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Lévi-Strauss, Claude. O cru e o cozido. Mitológicas 1. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004,

 

 

 

Abertura

 

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No início desta introdução, dissemos ter procurado transcender a oposição entre o sensível e o inteligível, colocando-nos imediatamente no nível dos signos. Estes, na verdade, se exprimem um através do outro. Mesmo quando em número reduzido, prestam-se a combinações rigorosamente arranjadas, que podem traduzir, até em suas mínimas nuanças, toda a diversidade da experiência sensível. Assim, esperamos atingir um plano em que as propriedades lógicas se manifestem como atributo das coisas tão diretamente quanto os sabores ou os perfumes cuja particularidade, impossibilitando qualquer equívoco, remete, no entanto, a uma combinação de elementos que, escolhidos ou dispostos de outro modo, teriam suscitado a consciência de um outro perfume. Graças à noção de signo, trata-se para nós, no plano do inteligível e não mais apenas no do sensível, de colocar as qualidades secundárias a serviço da verdade.

Essa busca de uma via intermediária entre o exercício do pensamento lógico e a percepção estética devia naturalmente inspirar-se no exemplo da música, que sempre a praticou. A comparação não se impunha somente de um ponto de vista genérico. Rapidamente, quase desde o início da redação desta obra, constatamos que era impossível distribuir a matéria deste livro de acordo com um plano conforme às normas tradicionais. O corte em capítulos não violentava apenas o movimento do pensamento; empobrecia-o e mutilava-o, tirava da demonstração sua agudeza. Paradoxalmente, parecia que, para que ela fosse determinante, era preciso conceder-lhe mais flexibilidade e liberdade. Percebemos também que a ordem de apresentação dos documentos não podia ser linear e que as fases do comentário não se ligavam entre si por uma simples relação de antes e depois. Artifícios de composição eram indispensáveis, para dar às vezes ao leitor a sensação de uma simultaneidade, certamente ilusória, já que continuávamos atrelados à ordem do relato, mas da qual podíamos ao menos procurar o equivalente aproximado, alternando um discurso alongado e um discurso difuso, acelerando o ritmo depois de tê-lo tornado lento, ora acumulando os exemplos, ora mantendo- os separados. Assim, constatamos que nossas análises se situavam em diversos eixos. O das sucessões, evidentemente, mas também o das compacidades relativas, que exigiam o recurso a formas evocadoras do que são, em música, o solo e o tutti; os das tensões expressivas e dos códigos de substituição, em função dos quais apareciam, ao correr da redação, oposições comparáveis às entre canto e recitativo, conjunto instrumental e ária.

Dessa liberdade que tomávamos de recorrer a várias dimensões para nelas dispor nossos temas, resultava que um corte em capítulos isométricos devia dar lugar a uma divisão em partes menos numerosas, mas também mais volumosas e complexas, de comprimento desigual, e cada uma delas formando um todo em virtude de sua organização interna, à qual presidiria uma certa unidade de inspiração. Pela mesma razão, essas partes não podiam ter uma forma única; cada uma delas obedeceria, antes, às regras de tom, de gênero e de estilo exigidas pela natureza dos materiais utilizados e pela natureza dos meios técnicos empregados em cada caso. Aqui também, conseqüentemente, as formas musicais nos ofereciam o recurso de uma diversidade já estabelecida pela experiência, já que a comparação com a sonata, a sinfonia, a cantata, o prelúdio, a fuga etc., permitia verificar facilmente que em música tinham sido colocados problemas de construção análogos aos que a análise dos mitos levantara, e para os quais a música já tinha inventado soluções.

Mas, ao mesmo tempo, não podíamos esquivar-nos de um outro problema: o das causas profundas da afinidade, à primeira vista surpreendente, entre a música e os mitos (cujas propriedades a análise estrutural se limita a evidenciar, retomando-as simplesmente em seu proveito e transpondo-as para um outro plano). E, sem dúvida, já era um grande passo no caminho de uma resposta o fato de poder invocar essa invariante de nossa história pessoal que nenhuma peripécia abalou, nem mesmo as fulgurantes revelações que foram, para um adolescente, a audição de Pelléas [e Melisande] e depois d’As bodas: ou seja, a homenagem, prestada desde a infância, no altar do “deus Richard Wagner”. Pois, se devemos reconhecer em Wagner o pai irrecusável da análise estrutural dos mitos (e até dos contos, veja-se Os mestres), é altamente revelador que essa análise tenha sido inicialmente feita em música.[1] Conseqüentemente, quando sugeríamos que a análise dos mitos era comparável à de uma grande partitura (Lévi-Strauss 1958a: 234), apenas tirávamos a conseqüência lógica da descoberta wagneriana de que a estrutura dos mitos se revela por meio de uma partitura.

Contudo, essa homenagem liminar confirma a existência do problema em vez de resolvê-lo. Acreditamos que a verdadeira resposta se encontra no caráter comum do mito e da obra musical, no fato de serem linguagens que transcendem, cada uma a seu modo, o plano da linguagem articulada, embora requeiram, como esta, ao contrário da pintura, uma dimensão temporal para se manifestarem. Mas essa relação com o tempo é de natureza muito particular: tudo se passa como se a música e a mitologia só precisassem do tempo para infligir-lhe um desmentido. Ambas são, na verdade, máquinas de suprimir o tempo. Abaixo dos sons e dos ritmos, a música opera sobre um terreno bruto, que é o tempo fisiológico do ouvinte; tempo irremediavelmente diacrônico porque irreversível, do qual ela transmuta, no entanto, o segmento que foi consagrado a escutá-la numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma. A audição da obra musical, em razão de sua organização interna, imobiliza, portanto, o tempo que passa; como uma toalha fustigada pelo vento, atinge-o e dobra-o. De modo que ao ouvirmos música, e enquanto a escutamos, atingimos uma espécie de imortalidade.

Vê-se assim como a música se assemelha ao mito, que também supera a antinomia de um tempo histórico e findo, e de uma estrutura permanente. Mas, para justificar plenamente a comparação, é preciso avançá-la mais do que fizemos numa outra obra (Lévi-Strauss 1958a: 230-33). Como a obra musical, o mito opera a partir de um duplo contínuo. Um externo, cuja matéria é constituída, num caso, por acontecimentos históricos ou tidos por tais, formando uma série teoricamente ilimitada de onde cada sociedade extrai, para elaborar seus mitos, um número limitado de eventos pertinentes; e, no outro caso, pela série igualmente ilimitada dos sons fisicamente realizáveis, onde cada sistema musical seleciona a sua escala. O segundo contínuo é de ordem interna. Tem seu lugar no tempo psicofisiológico do ouvinte, cujos fatores são muito complexos: periodicidade das ondas cerebrais e dos ritmos orgânicos, capacidade da memória e capacidade de atenção. São principalmente os aspectos neuro- psíquicos que a mitologia põe em jogo, pela duração da narração, a recorrência dos temas, as outras formas de retorno e paralelismo que, para serem corretamente localizadas, exigem que o espírito do ouvinte varra, por assim dizer, o campo do relato em todos os sentidos à medida que este se desdobra diante dele. Tudo isso se aplica igualmente à música. Mas, além do tempo psicológico, a música se dirige ao tempo fisiológico e até visceral, que a mitologia certamente não ignora, já que uma história contada pode ser “palpitante”, sem que seu papel seja tão essencial quanto na música: todo contraponto age silenciosamente sobre os ritmos cardíaco e respiratório.

Limitemo-nos a esse tempo visceral para simplificar o raciocínio. Diremos então que a música opera por meio de duas grades. Uma é fisiológica e, portanto, natural; sua existência se deve ao fato de que a música explora os ritmos orgânicos, e torna assim pertinentes certas descontinuidades que de outro modo permaneceriam no estado latente, como que afogadas na duração. A outra é cultural; consiste numa escala de sons musicais, cujos número e intervalos variam segundo as culturas. Esse sistema de intervalos fornece à música um primeiro nível de articulação, não em função das alturas relativas (que resultam das propriedades sensíveis de cada som), mas das relações que surgem entre as notas da escala: daí sua distinção em fundamental, tônica, sensível e dominante, exprimindo relações que os sistemas politonal e atonal encavalam, mas não destroem.

A missão do compositor é alterar essa descontinuidade sem revogar-lhe o princípio; quer a invenção melódica cave lacunas temporárias na grade, quer, também temporariamente, tape ou reduza os buracos. Ora ela perfura, ora obtura. E o que vale para a melodia vale também para o ritmo, já que, através deste segundo meio, os tempos da grade fisiológica, teoricamente constantes, são saltados ou redobrados, antecipados ou retomados com atraso.

A emoção musical provém precisamente do fato de que a cada instante o compositor retira ou acrescenta mais ou menos do que prevê o ouvinte, na crença de um projeto que é capaz de adivinhar, mas que realmente é incapaz de desvendar devido à sua sujeição a uma dupla periodicidade: a de sua caixa torácica, que está ligada à sua natureza individual, e a da escala, ligada à sua educação. Se o compositor retira mais, experimentamos uma deliciosa sensação de queda; sentimo-nos arrancados de um ponto estável no solfejo e lançados no vazio, mas somente porque o ponto de apoio que nos é oferecido não se encontra no local previsto. Quando o compositor tira menos, ocorre o contrário: obriga-nos a uma ginástica mais hábil do que a nossa. Ora somos movidos, ora obrigados a nos mover, e sempre além daquilo que, sós, nos sentiríamos capazes de realizar. O prazer estético é feito dessa infinidade de enlevos e tréguas, esperas inúteis e esperas recompensadas além do esperado, resultado dos desafios trazidos pela obra; e da sensação contraditória que provoca, de que as provas às quais nos submete são insuperáveis, quando ela se prepara para nos fornecer meios maravilhosamente imprevistos que permitirão vencê-las. Ainda equívoco na partitura, que o revela

 

... irradiando uma sagração

Mal calada pela própria tinta em soluços sibilinos,[2]

 

o desígnio do compositor se atualiza, como o do mito, através do ouvinte e por ele. Em ambos os casos, observa-se com efeito a mesma inversão da relação entre o emissor e o receptor, pois é, afinal, o segundo que se vê significado pela mensagem do primeiro: a música se vive em mim, eu me ouço através dela. O mito e a obra musical aparecem, assim, como regentes de orquestra cujos ouvintes são os silenciosos executores.

Se perguntarmos então onde se encontra o verdadeiro núcleo da obra, a resposta necessária será que sua determinação é impossível. A música e a mitologia confrontam o homem com objetos virtuais de que apenas a sombra é atual, com aproximações conscientes (uma partitura musical e um mito não podendo ser outra coisa) de verdades inelutavelmente inconscientes e que lhes são consecutivas. No caso do mito, intuímos o porquê dessa situação paradoxal: deve-se à relação irracional que prevalece entre as circunstâncias da criação, que são coletivas, e o regime individual do consumo. Os mitos não têm autor; a partir do momento em que são vistos como mitos, e qualquer que tenha sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é contado, ouvintes individuais recebem uma mensagem que não provém, na verdade, de lugar algum; por essa razão se lhe atribui uma origem sobrenatural. É, pois, compreensível que a unidade do mito seja projetada num foco virtual: para além da percepção consciente do ouvinte, que ele apenas atravessa, até um ponto onde a energia que irradia será consumida pelo trabalho de reorganização inconsciente, previamente desencadeado por ele. A música coloca um problema muito mais difícil, já que ignoramos completamente as condições mentais da criação musical. Em outras palavras, não sabemos qual é a diferença entre esses espíritos raros que secretam música e aqueles, incontáveis, em que o fenômeno não ocorre, embora se mostrem geralmente sensíveis a ele. A diferença é, no entanto, tão marcada, manifesta-se tão precocemente, que supomos apenas que implica propriedades de uma natureza particular, situadas certamente num nível muito profundo. Mas o fato de a música ser uma linguagem — por meio da qual são elaboradas mensagens das quais pelo menos algumas são compreendidas pela imensa maioria, ao passo que apenas uma ínfima minoria é capaz de emiti-las, e de, entre todas as linguagens, ser esta a única que reúne as características contraditórias de ser ao mesmo tempo inteligível e intraduzível — faz do criador de música um ser igual aos deuses, e da própria música, o supremo mistério das ciências do homem, contra o qual elas esbarram, e que guarda a chave de seu progresso.

Com efeito, seria errôneo invocar a poesia pretendendo que ela levanta um problema da mesma ordem. Nem todo mundo é poeta, mas a poesia utiliza como veículo um bem comum, que é a linguagem articulada. Ela se contenta em estabelecer para o seu emprego regras específicas. A música, ao contrário, se vale de um veículo que lhe é próprio e que, fora dela, não é suscetível de nenhum uso geral. De direito, senão de fato, qualquer pessoa razoavelmente educada poderia escrever poemas, bons ou maus; ao passo que a invenção musical supõe aptidões especiais, que não se pode fazer florescer a não ser que sejam dadas.

 

* * *

Os fanáticos por pintura certamente protestarão contra o lugar privilegiado que damos à música, ou pelo menos reivindicarão o mesmo tratamento para as artes gráficas e plásticas. Parece-nos contudo que, de um ponto de vista formal, os materiais utilizados, respectivamente sons e cores, não se situam no mesmo plano. Para justificar a diferença, diz-se às vezes que a música não é normalmente imitativa, ou melhor, que não imita nada a não ser ela mesma, ao passo que, diante de um quadro, a primeira pergunta que vem à mente do espectador é o que ele representa. Mas, se colocarmos o problema desse modo em nossos dias, esbarraremos no caso da pintura não-figurativa. Para apoiar sua empresa, o pintor abstrato não pode invocar o precedente da música, e reivindicar seu direito de organizar as formas e as cores, senão de modo totalmente livre, ao menos seguindo as regras de um código independente da experiência sensível, como faz a música com os sons e os ritmos?

Propondo essa analogia, seriamos vítimas de uma grave ilusão. Pois, se existem “naturalmente” cores na natureza, não há, a não ser de modo fortuito e passageiro, sons musicais, mas apenas ruídos.[3] Os sons e as cores não são, portanto, entidades do mesmo nível, e a comparação só pode ser legitimamente feita entre as cores e os ruídos, isto é, entre os modos visuais e acústicos, ambos da ordem da natureza. Ora, ocorre que justamente em relação a ambos o homem mantém a mesma atitude, não lhes permitindo livrar-se de um suporte. Conhecemos certamente ruídos confusos, assim como cores difusas, mas, logo que seja possível discerni-los e dar-lhes uma forma, surgirá imediatamente a preocupação de identificá-los, ligando-os a uma causa. Tais manchas, diremos, são um monte de flores praticamente escondidas pela vegetação, ao passo que aqueles estalos devem provir de um passo furtivo ou de galhos fustigados pelo vento...

Não existe, portanto, verdadeira paridade entre pintura e música. Uma encontra na natureza a sua matéria: as cores são dadas antes de serem utilizadas e o vocabulário atesta seu caráter derivado até na designação das nuanças mais sutis: azul-marinho, azul-pavão ou azul-petróleo; verde-água, verde- esmeralda; amarelo-palha, amarelo-ovo; vermelho-cereja etc. Ou seja, só há cores na pintura porque já existem seres e objetos coloridos, e é apenas por abstração que as cores podem ser descoladas desses substratos naturais e tratadas como termos de um sistema separado.

Objetar-se-á que, se isso vale para as cores, não se aplica às formas. As geométricas, e todas as outras que delas derivam, se apresentam ao artista já criadas pela cultura; como os sons musicais, elas não provêm da experiência. Mas, se uma arte se limitasse a explorar essas formas, adquiriria, inevitavelmente, um caráter decorativo. Sem jamais conquistar uma existência própria, ficaria exaurida, a menos que, ao enfeitá-los, não se agarrasse aos objetos para tirar deles a sua substância. Tudo se passa, portanto, como se a pintura não tivesse outra escolha senão significar os seres e as coisas incorporando- os a seus intentos, ou participar da significação dos seres e das coisas incorporando-se a eles.

Parece-nos que essa servidão congênita das artes plásticas em relação aos objetos se deve ao fato de a organização das formas e das cores no seio da experiência sensível (que, nem é preciso dizê-lo, já é uma função da atividade inconsciente do espírito) desempenhar, para essas artes, o papel de primeiro nível de articulação do real. Graças unicamente a ele, elas têm a possibilidade de introduzir uma segunda articulação, que consiste na escolha e disposição das unidades e em sua interpretação em conformidade com os imperativos de uma técnica, de um estilo e de uma maneira: isto é, transpondo-as segundo as regras de um código, características de um artista ou de uma sociedade. Se a pintura merece ser chamada de linguagem, isso acontece na medida em que, como toda linguagem, ela consiste num código especial cujos termos são gerados por combinação de unidades menos numerosas e elas mesmas pertencentes a um código mais geral. Existe, no entanto, uma diferença em relação à linguagem articulada, de onde decorre que as mensagens da pintura são recebidas em primeiro lugar pela percepção estética e depois pela percepção intelectual, quando ocorre o oposto no outro caso. Quando se trata da linguagem articulada, a entrada em operação do segundo código oblitera a originalidade do primeiro. Daí o “caráter arbitrário” reconhecido aos signos lingüísticos. Os lingüistas sublinham esse aspecto das coisas quando dizem que “(os) morfemas, elementos de significação, se resolvem por sua vez em fonemas, elementos de articulação desprovidos de significação” (Benveniste 1952: 7). Conseqüentemente, na linguagem articulada, o primeiro código não significante é, para o segundo código, meio e condição de significação: de modo que a própria significação fica confinada num plano. A dualidade se restabelece na poesia, que retoma o valor significante virtual do primeiro código, para integrá-lo no segundo. Com efeito, a poesia opera ao mesmo tempo sobre a significação intelectual das palavras e das construções sintáticas e sobre propriedades estéticas, termos em potencial de um outro sistema que reforça, modifica ou contradiz essa significação. Isso ocorre também na pintura, onde as oposições de formas e de cores são recebidas como traços distintivos pertencentes simultaneamente a dois sistemas: o das significações intelectuais, herdado da experiência comum, resultante do recorte e da organização da experiência sensível em objetos; e o dos valores plásticos, que só se torna significativo se modular o outro, integrando-se nele. Dois mecanismos articulados se engrenam, e carregam um terceiro, no qual se organizam suas propriedades.

Compreende-se então por que a pintura abstrata, e, em termos mais gerais, todas as escolas que se proclamam “não figurativas” perdem o poder de significar: elas renunciam ao primeiro nível da articulação e pretendem contentar-se com o segundo para subsistir. Particularmente instrutivo nesse sentido é o paralelo que se quis estabelecer entre uma tentativa contemporânea e a arte caligráfica chinesa. Mas, no primeiro caso, as formas a que o artista recorre não existem anteriormente num outro plano, onde gozariam de uma organização sistemática. Nada permite, portanto, identificá-las como formas elementares: trata-se, antes, de criaturas do capricho, graças às quais alguém se dedica a uma paródia de combinatória com unidades que não o são. A arte caligráfica, ao contrário, repousa inteiramente no fato de que as unidades que escolhe, situa e traduz pelas convenções de um grafismo, de uma sensibilidade, de um movimento e de um estilo, têm uma existência própria na qualidade de signos, destinados por um sistema de escritura a desempenhar outras funções. Somente nessas condições a obra pictórica é linguagem, pois resulta do ajustamento contrapontístico de dois níveis de articulação.

Vê-se, assim, por que a comparação entre a pintura e a música só seria a rigor aceitável se fosse limitada à arte caligráfica. Como esta — mas porque ela é, de certo modo, uma pintura de segundo grau —, a música remete ao primeiro nível de articulação criado pela cultura: para uma, o sistema de ideogramas, para a outra, o dos sons musicais. Mas, pelo simples fato de ser instaurada, essa ordem explicita propriedades naturais: assim, os símbolos gráficos, e principalmente os da escrita chinesa, manifestam propriedades estéticas independentes das significações intelectuais que estão encarregados de veicular e que a caligrafia, justamente, se propõe a explorar.

O ponto é capital, porque o pensamento musical contemporâneo rejeita de modo formal ou tácito a hipótese de um fundamento natural que justifique objetivamente o sistema das relações estipuladas entre as notas da escala. Estas seriam definidas exclusivamente — segundo a fórmula significativa de Schönberg — pelo “conjunto das relações que os sons têm entre si”. Contudo, os ensinamentos da lingüística estrutural deveriam permitir superar a falsa antinomia entre o objetivismo de Rameau e o convencionalismo dos modernos. Em conseqüência do recorte operado por cada tipo de escala no contínuo sonoro aparecem relações hierárquicas entre os sons. Essas relações não são ditadas pela natureza, já que as propriedades físicas de uma escala musical qualquer excedem consideravelmente, pelo número e pela complexidade, as que cada sistema seleciona para constituir seus traços pertinentes. De qualquer modo, como qualquer sistema fonológico, todo sistema modal ou tonal (ou até politonal e atonal) se baseia em propriedades fisiológicas e físicas, retém algumas entre todas as que estão disponíveis em número provavelmente ilimitado e explora as oposições e as combinações às quais elas se prestam para elaborar um código que serve para discriminar significações. Conclui-se, pois, que a música, assim como a pintura, supõe uma organização natural da experiência sensível, o que não quer dizer que ela lhe seja submissa.

Mas não se deve esquecer que a pintura e a música mantêm relações invertidas com essa natureza que lhes fala. A natureza oferece espontaneamente ao homem todos os modelos das cores, e às vezes até mesmo sua matéria em estado puro. Basta-lhe, para começar a pintar, reempregá-la. Mas, como sublinhamos, a natureza produz ruídos, e não sons musicais, que são monopólio da cultura enquanto criadora dos instrumentos e do canto. Essa diferença se reflete na linguagem: não descrevemos do mesmo modo as nuanças das cores e as dos sons. Para as primeiras, quase sempre recorremos a metonímias implícitas, como se um determinado amarelo fosse inseparável da percepção visual da palha ou da gema de ovo, um determinado negro, do carvão que lhe deu origem, um marrom, da terra amassada. O mundo das sonoridades, por sua vez, abre-se para as metáforas. Prova disso são “o longo pranto dos violinos — do outono”, “a clarineta é a mulher amada”etc. Sem dúvida, a cultura descobre, às vezes, cores que não lhe parecem emprestadas à natureza. Seria mais correto dizer que ela as redescobre, sendo a natureza, nesse particular, de uma riqueza verdadeiramente inesgotável. Mas, afora o caso já discutido do canto dos pássaros, os sons musicais não existiriam para o homem se ele não os tivesse inventado.

Portanto, é apenas a posteriori e, digamos, de modo retroativo, que a música reconhece aosriedades físicas e seleciona algumas delas para fundar suas estruturas hierárquicas. Dirão que esse procedimento não a distingue da pintura, que igualmente a posteriori reparou que existe uma física das cores, a que ela recorre mais ou menos abertamente? Mas, ao fazê-lo, a pintura organiza intelectualmente, por meio da cultura, uma natureza que já estava diante dela como organização sensível. A música percorre um trajeto exatamente inverso, pois é a cultura que já estava diante dela, mas sob forma sensível, antes que, por meio da natureza, ela o organizasse intelectualmente. O conjunto sobre o qual ela opera é de ordem cultural, o que explica o fato de a música nascer inteiramente livre dos laços representativos, que mantêm a pintura na dependência do mundo sensível e de sua organização em objetos.

Ora, nessa estrutura hierarquizada da escala, a música encontra o seu primeiro nível de articulação. Há, portanto, um paralelis0mo impressionante entre as ambições da música dita, por antífrase, concreta, e as da pintura mais corretamente chamada abstrata. Repudiando os sons musicais e recorrendo exclusivamente aos ruídos, a música concreta se coloca numa situação comparável, do ponto de vista formal, à de qualquer pintura: limita-se ao tête-à-tête com os dados naturais. E, como a pintura abstrata, trata antes de mais nada de desintegrar o sistema de significações atuais ou virtuais em que esses dados figuram na condição de elementos. Antes de utilizar os ruídos que coleciona, a música concreta se esforça por torná-los irreconhecíveis, para que o ouvinte não possa ceder à tendência natural de ligá-los a ícones: pratos quebrados, apito de locomotiva, acesso de tosse, galhos rompidos. Abole assim um primeiro nível de articulação que, nesse caso, teria um rendimento bastante pobre, já que o homem percebe e diferencia mal os ruídos, talvez devido à solicitação imperiosa que uma categoria privilegiada de ruídos —a linguagem articulada — exerce sobre ele.

O caso da música concreta encerra, portanto, um curioso paradoxo. Se ela conservasse o valor representativo dos ruídos, disporia de uma primeira articulação que lhe permitiria instaurar um sistema de signos através da intervenção de uma segunda. Mas, com esse sistema, não se diria quase nada. Para se certificar disso, basta imaginar o tipo de histórias que se poderiam contar com ruídos, mantendo-se suficientemente convicto de que seriam ao mesmo tempo compreendidas e emocionantes. Daí a solução adotada de desnaturar os ruídos para fazer deles pseudo-sons, mas entre os quais é impossível definir relações simples, formando um sistema significativo já num outro plano, e capazes de formar a base de uma segunda articulação. Por mais que a música concreta se embriague com a ilusão de falar, ela apenas chafurda em torno do sentido.

Por isso nem pensamos em cometer o erro imperdoável que seria confundir o caso da música serial com o que acabamos de invocar. Adotando decididamente o partido dos sons, a música serial, senhora de uma gramática e de uma sintaxe refinadas, situa-se — nem é preciso dizer — no campo da música, que ela talvez até tenha ajudado a salvar. Mas, embora seus problemas sejam de outra natureza e se situem num outro plano, apresentam certas analogias com os que discutimos nos parágrafos precedentes.

Levando até o fim a erosão das particularidades individuais dos tons, que começa com a adoção da escala temperada, o pensamento serial parece só tolerar entre eles um grau muito baixo de organização. Tudo se passa como se para ele a questão fosse encontrar o grau mais baixo de organização compatível com a manutenção de uma escala de sons musicais legada pela tradição ou, mais precisamente, destruir uma organização simples, parcialmente imposta de fora (já que resulta de uma escolha entre possíveis preexistentes), para deixar o campo livre para um código muito mais flexível e complexo, mas promulgado: “O pensamento do compositor, utilizando uma metodologia determinada, cria os objetos de que necessita e a forma necessária para organizá-los, cada vez que deve se exprimir. O pensamento tonal clássico se funda num universo definido pela gravitação e a atração, o pensamento serial, num universo em permanente expansão” (Boulez 1958: 61). Na música serial, diz o mesmo autor, “não há mais escala preconcebida, ou formas preconcebidas, isto é, estruturas gerais nas quais se insere um pensamento particular”. Notemos que aqui o termo “preconcebido” encobre um equívoco. Se as estruturas e as formas imaginadas pelos teóricos se mostraram, na maior parte das vezes, artificiais e até errôneas, isso não significa que não exista nenhuma estrutura geral que uma melhor análise da música, levando em consideração todas as suas manifestações no tempo e no espaço, conseguiria um dia extrair. Onde estaria a lingüística, se a crítica das gramáticas constituintes de uma língua, propostas por filólogos em épocas diferentes, a tivesse levado a crer que essa língua era desprovida de gramática constituída? Ou se as diferenças de estruturas gramaticais que as diversas línguas apresentam entre si a tivessem feito desistir de continuar uma busca difícil, mas essencial, de uma gramática geral? Devemos nos perguntar, principalmente, o que é feito, em tal concepção, do primeiro nível de articulação indispensável à linguagem musical, assim como a todas as linguagens, e que consiste, justamente, em estruturas gerais que, por serem comuns, permitem a codificação e a decodificação de mensagens específicas. Por maior que seja o abismo de incompreensão que separa a música concreta e a música serial, a questão é saber se, investindo uma contra a matéria e a outra contra a forma, elas não estariam cedendo à utopia do século, que é construir um sistema de signos num único nível de articulação.

Os adeptos da doutrina serial certamente responderão que renunciam ao primeiro nível para substituí-lo pelo segundo, mas compensam essa perda graças à invenção de um terceiro nível, ao qual confiam o papel anteriormente desempenhado pelo segundo. De qualquer modo, seriam dois níveis. Após a era da monodia e a da polifonia, a música serial marcaria o surgimento de uma “polifonia de polifonias”; integraria uma leitura inicialmente horizontal, em seguida vertical, sob a forma de uma leitura “oblíqua”. Apesar de sua coerência lógica, esse argumento deixa escapar o essencial: é fato que, para toda linguagem, a primeira articulação não é móvel, exceto dentro de limites estreitos. Ela não é, sobretudo, permutável. Com efeito, as funções respectivas das duas articulações não podem definir-se abstratamente e uma em relação à outra. Os elementos promovidos a uma função significante de uma nova ordem pela segunda articulação devem chegar a ela munidos das propriedades exigidas, isto é, já marcados pela e para a significação. Isso só é possível porque esses elementos não apenas são tirados da natureza, mas estão organizados em sistema desde o primeiro nível de articulação: hipótese viciosa, a menos que se admita que esse sistema leva em conta certas propriedades de um sistema natural, que, para seres iguais quanto à natureza, institui as condições a priori da comunicação. Em outras palavras, o primeiro nível consiste em relações reais, mas inconscientes, que devem a esses dois atributos o fato de poderem funcionar sem serem conhecidos ou corretamente interpretados.

Ora, no caso da música serial, esse ancoramento natural é precário, senão ausente. Apenas ideologicamente pode o sistema ser comparado a uma linguagem. Pois, ao contrário da linguagem articulada, que é inseparável de seu fundamento fisiológico e até físico, ela navega à deriva depois de ter rompido suas próprias amarras. Navio sem velame cujo capitão, cansado de vê-lo servir de pontão, teria lançado ao alto-mar intimamente convicto de que, submetendo a vida a bordo às regras de um minucioso protocolo, conseguiria distrair a tripulação da nostalgia de um porto de arrimo e da preocupação com um destino...

Não contestaremos, aliás, que essa escolha possa ter sido ditada pela miséria dos tempos. Talvez até a aventura a que se lançaram a pintura e a música termine em novas margens, preferíveis àquelas que as acolheram durante tantos séculos e que se estavam exaurindo. Mas, se isso acontecer, será à revelia dos navegadores e contra a sua vontade, pois, ao menos no caso da música serial, vimos que esse tipo de eventualidade é violentamente repelido. Não se trata de navegar para outras terras, ainda que sua localização fosse desconhecida e sua existência, hipotética. A mudança proposta é muito mais radical: apenas a viagem é real, a terra, não, e as rotas são substituídas pelas regras de navegação.

Seja como for, é sobre um outro ponto que queremos insistir. Mesmo quando parecem navegar em conjunto, a disparidade entre a música e a pintura continua evidente. Sem se dar conta disso, a pintura abstrata desempenha cada dia mais, na vida social, o papel que cabia antigamente à pintura decorativa. Ela se divorcia, portanto, da linguagem concebida como sistema de significações, enquanto a música serial cola no discurso: perpetuando e exagerando a tradição do Lied, isto é, de um gênero em que a música, esquecendo de que fala uma língua irredutível e soberana, se faz serva das palavras. Essa dependência em relação a uma palavra outra não revelaria a incerteza reinante de que, na ausência de um código eqüitativamente repartido, mensagens complexas serão bem recebidas pelos destinatários aos quais, de qualquer modo, elas devem se dirigir? Uma linguagem cujas articulações foram quebradas tende inevitavelmente a se dissociar, e suas peças, antes meios de articulação recíproca da natureza e da cultura, a cair para um dos dois lados. O ouvinte constata-o a seu modo, já que o uso que o compositor faz de uma sintaxe extraordinariamente sutil (que permite combinações tanto mais numerosas na medida em que os tipos de engendramento aplicados aos doze semitons dispõem de um espaço de quatro dimensões, definido pela altura, duração, intensidade e timbre para inscrever seus meandros) ressoa para ele, ora no plano da natureza, ora no da cultura, mas raramente nos dois conjuntamente. Ou porque das partes instrumentais só lhe vem o sabor dos timbres, que age como estimulante natural da sensualidade, ou porque, cortando as asas de qualquer veleidade da melodia, o recurso aos grandes intervalos dá à parte vocal os ares, certamente falsos, de um reforço expressivo da linguagem articulada.

À luz das considerações acima, a referência a um universo em expansão, que encontramos mencionado por um dos pensadores mais eminentes da escola serial, adquire uma importância especial. Pois mostra que essa escola decidiu jogar seu destino, e o da música, numa aposta. Ou ela conseguirá superar a tradicional distância que separa o ouvinte do compositor, e — tirando do primeiro a possibilidade de se remeter inconscientemente a um sistema geral — obrigá-lo-á, assim, a reproduzir por conta própria, para compreender a música, o ato individual da criação. Pela força de uma lógica interna e sempre nova, cada obra arrancará, portanto, o ouvinte de sua passividade, torná-lo-á solidário de seu impulso, de modo que a diferença não será mais de natureza, mas de grau, entre inventar a música e escutá-la. Ou acontecerá outra coisa. Pois nada, infelizmente, garante que os corpos de um universo em expansão sejam todos animados da mesma velocidade, nem que se desloquem na mesma direção. A analogia astronômica que se invoca sugere aliás o inverso. A música serial poderia pertencer a um universo no qual a música, em vez de trazer o ouvinte para a sua trajetória, se afastasse dele. Por mais que ele se esforçasse em alcançá-la, ela pareceria cada dia mais longínqua e inatingível. Até ficar longe demais para comovê-lo, e apenas a idéia dela ainda seria acessível, antes de finalmente perder-se na abóbada noturna do silêncio, sendo reconhecida pelos homens apenas por breves e fugidias cintilações.

O leitor pode ficar desconcertado com essa discussão acerca da música serial, que parece deslocada no início de uma obra consagrada aos mitos dos índios sul-americanos. Sua justificativa vem do projeto que concebemos, de tratar as seqüências de cada mito, e os próprios mitos em suas relações recíprocas, como as partes instrumentais de uma obra musical, e de assemelhar seu estudo ao de uma sinfonia. O procedimento só é legítimo com a condição de que surja um isomorfismo entre o sistema dos mitos, que é de ordem lingüística, e o da música, que vemos como uma linguagem, já que o compreendemos, mas cuja originalidade absoluta, que o distingue da linguagem articulada, deve-se ao fato de ser intraduzível. Baudelaire notou com razão que, apesar de cada ouvinte sentir uma obra de um modo que lhe é próprio, “a música sugere idéias análogas em cérebros diferentes” (1861: 1213). Em outras palavras, o que a música e a mitologia acionam naqueles que as escutam são estruturas mentais comuns. O ponto de vista que adotamos implica, conseqüentemente, o recurso a essas estruturas gerais repudiadas pela doutrina serial, cuja própria realidade ela contesta. Por outro lado, essas estruturas só podem ser chamadas de gerais se lhes for reconhecido um fundamento objetivo para aquém da consciência e do pensamento, ao passo que a música serial se quer obra consciente do espírito e afirmação de sua liberdade. Problemas de ordem filosófica se insinuam no debate. O vigor de suas ambições teóricas, sua metodologia rígida e suas brilhantes realizações técnicas qualificam a escola serial, muito mais do que as das pinturas não figurativas, para ilustrar uma corrente do pensamento contemporâneo que cumpre distinguir do estruturalismo, principalmente na medida em que apresenta certas semelhanças em relação a ele: abordagem decididamente intelectual, preponderância concedida aos arranjos sistemáticos, desconfiança para com as soluções mecanicistas e empiricistas. Contudo, por seus pressupostos teóricos, a escola serial se situa nos antípodas do estruturalismo, ocupando diante dele um lugar comparável ao mantido antigamente pela libertinagem filosófica em relação à religião. Com uma diferença, no entanto: hoje é o pensamento estrutural que defende a bandeira do materialismo.

Conseqüentemente, longe de ser uma digressão, nosso diálogo com o pensamento serial retoma e desenvolve temas já abordados na primeira parte desta introdução. Acabamos assim de mostrar que, se o público em geral tende a confundir estruturalismo, idealismo e formalismo, basta que o estruturalismo encontre em seu caminho um idealismo e um formalismo verdadeiros para que sua própria inspiração, determinista e realista, fique totalmente evidente.

Com efeito, o que afirmamos em relação a qualquer linguagem parece ainda mais certo quando se trata da música. Se, dentre todas as obras humanas, foi ela que nos pareceu mais adequada para instruir-nos sobre a essência da mitologia, a razão disso é a perfeição de que ela goza. Entre dois tipos de sistemas de signos diametralmente opostos — de um lado, o sistema musical, do outro, a linguagem articulada —, a mitologia ocupa uma posição mediana; convém encará-la sob as duas perspectivas para compreendê-la. Contudo, quando se escolhe, como fizemos neste livro, olhar do mito em direção à música, e não em direção à linguagem, como tentamos fazer em obras anteriores (Lévi-Strauss 1958a, 1958b, 1962a, 1962b), o lugar privilegiado que cabe à música aparece com mais evidência. Ao abordar a comparação, invocamos a propriedade, comum ao mito e à obra musical, de operar pelo ajustamento de duas grades, uma externa e outra interna. No caso da música, porém, essas grades, que nunca são simples, se complicam a ponto de se desdobrarem. A grade externa, ou cultural, formada pelas escalas de intervalos e pelas relações hierárquicas entre as notas, remete a uma descontinuidade virtual, a dos sons musicais, que já são em si objetos integralmente culturais, pelo fato de se oporem aos ruídos, os únicos dados sub specie naturae. Simetricamente, a grade interna, ou natural, de ordem cerebral, é reforçada por uma segunda grade interna, que é por assim dizer, ainda mais completamente natural, a dos ritmos viscerais. Na música, conseqüentemente, a mediação da natureza e da cultura, que se realiza no seio de toda linguagem, torna-se uma hipermediação: de ambos os lados, os ancoramentos são reforçados. Instalada no ponto de encontro entre dois domínios, a música faz com que sua lei seja respeitada muito além dos limites que as outras artes evitariam ultrapassar. Tanto do lado da natureza quanto do da cultura, ela ousa ir mais longe do que as outras. Assim se explica o princípio (quando não a gênese e a operação, que continuam sendo, como dissemos, o grande mistério das ciências do homem) do poder extraordinário que possui a música de agir simultaneamente sobre o espírito e sobre os sentidos, de mover ao mesmo tempo as idéias e as emoções, de fundi-las numa corrente em que elas deixam de existir lado a lado, a não ser como testemunhas e como respondentes.

A mitologia, certamente, apresenta apenas uma fraca imitação dessa veemência. Contudo, sua linguagem é a que apresenta o maior número de traços em comum com a da música, não somente porque, do ponto de vista formal, seu alto grau de organização interna cria entre ambas um parentesco, mas também por razões mais profundas. A música expõe ao indivíduo seu enraizamento fisiológico, a mitologia faz o mesmo com o seu enraizamento social. Uma nos pega pelas entranhas, a outra, digamos assim, “pelo grupo”. E, para fazer isso, utilizam máquinas culturais extremamente sutis, os instrumentos musicais e os esquemas míticos. No caso da música, o desdobramento dos meios na forma dos instrumentos e do canto reproduz, pela sua união, a da natureza e da cultura, pois sabe-se que o canto se diferencia da língua falada pelo fato de exigir a participação de todo o corpo, mas rigorosamente disciplinado pelas regras de um estilo vocal. De modo que, aqui também, a música afirma suas pretensões do modo mais completo, sistemático e coerente. Mas, além do fato de os mitos serem freqüentemente cantados, sua recitação é geralmente acompanhada de uma disciplina corporal: proibição de bocejar ou de ficar sentado etc.

Ao longo deste livro (primeira parte, i, d) demonstraremos que existe um isomorfismo entre a oposição da natureza e da cultura e a da quantidade contínua e da quantidade discreta. Para apoiar nossa tese, podemos, pois, utilizar como argumento o fato de que numerosas sociedades, passadas e presentes, concebem a relação entre a língua falada e o canto de acordo com o modelo da relação existente entre contínuo e descontínuo. O que equivale a dizer que, no seio da cultura, o canto se distingue da língua falada como a cultura se distingue da natureza; cantado ou não, o discurso sagrado do mito se opõe do mesmo modo ao discurso profano. Além disso, o canto e os instrumentos musicais são freqüentemente comparados a máscaras: equivalentes, no plano acústico, do que as máscaras são no plano plástico (que, por essa razão, lhes são moral e fisicamente associados, especialmente na América do Sul). Também por esse viés, a música e a mitologia, ilustrada pelas máscaras, são simbolicamente aproximadas.

Todas essas comparações resultam da vizinhança da música e da mitologia sobre um mesmo eixo. Mas, como nesse eixo a música se situa no oposto da linguagem articulada, segue-se que a música, linguagem completa e irredutível à outra, deve ser capaz, por conta própria, de cumprir as mesmas funções. Vista de modo global, e em sua relação com os outros sistemas de signos, a música se aproxima da mitologia. Mas, na medida em que a função mítica é, ela mesma, um aspecto do discurso, deve ser possível descobrir no discurso musical uma função especial que apresente uma afinidade especial com o mito, e que virá, digamos, inscrever-se como expoente da afinidade geral, já constatada entre o gênero mítico e o gênero musical quando considerados como um todo.

Vê-se imediatamente que existe uma correspondência entre a música e a linguagem do ponto de vista da variedade de funções. Em ambos os casos, impõe-se uma primeira distinção, dependendo de se a função concerne principalmente ao emissor ou ao destinatário. O termo “função fática”, introduzido por Malinowski, não é rigorosamente aplicável à música. Contudo, é evidente que quase toda a música popular — canto coral, canto que acompanha a dança etc. — e uma parte considerável da música de câmara servem primeiramente ao prazer dos executantes (dito de outro modo, dos destinadores). Trata-se, de certo modo, de uma função fática subjetivada. Quando amadores “formam um quarteto”, não estão preocupados em saber se terão um auditório; é provável que prefiram não tê-lo. Portanto, mesmo nesse caso, a função fática vem acompanhada de uma função conativa, já que a execução em grupo suscita uma harmonia gestual e expressiva, que é um dos objetivos almejados. Essa função conativa torna-se mais importante do que a outra quando se considera a música militar e a música para dançar, cujo principal objetivo é comandar a gesticulação de outrem. Em música, ainda mais do que em lingüística, função fática e função conativa são inseparáveis. Situam-se do mesmo lado numa oposição cujo outro pólo reservaremos para a função cognitiva. Esta predomina na música de teatro ou de concerto, que visa antes de mais nada — mas, ainda assim, não exclusivamente — transmitir mensagens carregadas de informação a um auditório que cumpre a função de destinatário.

A função cognitiva, por sua vez, se analisa em diversas formas, cada uma correspondente a um gênero particular de mensagem. Essas formas são aproximadamente as mesmas que o lingüista distingue pelo nome de função metalinguística, função referencial e função poética (Jakobson 1963: cap. xi, 220). Só podemos superar a aparente contradição de nossas preferências por compositores muito diferentes se reconhecermos que há várias espécies de música. Tudo se esclarece a partir do momento em que compreendemos que seria inútil tentar classificá-los por ordem de preferência (por exemplo, procurando saber se são relativamente “maiores” ou “menores”); na verdade, eles pertencem a categorias diferentes de acordo com a natureza da informação de que são portadores. Nesse sentido, poderíamos dividir os compositores, grosso modo, em três grupos, entre os quais há todo tipo de passagens e todas as combinações. Bach e Stravinski apareceriam como músicos “do código”, Beethoven, e também Ravel, como músicos “da mensagem”, Wagner e Debussy como músicos “do mito”. Os primeiros explicitam e comentam em suas mensagens as regras de um discurso musical; os segundos contam; e os últimos codificam suas mensagens a partir de elementos que já pertencem à ordem do relato. É claro que nenhuma das peças desses compositores cabe totalmente em qualquer uma dessas fórmulas, que não pretendem definir a obra como um todo, mas sublinhar a importância relativa dada a cada função. Foi igualmente com a intenção de simplificar que nos limitamos a citar três pares, cada um deles com um antigo e um moderno.[4] Porém, mesmo na música dodecafônica, a distinção é esclarecedora, já que permite situar, em suas relações respectivas, Webern do lado do código, Schönberg do lado da mensagem e Berg do lado do mito.

A função emotiva também existe na música, pois, para isolá-la como fator constituinte, o jargão profissional dispõe de uma palavra emprestada do alemão: “Schmalz”. Fica claro, entretanto, que, pelas razões já indicadas, torna-se ainda mais difícil isolar seu papel do que no caso da linguagem articulada, já que vimos que de direito, senão sempre de fato, função emotiva e linguagem musical são coextensivas.

 

 


[1] Proclamando essa paternidade, estaríamos agindo de modo ingrato se não confessássemos outras dívidas. Primeiramente, para com a obra de Marcel Granet, semeada de intuições geniais; e, em seguida — last but not least —, para com a de Georges Dumézil; e o Asklèpios, Apollon Smintheus et Rudra, de Henri Grégoire, in Mémoires de l’ Académie Royale de Belgique, Classe des Lettres..., t. XLV, fasc. I, 1949.

[2] Versos do poema Hommage, de Mallarmé, dedicado a Wagner. [n.t.]

[3] Se excetuarmos, porque inverossímil, o sibilar do vento nos juncos do Nilo, invocado por Deodoro, restará na natureza apenas o canto dos pássaros, caro a Lucrécio — liquidas avium voces —, para servir de modelo à música. Embora os ornitólogos e os peritos em acústica concordem em reconhecer às emissões vocais dos pássaros o caráter de sons musicais, a hipótese, gratuita e inverificável, de uma relação genética entre o gorjeio e a música nem merece ser discutida. O homem não é o único produtor de sons musicais, ele compartilha esse privilégio com os pássaros, mas essa constatação não afeta a nossa tese, já que, à diferença da cor, que é um modo da matéria, a tonalidade musical — tanto entre os pássaros quanto entre os homens — é um modo da sociedade. O pretenso “canto” dos pássaros situa-se no limiar da linguagem; serve à expressão e à comunicação. Os sons musicais continuam, portanto, do lado da cultura. É a linha de demarcação entre a natureza e a cultura que já não segue tão exatamente quanto se acreditou no passado o traçado de nenhuma das linhas que servem para distinguir a humanidade da animalidade.

[4] Usando — convém reconhecer — os seis primeiros nomes que nos vieram à mente. Mas certamente não por puro acaso, já que, se os organizarmos cronologicamente, as funções respectivas que evocam se organizam como um círculo fechado, como se em dois séculos a música de inspiração tonal tivesse exaurido sua capacidade interna de renovação. Teríamos, assim, para os “antigos” uma seqüência código => mensagem => mito, para os “modernos” a seqüência inversa, mito => mensagem => código; mas contanto que se aceite atribuir um valor significativo aos breves espaços de tempo que separam as datas de nascimento de Debussy (1862), Ravel (1875) e Stravinsky (1882).

 

 

  

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