seu Modelo, e noutra de O Marechal Ferrant. De vez em quando grita levantando as mãos e os olhos para o céu: “Macacos me mordam! Então isso é bonito? Como alguém pode carregar um par de orelhas na cabeça e ainda perguntar se é bonito?” Entra em transe e começa a cantar em voz baixa. Eleva o tom à medida que se apaixona. Gesticula, careteia, contorce o corpo. Digo para mim mesmo: “Perde a cabeça outra vez. Uma nova cena está a caminho”. Com efeito, lá vai ele num novo lance dramático: “Sou um pobre miserável... Monsenhor, monsenhor, deixai me partir... Ó terra, recebe meu ouro, conserva bem o meu tesouro... Minh’alma, minh’alma, minha vida! Ó terra!... Lá vem o amiguinho, lá vem o amiguinho... Aspettare e non venire... A Zerbina penserete... Sempre in contrasti con te si sta...” Junta e embaralha trinta árias italianas, francesas, trágicas, cômicas, de todo tipo. Ora a voz de baixo descendo até os infernos, ora esganiçando como um falsete, rasga o alto das árias, imitando as diferentes personagens cantoras pelo andar, porte e gesto — sucessivamente furioso, abrandado, imperioso, gozador. Agora uma moça que chora — imita todos os dengos. Depois, vira padre, rei, tirano. Ameaça, comanda, transporta-se. Agora é escravo e obedece. Apazigua-se, desola-se, queixa-se, ri. Nunca desafina. Não perde o tom, o compasso, o sentido das palavras e o caráter da ária. Todos os empurradores de pauzinhos deixam os tabuleiros e o rodeiam. As janelas do café ficam lotadas com os passantes que param por causa do barulho. Estouram de rir. O teto parece vir abaixo. Mas ele não percebe coisa alguma. Continua presa de uma alienação profunda, de um entusiasmo tão próximo da loucura, que não é certo que volte a si e que talvez seja preciso jogá-lo numa carruagem e levá-lo direto para o hospício. Cantando um fragmento das Lamentações de Ioumelli, repete os mais belos trechos com precisão, verdade e calor incríveis. Rega com uma torrente de lágrimas o belo recitativo onde o profeta pinta a desolação de Jerusalém. A emoção ganha a sala; todos choram. Há tudo na voz e na fisionomia de Rameau: a delicadeza do canto, a força da expressão e a dor. Insiste nos trechos em que o músico se revela mestre. Deixa a parte de canto pela dos instrumentos e volta subitamente à primeira, entrelaçando-as para conservar a ligação e a unidade do todo. Apossa-se de nossas almas, deixando-as suspensas na situação mais estranha que já vivi... Admiro-o? Sim, eu o admiro! Estou cheio de piedade? Sim, estou cheio de piedade. E, no entanto, um certo ridículo mescla-se nesses sentimentos desnaturando-os.
Mas também vós haveríeis de morrer de rir ao vê-lo remedar os diferentes instrumentos. Bochechas cheias e estufadas, som rouco e sombrio: são as trompas e os fagotes. Som explosivo e anasalado: eis os oboés. A voz se precipita numa incrível rapidez: são os instrumentos de corda com seus sons bem aproximados. Assobia: são os flautins. Arrulha: são as flautas. Gritando, cantando, saltando como um condenado, representa sozinho os dançarinos, as dançarinas, os cantores, as cantoras, toda a orquestra, um teatro lírico inteiro, dividindo-se em vinte e três papéis diferentes. Corre, pára como um iluminado, os olhos faiscantes, a boca espumante. Faz um calor infernal e o suor, acompanhando as rugas da testa e descendo por suas faces, mistura-se com o pó de seus cabelos, jorra e sulca a gola de seu casaco. O que não faz? Chora, ri, suspira, olha enternecido, tranqüilo ou furioso. É uma mulher que se esvai de dor; um desgraçado abandonado ao desespero; um templo que se ergue; pássaros silentes à hora do crepúsculo; águas murmurejantes a escoar num lugar solitário e fresco ou a despencar torrencialmente do alto duma montanha; um temporal, uma tempestade, queixume dos que vão perecer mesclado ao assobio dos ventos e ao estrondo do trovão; a noite com suas trevas, a sombra e o silêncio, pois o próprio silêncio pode ser descrito pelos sons. Sua cabeça está longe dali, perdida. Esgotado de fadiga, como um homem que sai de um sono profundo ou de um longo devaneio, permanece imóvel, estúpido, surpreso. Olha à volta como um homem que se extraviou e procura reconhecer onde se acha. Espera o retorno das forças e dos espíritos. Maquinalmente enxuga o rosto. Como alguém que ao despertar visse seu leito rodeado de muita gente, num total esquecimento ou numa profunda ignorância do que teria feito, exclama: “Ora, senhores! O que há? Por que os risos e a surpresa? O que há?” Em seguida, acrescenta: “Eis o que se deve chamar de música e de músico! Entretanto, senhores, não se devem desprezar certos trechos de Lúlio. Desafio quem julgue fazer melhor e sem mudar as palavras a cena ‘Ah! eu te esperarei’. Também não se devem desprezar certos trechos de Campra, as árias para violino de meu tio, bem como suas gavotas, entradas de soldados, padres, sacrificadores... ‘Pálidos archotes, noite mais tenebrosa do que as trevas... Deus do Tártaro, Deus do Esquecimento...’” Emposta a voz, sustenta os sons — os vizinhos metem-se nas janelas e nós metemos os dedos nos ouvidos. Acrescenta: “Para isto é mister pulmão, um grande órgão, um volume de ar. Mas ontem assim, hoje assado. Vão-se os anéis e também os dedos.57 Ainda não sabem o que devem pôr em música e, conseqüentemente, o que convém ao músico. A poesia lírica ainda está para nascer. Mas conseguirão. De tanto ouvir Pergolese, Saxon, Terradoglias, Trasetta e outros,58 e de tanto ler Metastas59, terão que conseguir”.
EU — Como? Quinault, La Motte, Fontenelle não compreenderam nada? 60
ELE — Não, no tocante ao estilo novo. Não há seis versos seguidos em seus poemas encantadores que possam ser musicados. São sentenças engenhosas, madrigais leves, ternos e delicados, mas, para avaliar como são incapazes de ajudar nossa arte, basta mandar recitar um deles, mesmo o mais violento como
o de Demóstenes — vereis como são frios, lânguidos e monótonos. Neles não há o que sirva como modelo para o canto. Preferia ter que musicar as Máximas de La Rochefoucauld ou os Pensamentos de Pascal. O grito animal da paixão deve ditar a linha que nos convém. É preciso que as expressões fiquem prensadas umas nas outras; que seu sentido fique cortado, suspenso; que a frase seja curta; que o músico possa dispor do todo e de cada parte, omitir uma palavra ou repeti-la, acrescentar uma que falte, virá-la e revirá-la como um pólipo, sem destruí-la. Tudo isso dificulta a poesia lírica francesa quando comparada com a de línguas que por si próprias já apresentam todas essas vantagens... “Bárbaro, cruel, crava teu punhal em meu seio. Eis-me aqui, pronta para receber o golpe fatal. Crava. Ousa... Ah! enlangueço, morro... Um fogo secreto se acende em meus sentidos... Cruel amor, que queres de mim?... Deixa-me a doce paz que desfrutei... Devolve-me a razão...” É preciso que as paixões sejam fortes. A ternura do músico e do poeta lírico deve ser extrema. Quase sempre a ária é a peroração da cena. Precisamos de exclamações, interjeições, suspensões, interrupções, afirmações, negações. Chamamos, invocamos, gritamos, gememos, choramos, rimos francamente. Nada de espírito, nada de epigramas ou de bonitos pensamentos. Estão longe da simplicidade da natureza. Não acrediteis que o jogo e as declamações dos atores no teatro possam servir-nos de modelo. Puf! Precisamos de algo mais enérgico, menos amaneirado e mais verdadeiro. Quanto mais a língua for monótona e menos enfática, tanto mais necessitaremos de discursos simples e das vozes comuns da paixão. O grito do animal ou do homem apaixonado dão à língua o que não possui por si própria.
Enquanto me fala assim, a multidão que nos rodeava, não entendendo ou não se interessando, afastou-se. A criança como o homem, o homem como a criança preferem divertir-se a instruir-se. Cada um retorna ao seu jogo e permanecemos sozinhos em nosso canto. Sentado numa banqueta, a cabeça apoiada na parede, os braços caídos e os olhos fechados, diz-me: “Não sei o que tenho. Quando cheguei estava fresco e disposto, agora estou moído, alquebrado como se tivesse andado dez léguas. Fiquei assim de repente”.
EU — Quereis refrescar-vos?
ELE — Com prazer. Sinto-me rouco. Faltam-me forças. Sofro um pouco do peito. Acontece-me todos os dias sem que eu saiba por quê.
EU — Que desejais?
ELE — O que vos agradar. Não sou difícil. A indigência ensinou-me a adaptar-me.
Servem-nos cerveja, limonada. Enche um copázio que esvazia duas ou três vezes seguidas. Depois, como um homem reanimado, tosse fortemente, sacode-se, retoma:
Em vossa opinião, senhor filósofo, não é uma estranha esquisitice que um estranho, um italiano, um Douni, nos venha ensinar como realçar nossa música, submeter nosso canto a todos os movimentos, compassos, intervalos e declamações, sem ferir a prosódia? E, no entanto, não era um bicho-de-sete-cabeças. Qualquer um que tivesse escutado um mendigo pedindo esmola, um homem no transporte da cólera, uma mulher ciumenta e furiosa, um amante desesperado, um bajulador, sim, um bajulador adocicando o tom, arrastando as sílabas com voz melosa, em uma palavra, uma paixão, não importa qual, desde
que por sua energia pudesse servir de modelo para o músico, qualquer um, repito, teria percebido duas coisas: primeiro, que as sílabas breves e longas não têm duração fixa, e não há sequer uma relação determinada entre suas durações; segundo, que a paixão dispõe a prosódia como lhe agradar, executando os maiores intervalos. Aquele que grita do fundo de sua dor: “Ah! Desgraçado que sou!” eleva a sílaba da exclamação para o tom mais alto e agudo e abaixa as outras para os tons mais baixos e graves, fazendo uma oitava ou até mesmo um intervalo maior, dando a cada som a quantidade que convém ao volteio da melodia, sem magoar o ouvido, sem que a sílaba longa e a breve tenham conservado o comprimento que possuem num discurso tranqüilo. Quanto chão pisamos desde que citávamos como prodígios de declamação musical os parênteses da Armida: “O vencedor de Renaud (se alguém pode sê-lo)”, o “Obedeçamos sem vacilar” das índias Galantes! Hoje em dia estes prodígios nos fazem dar de ombros com piedade. No ritmo em que a arte avança, não sei onde chegará. Esperando, bebamos um trago.
Bebe dois ou três sem saber o que está fazendo. Puxo a garrafa antes que se embebede como se esgotou antes: sem perceber. Digo-lhe então:
EU — Como é possível que com um tato tão fino, uma sensibilidade tão aguçada para as belezas da arte musical sejais tão cego para as belas coisas da moral, tão insensível aos encantos da virtude?
ELE — Aparentemente porque parece haver para elas um sentido que não tenho, uma fibra que não me foi dada ou que é tão frouxa que não adianta beliscá-la porque não vibra. Ou talvez porque tenha vivido sempre entre bons músicos e má gente, e, assim, meu ouvido tornou-se muito fino e meu coração, surdo. E depois parece que a raça também conta. O mesmo sangue corre nas veias de meu pai e de meu tio. A molécula paterna deve ter sido dura e obtusa e esta maldita primeira molécula deve ter sido assimilada por todo o resto.
EU — Amais vosso filho?
ELE — Se amo o selvagenzinho? Sou louco por ele.
EU — Não deveríeis ocupar-vos seriamente de interromper o efeito da maldita molécula paterna sobre ele?
ELE — Trabalharia inutilmente, creio.61 Se estiver destinado a ser um homem de bem, não o prejudicarei. Mas, se a molécula quisesse que fosse um pulha como o pai, os esforços para torná-lo um homem de bem ser-lhe-iam altamente prejudiciais: a educação, atravessando incessantemente o caminho da molécula, faria com que fosse atraído por duas forças contrárias e estaria sempre cambaleando no caminho da vida, como muitos que vejo coxeando no bem e no mal; é o que chamamos de insignificante62 — o pior dos epítetos porque marca a mediocridade e o último grau do desprezo. Um grande patife é um grande patife, e não um insignificante. Antes que a molécula paterna retomasse a dianteira e o levasse à perfeita abjeção, como a minha, precisaria de um tempo infinito, perderia seus mais belos anos. Nada faço no momento. Deixo-o crescer. Examino-o. Já é glutão, astuto, trapaceiro, preguiçoso e mentiroso. Quem sai aos seus não degenera. Creio que suas qualidades são hereditárias.
EU — E o fareis músico para que a semelhança seja completa?
ELE — Músico! Músico! Algumas vezes olho para ele e rangendo os dentes digo-lhe: “Se souberes uma nota, torcerei teu pescoço”.
EU — E por que, fazei o favor?
ELE — Porque não leva a nada.
EU — Leva a tudo.
ELE — Sim, quando nos sobressaímos, mas quem poderá garantir ao filho que excederá os outros? Pode-se apostar dez mil contra um como seria um mísero arranhador de cordas, como eu. Sabeis que talvez seja mais fácil fazer de uma criança um grande rei do que um grande violino?
EU — Tenho a impressão de que num povo sem moral, corrompido pelo deboche e pelo luxo, os talentos agradáveis, mesmo medíocres, lançam um homem no caminho da fortuna. Eu, que vos falo, ouvi a seguinte conversa entre um protetor insignificante e um protegido insignificante. Este fora encaminhado ao primeiro como um homem obsequioso que pudesse servi-lo: “— Senhor, que sabeis? — Conheço um pouco de matemática. — Pois bem, senhor, mostrai a matemática. Depois de vos enlameardes durante dez ou doze anos pelas ruas de Paris, devereis ter trezentas ou quatrocentas libras de renda. — Estudei leis e sou versado em direito. — Se Puffendorf e Grotius 63
voltassem ao mundo, morreriam de fome em cima de uma fronteira. — Conheço bem história e geografia. — Se houvesse pais interessados na educação de seus filhos, vossa fortuna estaria garantida. Mas não há. — Sou bom músico. — Ora, por que não mo dissestes antes? E tenho uma filha para vos mostrar a vantagem que se pode tirar deste talento. Vinde todos os dias das sete e meia às nove horas da noite, lecionareis para ela e eu vos darei vinte e cinco luíses por ano. Almoçareis, jantareis, ceareis conosco. O resto de vosso dia vos pertencerá e disporeis dele como vos aprouver.”
ELE — Que aconteceu com o homem?
EU — Se tivesse sido sensato, teria feito fortuna, única coisa que tendes em mira.
ELE — Sem dúvida. Ouro, ouro. O ouro é tudo, e o resto, sem ouro, nada. Em vez de rechear-lhe a cabeça com belas máximas que precisaria esquecer se não quisesse ser mendigo, quando possuo uma moeda de ouro (o que é raro) planto-me diante dele, tiro a moeda do bolso e mostro-lha com admiração. Levanto os olhos para o céu, beijo a moeda, e, para que compreenda bem a importância da moeda sagrada, gaguejo e aponto com o dedo todas as belas coisas que pode adquirir com ela. Depois, coloco a moeda no bolso, passeio orgulhosamente, levanto a aba de meu casaco, dou um tapinha no bolso — e assim mostro-lhe que a segurança que vê em mim nasce da moeda que ali está.
EU — Não poderia ser melhor. Contudo, se acontecesse que, estando profundamente compenetrado do valor da moeda, um dia...
ELE — Entendo. E preciso fechar os olhos. Não há princípio moral sem um inconveniente. No pior dos casos, será um mau quarto de hora e tudo estará terminado.
EU — Apesar dessa visão sensata e corajosa, continuo achando que o melhor seria que se tornasse músico. Não conheço meio mais rápido para se aproximar dos grandes, servir aos vícios deles e tirar proveito para os seus próprios.
ELE — É verdade, mas tenho projetos para um sucesso mais rápido e seguro. Ah! se fosse moça! Mas como não se faz o que se quer, deve-se pegar o que vier e tirar o melhor partido. E a primeira coisa há de ser a de não dar a educação da Lacedemônia a uma criança que viverá em Paris. Se os pais fossem menos bestas não fariam isto, considerando que seriam responsáveis pela infelicidade de seus filhos se o fizessem. Se Pária é má, a culpa não é minha, mas dos costumes de minha nação. Fale quem quiser, o que quero é que meu filho seja feliz ou, o que dá no mesmo, que seja honrado, rico e poderoso. Conheço mal e mal as vias mais fáceis para atingir este alvo, e ensinar-lhas-ei quando chegar a hora e a vez. Se vós, sábios, me condenardes, a multidão e o sucesso me absolverão. Haverá ouro, sou eu quem vo-lo diz. Se
houver bastante, nada lhe faltará, nem mesmo vossa estima e vosso respeito.
EU — Poderíeis estar enganado.
ELE — Ou dispensá-lo-á, como muitos outros.
Havia em suas palavras muita coisa que pensamos, que dirige nossa conduta, mas que calamos. Na verdade, esta é a diferença mais notável entre meu homem e a maioria de nossa vizinhança. Confessava seus vícios, que são dos outros também, mas não era hipócrita. Não era mais nem menos abominável do que os outros, somente mais franco, mais conseqüente e por vezes mais profundo em sua depravação. Eu estremecia pensando no que seria seu filho com tal mestre. É certo que, com idéias pedagógicas tão rigorosamente calcadas sobre nossos costumes, o menino iria longe, a menos que fosse prematuramente detido no caminho.
ELE — Oh! não temais. O ponto importante e difícil que deve preocupar realmente o pai não é dar ao seu filho vícios que o enriqueçam, ridículos que o tornem precioso para os grandes. Isto todos fazem, se não sistematicamente como eu, pelo menos pelo estudo e pelo exemplo. O ponto fundamental é ensinar-lhe a justa medida, a arte de esquivar-se da vergonha, da desonra e das leis. É preciso saber situar, preparar e salvar as dissonâncias na harmonia social. Nada mais sem graça do que uma seqüência de acordes perfeitos. É preciso algo espicaçante que separe o feixe e disperse os raios.
EU — Muito bem. Com esta comparação retornamos dos costumes à música, de que me afastei a contragosto. Estou grato, pois, sem querer ofender-vos, prefiro o músico ao moralista.
ELE — Entretanto, sou subalterno em música e grande em moral.
EU — Duvido, mas, mesmo que assim fosse, sou um homem direito e vossos princípios não são os meus.
ELE — Pior para vós. Ah! se eu tivesse vossos talentos!
EU — Deixemos meus talentos e voltemos aos vossos.
ELE — Se soubesse exprimir-me como vós! Mas tenho um diacho de chilreio extravagante, metade estilo da gente da alta roda e da gente das letras, metade da gente do mercado.
EU — Falo mal. Só sei dizer a verdade, o que nem sempre é um sucesso, como sabeis.
ELE — Mas não é para dizer a verdade que ambiciono vosso talento. Pelo contrário, é para dizer bem a mentira. Se soubesse escrever, engalanar os livros, tornear primorosamente uma boa epístola dedicatória, embriagar um tolo com seu mérito, insinuar-me junto às mulheres!
EU — Sabeis fazer tudo isso mil vezes melhor do que eu. Não seria digno sequer de ser vosso aluno.
ELE — Quantas qualidades perdidas cujo preço ignorais!
EU — Colho o que semeio.
ELE — Se assim fosse não usaríeis este casaco grosseiro, este paletó de estamenha, estas meias de lã, estes sapatos grossos, esta peruca antiquada.
EU — Concordo. É preciso ser muito desastrado quando não se é rico e se permite tudo para vir a sê-lo. Mas é que há gente como eu que não encara a riqueza como a coisa mais preciosa do mundo; gente extravagante.
ELE — Muito extravagante. Não se nasce desse jeito. Inventa-se, pois não está na natureza.
EU — Do homem?
ELE — Do homem. Tudo que vive, sem excetuar o homem, procura seu bem-estar às expensas de quem o possuir. Estou certo de que, se deixasse vir um selvagenzinho sem nada lhe dizer, ele bem gostaria de estar ricamente vestido, esplendidamente nutrido, querido pelos homens, amado pelas mulheres, e reunir para si todas as felicidades da vida.64
EU — Se o pequeno selvagem estivesse abandonado a si próprio, conservando toda a sua imbecilidade e reunindo o pouco de razão da criança de berço à violência das paixões do homem de trinta anos, torceria o pescoço de seu pai e dormiria com sua mãe.65
ELE — O que prova a necessidade de uma boa educação. E quem o contesta? E que é uma boa educação, senão aquela que conduz a todos os gozos sem perigo e sem inconveniente?
EU — Pouco importa que eu não seja de vossa opinião, mas guardemos-nos de explicar-nos.
ELE — Por quê?
EU — Porque temo que só concordemos em aparência e que se entrarmos na discussão dos perigos e inconvenientes a evitar não nos entenderemos mais.66
ELE — E que mal há nisso?
EU — Deixemos esse assunto, repito. Não conseguiria vos ensinar o que sei sobre a questão, e não conseguiríeis instruir-me mais facilmente naquilo que ignoro e que sabeis sobre música. Caro Rameau, falemos de música, e dizei-me como não haveis feito nada que preste tendo a facilidade de sentir, reter e executar os mais belos trechos dos grandes mestres, com o entusiasmo que vos inspiram e que transmitis aos outros.
Em vez de me responder, meneia a cabeça e erguendo o dedo para o céu acrescenta: “E o astro? E o astro? A natureza sorriu ao fazer Leo, Vinci, Pergolese, Douni. Tomou um ar imponente e grave formando o caro tio Rameau, que será chamado durante uma dezena de anos o grande Rameau, e de quem em breve não se falará mais. Quando modelou seu sobrinho, careteou, careteou outra vez, e ainda mais uma vez. (Ao dizer isto faz todo tipo de caretas com o rosto: desprezo, ironia, desdenho; (...)
Denis Diderot (1713-1784)






