
Cartas de Cláudio Monteverdi. Tradução, notas e apresentação Ligiana Costa. São Paulo, Editora Unesp, 2011.
Cremona, 28 de julho de 1607
A Annibale Iberti, Gênova
p. 10. Esta é a música que compus, mas gostaria, antes que sua alteza sereníssima a ouça, de entrega-la nas mãos do senhor dom Bassano para que a ensaie e domine a melodia com os outros cantores, pois é coisa muito difícil para um cantor cantar uma melodia sem antes tê-la praticado e isto é muito danoso para a composição musical, pois não se pode compreendê-la inteiramente na primeira vez que é cantada.
Mântua, 26 de março de 1611
Ao príncipe Francesco Gonzaga, Casale Monferrato
p. 28.(...) Disse-lhe de minha iniciativa: “Se o sereníssimo senhor príncipe desejasse vos empregar, a este senhor agrada não somente escutar variações em instrumentos de sopro, mas lhe agrada também que os instrumentistas toquem música de câmara, de igreja, pelas ruas e nos castelos, ora madrigais, ora canzoni francesas, ora árias e ora danças”.
Veneza, 21 de novembro de 1615
A AnnibaleIberti, Mântua
p. 37.Sendo que pelas mãos do senhor residente eu o envio a vossa senhoria ilustríssima para apresentá-lo a sua alteza sereníssima, me pareceu por bem acompanha-lo também de uma carta minha a vossa senhoria ilustríssima para lhe dizer que, se sua alteza sereníssima desejasse que fossem feitas mudanças neste, de árias ou de acréscimo de mais outras árias, de natureza mais grave e lenta ou mais cheias e sem fugas, que sua alteza sereníssima não preste atenção ao texto presente, que pode ser trocado (o presente servirá ao menos para a métrica e à reprodução do canto) e se desejar mudanças em tudo, suplico que vossa senhoria ilustríssima me faça um pedido no qual sua alteza sereníssima julga digno me reordenar a encomenda, assim, como servidor devotíssimo e desejoso de receber a graça de sua alteza sereníssima, não deixarei de fazer que sua alteza sereníssima fique satisfeita comigo.
Veneza, 9 de dezembro de 1616
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 42.Direi então, com todo o respeito, para lhe obedecer, já que assim ordena. Digo, antes de tudo, que a música quer ser senhora do ar e não somente das águas. Quero dizer, na minha linguagem, que os concertos descritos em tal fábula são todos baixos e próximos à terra, o que é uma falha grandiosa para as belas harmonias, pois estas serão escritas para os sopros graves; situados ao fundo do palco, difíceis de serem ouvidos por todos e difíceis de serem ouvidos por todos e difíceis de serem tocados (sobre isso deixo que sentencie vosso finíssimo e inteligentíssimo gosto). Neste caso, em vez de um chitarrone serão necessários três, em vez de uma harpa serão necessárias três, e assim por diante. No lugar de uma voz delicada do cantor será necessária uma forçada; além do que, a imitação da própria fala exigiria, na minha opinião, o apoio de instrumentos de sopro em vez de instrumentos de cordas e delicados, pois creio que as músicas dos tritões e das outras divindades marinhas devem ser designadas para os trombones e cornetos, e não para as cítaras ou os cravos e as harpas, pois sendo esta uma trama marítima, e por consequência fora da cidade – e Platão ensina que “chitaradebet esse in civitate et thibia in agris”³¹, ou as harmonias delicadas serão impróprias ou as apropriadas não serão delicadas.
Além disso, vi que os interlocutores são Ventos, Cupidos, Zéfiros e Sereias, e consequentemente serão necessários muitos sopranos; a isto se somam os Ventos, que deverão cantar, ou seja, os Zéfiros e as Boreais! E como poderei eu, caro senhor, imitar a fala dos ventos se estes não falam?! E como poderei mover as paixões através deles? Ariadna soube movê-las por ser mulher e Orfeo também o soube por ser homem, e não vento. A música pode imitar por si só, e não por meio do discurso, os rumores dos ventos, o balir dos carneiros, o relinchar dos cavalos e assim por diante, mas não imitar o falar dos ventos, que não existe!
Quanto às danças, que são encontradas na fábula algumas vezes, elas não têm ritmo de dança.
A invenção inteira, aos olhos de minha grande ignorância, não sinto que me emocione, e com dificuldade a compreendo e nem sinto que ela me leve a um final que me comova. Ariadna me leva a um justo lamento e o Orfeo, a uma justa prece, mas esta não sei a qual fim leva. Assim, o que quer vossa senhoria que a música consiga nesta? Todavia, aceitarei sempre tudo com toda reverência e honra desde que sua alteza sereníssima ordene e seja de vosso agrado, pois é, sem réplica, meu senhor.
E se sua alteza sereníssima ordenasse que eu a musicasse, vendo que nesta as divindades falam a maioria do tempo e sendo que eu gosto de ouvi-las cantar de forma ornamentada, eu diria que no que diz respeito às sereias, poderiam ser cantadas pelas três senhoras irmãs (ou seja, Andriana e as outras) e estas poderiam até mesmo compor suas próprias partes. Assim também o senhor Rasso, assim o senhor dom Francesco e assim por diante os outros senhores, imitando o cardeal Mont’Alto, que fez uma peça em que cada personagem que nesta intervinha compunha sua própria parte. Porém, se fosse o caso de uma coisa que tendesse a um só final, como a Ariadna e o Orfeo, seria necessária somente uma mão, que tendesse ao falar cantando e não como esta, ao cantar falando. E, a propósito, considero que as partes faladas de cada personagem são muito longas, das sereias em diante e algumas outras falas.
(Nota 31:“Devemos empregar a cítara na cidade e a flauta, no campo”, Platão, A república, livro III, 399d.),
Veneza, 29 de dezembro de 1616
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 45. Voltei a olhá-la de forma mais atenta e cuidadosa, e eu vejo que serão necessários muitos sopranos e tenores; pouquíssimos diálogos, os quais serão recitativos e não árias ornamentadas. No que diz respeito aos coros, haverá somente o dos argonautas no navio e este será o mais agradável e vigoroso e será realizado a seis vozes e seis instrumentos. Estão presentes também os Zéfiros e os Ventos Boreais, mas não sei como estes cantam, porém sei bem que sopram e assobiam. Aliás, Virgílio, ao falar dos ventos, adora o verbo sibilare, que quando pronunciado imita justamente o efeito do vento. Há ainda dois coros, um das nereidas e o outro dos tritões, mas me parece que estes deveriam ser acompanhados por instrumentos de sopro, pois, vossa senhoria ilustríssima, se assim não for, qual prazer traria aos ouvidos?
E para que vossa senhoria ilustríssima possa constatar esta verdade, envio anexa a lista das cenas conforme ocorrem nessa fábula, a fim de que me conceda o favor de sua opinião.
Veneza, 6 de janeiro de 1617
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 48. Ilustríssimo senhor, devo admitir que quando escrevi a primeira carta em resposta à vossa primeira, que como a fábula a mim enviada tinha como título apenas este – Le nozzediTetide: favolamaritima [fábula marítima] -, confesso tê-la tomado como obra a ser cantada e representada em música como o fora a Arianna. Mas depois de ter compreendido, pela sua última carta, que a obra serviria como intermédio de uma peça grande, se antes eu a julgara de pouco estofo (tendo em mente o primeiro gênero), compreendido então o contrário, eu a considero obra digna e nobilíssima. Falta, porém, ao meu ver, para a conclusão do todo, depois do último verso (“Torni sereno Il ciel, tranquilo il mare” [Que o céu volte a ser sereno, tranquilo o mar]), falta, digo, uma canzonetta em louvor dos sereníssimos príncipes esposos, cuja harmonia poderá ser ouvida no céu e na terra da cena (Ou seja, na parte alta e na parte baixa do palco – nota do tradutor) e sobre a qual nobres bailarinos executariam nobre dança pois parece-me que uma tão nobre conclusão adequar-se-ia a tão nobre projeto. E se, igualmente, se pudesse acomodar ao ritmo de dança os versos que as nereidas deverão cantar, sobre os quais experientes bailarinos poderiam dançar graciosamente, isto seria, parece-me, bem mais apropriado.
Tenho alguma reserva em relação aos três cantos das três sereias, tenho a seguinte dúvida: se hão de cantar as três separadamente, muito longa parecerá a obra aos ouvintes, e com pouca variação, pois entre uma e outra será necessária uma sinfonia e floreios, que apoiem os recitativos, além de trilos, o que resultará em certa similitude. Por isso, julgaria, inclusive para variação do todo, que os dois madrigais fossem cantados alternadamente; um, a uma só voz e o outro, a duas vozes, e que o terceiro o fosse a três vozes ao mesmo tempo.
A parte de Vênus, a primeira parte que vem logo após o pranto de Peleás e a primeira a ser ouvida em canto ornamentado, ou seja, com floreios e trilos; eu julgaria por bem que fosse cantada talvez também pela senhora Andriana como voz principal e por suas duas irmãs como respostas em eco, pois no texto se encontra este verso:”Esfavillin d’amor li scolgli e l’onde” [E brilhem de amor os rochedos e as ondas], mas antes, preparando o espírito dos ouvintes com uma sinfonia em que os instrumentos ocupem, se possível, a metade do palco, pois precedem a isto os seguintes versos: “Ma qual per l’aria sento/Celeste, soavissimoconcento?” [Mas que ouço no ar/Celeste e suavíssimo concerto?], e penso que assim a senhora Andriana, ou uma ou das três outras senhoras, teria tempo de trocar de figurino.
Veneza, 21 de julho de 1618
Ao príncipe Vincenzo Gonzaga, Mântua
p. 61. Mandarei a vossa senhoria ilustríssima a canzonetta cantada pelo coro dos pescadores que inicia com “Se valor difortibraccia” [Se o valor de fortes braços] pelo próximo correio ordinário, mas me seria de grande favor saber a quantas vozes e como deverá ser executada e ainda se antes da mesma será feita uma sinfonia de instrumentos e de qual espécie, para que a possa adequar. Ser-me-ia igualmente uma grande graça saber se a canzonetta que começa com “Il fulgore onde risplendono” [O fulgor onde resplandecem], cantada pelo coro das donzelas, será cantada e dançada, por quais instrumentos será tocada e por quantas vozes será cantada para que eu possa fazer da mesma a música apropriada.
Veneza, 9 de janeiro de 1620
A Alessandro Striggio, Mântua
Meu ilustríssimo senhor e patrão estimadíssimo,Envio a vossa senhoria ilustríssima o Lamento d’Apollo [Lamento de Apolo]; pelo próximo correio ordinário lhe mandarei do início até o ponto em que atualmente estou, pois já está praticamente terminado, faltando-me ainda somente uma rápida revisão.Na passagem em que o Cupido inicia a cantar, me pareceria bom que nossa senhoria ilustríssima acrescentasse outros três versos de métrica similar e de mesmo sentido para que se possa repetir uma vez a mesma ária; esperando que essa nuança de alguma alegria não cause um efeito ruim, dando sequência de forma contrária ao afeto doloroso de Apolo que, com a mudança do modo de falar e da harmonia, muda também o texto.
Veneza, 1° de fevereiro de 1620
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 75. Aqui, alguns senhores ouviram o Lamento di Apollo e gostaram tanto da invenção, dos versos e da música que pensaram, depois de uma hora de concerto – concerto que se tornou hábito de se realizar na casa de um certo senhor da família Bembo, onde a audiência é formada de senhores e damas de primeiríssima classe -, pensaram, digo, em pôr em um pequeno palco essa bela ideia de vossa senhoria ilustríssima. Por isto, se devo eu compor o balé, preciso que vossa senhoria ilustríssima me envie o quanto antes os versos; se não for possível, acrescentarei um balé à minha escolha para que se desfrute a bela obra de vossa senhoria ilustríssima.
Veneza, 1° de maio de 1627
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 152.(...) Se a operação se tratar de compor intermédios para uma grande peça, o parto não seria tão cansativo e nem mesmo tão longo; mas numa peça cantada, que almeja se equiparar a um poema, escrita em breve tempo, acredite-me vossa senhoria ilustríssima que não se pode fazer sem cair em um dos dois erros: ou fazê-la mal ou cair doente.
Entretanto, tenho comigo muitas estrofes do Tasso compostas onde a Armida começa: “O tu che porte/parte teco di me, parte ne lassi...” [“Ó tu que levas/uma parte de mim contigo, a outra deixas...], que talvez não desagradaria. Encontro-me também com o CombattimentodiTancrediconClorinda [Batalha entre Tancredo e Clorinda] feito. Também digeri em minha mente um opúsculo do senhor Giulio Strozzi, muito bela e curiosa que deve ter cerca de quatrocentos versos, intitulada Licori, finta pazzainnamorata d’Aminta [Licori, a louca fingida apaixonada por Aminta], a qual, depois de ter feito mil artifícios cômicos, consegue se casar graças à sua arte da enganação; e tais coisas podem servir como pequenos episódios entre outras músicas, pois não resultariam mal e sei que não desagradariam vossa senhoria ilustríssima. Se também forem necessárias músicas para igreja, como vésperas ou missas, acredito que nesse gênero eu teria alguma coisa do gosto de vossa alteza sereníssima.
Veneza, 7 de maio de 1627
A Alessandro Striggio, Mântua
p. 154. A invenção não me parece ruim, nem mesmo a trama. É bem verdade que o papel de Licori, por ser muito variado, não poderá cair em mãos de uma mulher incapaz de se fazer ora de homem ora de mulher, com vivos gestos e paixões contrastantes, pois a imitação de tal fingida loucura deve levar em consideração somente o presente e não o passado e o futuro (por consequência, essa imitação deve se apoiar na palavra e não no sentido de todo o verso); assim sendo, quando falar de guerra, deverá imitar a guerra, quando falar de paz, imitar a paz, quando de morte, a morte, e assim por diante – e também porque as transformações se farão em brevíssimo espaço de tempo, assim como as imitações. Então, a mulher que representar esse papel de primeiríssima importância, que leva ao riso e à compaixão, deverá deixar de lado qualquer outra imitação que não a presente, que lhe será sugerida pela palavra que terá que dizer. Não obstante, acredito que a senhora Margharita o fará de modo excelentíssimo.
Claudio Monteverdi (1567-1643)






