
Poética Musical em 6 lições. Trad. L. P. Horta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1996.
(Excertos)
(p.15-16) Não esquecerei que estou ocupando uma cadeira de poética. E não é segredo pra nenhum de vocês que o significado exato de poética é o estudo de uma obra a ser feita. O verbo, poiein, do qual a palavra deriva, significa exatamente fazer ou fabricar. A poética dos filósofos clássicos não consiste de dissetações líricas sobre o talento natural e sobre a beleza. Para eles, a palavra techné abrangia tanto as belas-artes como as coisas práticas, e aplica-se ao conhecimento e ao estudo das regras corretas e invitáveis de um determinado métier. Eis por que a Poética de Aristóteles muitas vezes sugere ideias referentes ao trabalho pessoal, à organização do material e à estrutura. A poética da música – é justamente sobre isso que vou falar a vocês; isto é, falarei sobre o fazer no campo da música. É o bastante para dizer que não usarei a música como pretexto para agradáveis devaneios. Quanto a mim, tenho plena consciência da responsabilidade que me incumbe para deixar de levar a sério minha tarefa. (...)
(p. 17)De fato, não podemos observar o fenômeno criativo independentemente da forma em que ele se manifesta. Todo processo formal deriva de um princípio, e o estudo desse princípio requer precisamente o que denominamos dogma. Em outras palavras, a necessidade que sentimos de trazer ordem ao caos, de encontrar o caminho certo de nossa operação a partir de um feixe de possibilidades ou da indecisão de pensamentos vagos, pressupõe a necessidade de alguma forma de dogmatismo. Portanto, uso as palavras dogma e dogmatismo apenas na medida em que designam um elemento essencial para salvaguardar a integridade da arte e do espírito. (...)
(pp.21-23)Na verdade, eu teria dificuldade em citar para vocês um único fato na história da arte que pudesse ser qualificado de revolucionário. A arte é, por essência, construtiva. Revolução implica ruptura de equilíbrio. Falar de revolução é falar de um caos temporário. Ora, a arte é o contrário do caos. Ela nunca se rende ao caos sem ver imediatamente ameaçadas suas obras vivas, sua própria existência.
A qualidade de ser revolucionário é em geral atribuída a artista de nosso tempo com uma intenção laudatória, certamente porque vivemos um período em que a revolução goza de uma espécie de prestígio junto à elite de ontem. Vamos chegar a um acordo: sou o primeiro a reconhecer que a audácia é a força motriz das melhores e maiores atitudes; o que é mais uma razão para não empregá-la levianamente a serviço da desordem e de um desejo mesquinho de causar sensação a qualquer preço. Eu aprovo a audácia; não estabeleço limites para ela. Porém, da mesma maneira, não há limites para os prejuízos causados por atitudes arbitrárias.
Para poder desfrutar plenamente das conquistas da audácia, devemos exigir que ela atue sob uma luz impiedosa. Estamos trabalhando a seu favor quando denunciamos a moeda falsa que gostaria de usurar o seu lugar. O excesso gratuito deteriora qualquer substância, todas as formas em que ele interfira. Em sua precipitação, ele enfraquece a eficácia das mais valiosas descobertas, ao mesmo tempo em que corrompe o gosto de seus devotos – o que explica porque esse gosto muitas vezes passa, sem transição, das mais terríveis complicações às mais frívolas banalidades.
Um complexo musical, por áspero que seja, é legítimo na medida em que é genuíno. Mas para reconhecer valores legítimos em meio aos excessos de artificialidade é preciso ser dotado de um instinto seguro, que os nossos esnobes detestam tanto mais intensamente quanto são totalmente privados dele.
A nossa elite de vanguarda, sempre decidida a superar-se a si mesma, espera e exige que a música lhe satisfaça o gosto pela mais absurda cacofonia.
Digo cacofonia sem medo de ser incluído no número de pompiers* convencionais, dos laudatores tempis acti.** E usando a palavra, estou certo de não estar me contradizendo nem um pouco. Minha posição a esse respeito é exatamente a mesma do tempo em que eu compunha a Sagração, e as pessoas achavam conveniente chamar-me de revolucionário. Hoje, assim como no passado, estou sempre em guarda contra a moeda falsa, e tomo cuidado para não aceitá-la como o dinheiro real do país. Cacofonia significa som desagradável, mercadoria contrabandeada, música descoordenada incapaz de sustentar-se face a uma crítica séria. Seja qual for a opinião que se possa ter da música de Arnold Schoenberg (para tomar como exemplo um compositor que trabalha em linhas essencialmente diversas da minha, tanto estética como tecnicamente), cujas obras deram vazão frequentemente a reações violentas ou sorrisos irônicos, é impossível a alguém que se leve a sério, e dotado de verdadeira cultura musical, não sentir que o compositor de Pierrot Lunaire tem plena consciência do que está fazendo, e que não está tentando enganar ninguém. Ele adotou o sistema musical que atendia às suas necessidades, e dentro desse sistema é perfeitamente consistente consigo mesmo, perfeitamente coerente. Você não pode simplesmente denegrir uma música de que não gosta dizendo que se trata de uma cacofonia.
(pp. 31-32)Pretendo usar o exemplo mais banal: o do prazer que experimentamos ao ouvir o rumorejar da brisa nas árvores, o murmúrio de um riacho, a canção de um pássaro. Tudo isso nos agrada, nos diverte, nos delicia. Podemos até dizer: “Que música deliciosa”. Naturalmente, estou usando apenas uma comparação. E a comparação não é raciocínio. Esses sons da natureza nos sugerem uma música, mas ainda não são, em si mesmos, música. Se extraímos prazer desses sons e imaginamos que, ao nos expormos a eles, nos tronamos músicos e atém eventualmente, músicos criativos, é preciso admitir que estamos enganando a nós mesmos. Esses sons são promessas de música, e é preciso um ser humano para registrá-los: um ser humano sensível às vozes da natureza, obviamente, mas que, além disso, sente a necessidade de organizá-las, e que é dotado, para tal, de uma aptidão especial. Em suas mãos, tudo o que estou considerando como não sendo música em música se transformará. Daí concluo que elementos sonoros só se tornam música quando começam a ser organizados, e que essas organizações pressupõe um ato humano consciente.
Assim, tomo conhecimento da existência de sons naturais elementares – a matéria-prima da música -. que, agradáveis em si mesmos, são capazes de acariciar o ouvido e nos proporcionar um prazer que pode ser bastante completo. Mas, acima e além desse prazer passivo, vamos descobrir a música, música que nos fará participar ativamente do trabalho de um espírito que ordena, dá vida e cria. Pois na raiz de toda criação encontramos um apetite que não é um apetite pelos frutos da terra; de modo que, aos dons da natureza, acrescentam-se os benefícios da elaboração humana – esta é a significação geral da arte.
Não é exatamente arte o que chega a nós na canção de um pássaro. porém, a mais simples modulação, corretamente executada, já é arte, sem a menor possibilidade de dúvida.
A arte, no sentido verdadeiro, é o modo de trabalhar uma obra de acordo com alguns métodos adquiridos, seja pelo aprendizado, seja pela inventividade. E os métodos são canais eficazes e predeterminados que garantem a propriedade de nossa operação.
(pp. 34-37) De minha parte, não consigo esquecer que a música, do tipo que tem significação para nós atualmente, é a mais jovem de todas as artes, embora suas origens sejam tão antigas quanto as do próprio homem. Quando remontamos além do século XIV, as dificuldades materiais criam obstáculos e se acumulam a tal ponto que ficamos reduzidos a fazer conjecturas quando se trata de decifrar a música.
Só o homem integral é capaz da empreitada especulativa que irá ocupar agora a nossa atenção.
Pois o fenômeno da música não é outra coisa senão um fenômeno especulaivo. Não há nada nesse termo que deva assustá-los. Ele simplesmente supõe que a base a criação musical é uma espécie de sentimento preliminar uma vontade que inicialmente caminha no terreno do abstrato com a intenção de dar forma a algo concreto. Os elementos a que essa especulação diz respeito são o som e o tempo. A música é inconcebível quando isolada desses elementos.
A fim de facilitar a exposição, falaremos primeiro do tempo.
As artes plásticas apresentam-se a nós no espaço: recebemos uma impressão global antes de detectar os detalhes, pouco a pouco e em nosso ritmo próprio.A música, porém, baseia-se numa sucessão temporal, e exige uma memória alerta. Sendo assim, a música é uma arte cronológica, assim como a pintura é uma arte espacial. A música pressupõe, antes de tudo, certa organização do tempo, uma crononomia, se me permitem esse neologismo.
As leis que regulam o movimento dos sons exigem a presença de um valor mensurável e constante: a métrica, elemento puramente material, através do qual o ritmo, elemento puramente formal, se realiza. Em outras palavras, a métrica resolve a questão de em quantas partes iguais será dividida a unidade musical que denominamos compasso, enquanto o ritmo resolve a questão de como essas partes iguais serão agrupadas dentro de um determinado compasso. Um compasso de quatro tempos, por exemplo, pode ser composto de dois grupos de dois tempos, ou de três grupos: um tempo, dois tempos, um tempo, e assim por diante...
Vemos portanto que a métrica – já que intrinsicamente oferece apenas elementos de simetria, sendo inevitavelmente composta de quantidade iguais – é necessariamente utilizada pelo ritmo, cuja função é estabelecer a ordem no movimento dividindo as quantidades fornecidas pelo compasso.
Quantos de nós, ouvindo jazz, não terão sentido uma curiosa sensação, próxima da vertigem, quando um dançarino ou músico solista, tentando insistentemente enfatizar acentos irregulares, não consegue desviar oi nosso ouvido da pulsação regular da métrica produzida pela percussão?
De que modo reagirmos a uma impressão dessa natureza? O que chama mais atenção nesse conflito entre ritmo e métrica? É a obsessão com a regularidade. Os tempos isócronos, nesse caso, são apenas um modo de pôr em relevo a invenção rítmica do solista. è isso que traz surpresa e produz o inesperado. Refletindo sobre isso, percebemos que sem a presença real ou implícita das marcações de tempo não poderíamos descobrir o sentido dessa invenção. Estamos aqui apreciando uma forma de relação.
(...)
Mais complexo, e de fato fundamental, é o problema específico do tempo musical, do cronos da música, Esse problema foi objeto, recentemente, de um estudo muito interessante de Pierre Souvtchinski, um filósofo russo e meu amigo. Seu pensamento encontra-se tão próximo ao meu que nada posso fazer aqui senão procurar resumir sua tese.
Ele vê a criação musical como um complexo inato de intuições e possibilidades baseadas fundamentalmente numa experiência exclusivamente musical do tempo - cronos -, do qual a linguagem musical nos dá apenas a realização funcional.
Todos sabemos que o tempo transcorre numa velocidade que varia de acordo com as disposições íntimas do indivíduo, e com os fatos que afetam sua consciência. Expectativas, tédio, angústia, dor e prazer, contemplação – tudo isso aparece como diferentes categorias em meio às quais nossa vida se desdobra, e cada uma delas determina um processo psicológico específico, um andamento particular. Essas variações no tempo psicológico são perceptíveis apenas na medida em que estão relacionadas à sensação primária – consciente ou inconsciente – do tempo real, do tempo ontológico.
O que confere ao conceito de tempo musical sua marca específica é que essa categoria nasce e se desenvolve tanto externa como simultaneamente às categorias do tempo psicológico. Qualquer música, quer se submeta ao fluxo normal do tempo, quer se dissocie dele, estabelece uma relação particular, uma espécie de contraponto entre a passagem do tempo, a furação da própria música, e os meios técnicos e materiais pelos quais a música se manifesta.
Souvtchinski nos apresenta dois tipos de música: um deles evolui paralelamente ao processo do tempo ontológico, envolvendo-o e penetrando-o, introduzindo na mente do ouvinte um sentimento de euforia, o que se poderia chamar de “calma dinâmica”. O outro tipo vai à frente, ou em direção contrária, desse processo. Não está encerrado em cada unidade tonal momentânea. Desloca os centros de atração e gravidade, e se estabelece no instável. Esse fato torna-o particularmente adaptável à transposição dos impulsos emotivos do compositor. Toda música em que o desejo de expressão predomina pertence ao segundo tipo.
(...)
A música que se apóia no tempo ontológico é geralmente dominada pelo princípio da similaridade. A música que adere ao tempo psicológico tende a proceder por contraste.
(pp. 52-53) É assim, através do pleno exercício de suas funções, que uma obra se revela e se justifica. Estamos livres para aceitar ou rejeitar esse exercício, mas ninguém tem o direito de questionar e criticar o princípio da vontade especulativa que está na origem de toda criação é, assim, definitivamente inútil. Em seu estado puro, música é especulação livre. Artistas de todas as épocas fornecem um testemunho incessante a esse respeito.
(...) A maioria dos amantes de música acredita que o que põe em movimento a imaginação criadora de um compositor é um certo distúrbio emotivo geralmente designado pelo nome de inspiração.
Não pretendo negar à inspiração o papel de destaque que lhe cabe no processo gerador que estamos estudando. Apenas, sustento que a inspiração não é de forma alguma condição prévia do ato criativo, e sim uma manifestação cronologicamente secundária.
(p.69) Toda arte pressupõe um trabalho de seleção. Normalmente, quando eu começo a trabalhar, meu objetivo ainda não está definido. Se me perguntassem o que eu quero nesse estágio do processo criativo, teria dificuldade em responder. (...) Proceder por eliminação – saber como descartar, como diz o jogador, esta é a grande técnica de seleção. E aqui, mais uma vez, encontramos a busca pelo Um a partir do Múltiplo. (...) Se trabalho com a justaposição de sons que se chovam violentamente, posso produzir uma sensação imediata e poderosa. Se, por outro lado, consigo aproximar cores que se relacionam estreitamente, chego a esse objetivo de maneira menos direta mas muito mais segura. O princípio inerente a esse método revela a atividade subconsciente que nos faz pender para a unidade; pois, instintivamente, preferimos a coerência e sua força tranquila aos inquietos poderes da dispersão.
(p. 82) Crítica – diz o dicionário – é a arte de julgar produções literárias e obras de arte. Podemos adotar tranquilamente essa definição. Sendo assim, e já que a crítica é uma arte, ela não fica imune à nossa própria crítica. O que pedimos dela? Que limite estabeleceremos para seu domínio? Na verdade, queremos que ela seja inteiramente livre em seu terreno próprio, que consiste em julgar obra existentes, e não em divagar sobre a legitimidade de suas origens ou intenções. (...)
(p. 111) É necessário distinguir dois momentos, ou melhor, dois estados da música: música potencial e música real. Tendo sido fixada no papel ou retida na memória, a música já existe antes de sua performance efetiva, distingue-se nesse ponto de todas as outras artes, assim como difere delas, como já vimos, nas categorias que determinam sua percepção. A entidade musical apresenta assim a notável singularidade de englobar dois aspectos, de existir sucessivamente e distintivamente em duas formas separadas uma da outra pelo hiato do silencia. Essa natureza peculiar da música determina sua própria vida, bem como suas repercussões no mundo social, já que ela pressupõe dois tipos de músico: o criador e o executante.
(p. 113) Entre o simples executante e o intérprete no sentido estrito da palavra existe uma diferença essencial que é a de um caráter ético mais do que estético, uma questão que traz à tona uma questão de consciência: teoricamente, só se pode exigir do executante a tradução em sons de uma determinada partitura,o que ele pode fazer de boa vontade ou com relutância, ao passo que se tem o direito de pedir do intérprete, além da perfeição de sua transposição sonora, um amoroso cuidado – o que não significa, aberta ou sub-repticiamente, uma recomposição.
* O termo francês pompier originou-se da semelhança, nas pinturas do seculo XIX, entre os elmos dos antigos soldados romanos e os capacetes dos bombeiros. Aplica-se a pessoas que representam o pendatismo pomposo e um certo convencionalismo.
** Em latim, no original: "Louvadores dos tempos passados" (N.T.)
Igor Stravinsky (1882-1971)






