
As belas-artes reduzidas a um mesmo princípio. Trad. do francês N. Maruyama. Trad. trechos em latim: A. Ribeiro. Rev. Técnica: V. Knoll. São Paulo, Humanitas, 2009.
(Excertos)
Prólogo
Há quem reclame todos os dias do grande número de regras: elas embaraçam tanto o autor que quer compor quanto o amante que quer julgar. Não tenho de modo algum a intenção de aumentar-lhes aqui o número. Meu desígnio é inteiramente diferente: quero tornar o fardo mais leve e o caminho mais simples. As regras multiplicaram-se pelas observações feitas sobre as obras; elas devem ser simplificadas, remetendo essas mesmas observações princípios comuns. Imitemos os verdadeiros físicos, que recolhem experiências e fundam em seguida sobre elas mesmas um sistema que as reduz a um princípio. (...)
Todas as regras são ramos que partem de um mesmo tronco. Se remontássemos à sua fonte, encontraríamos um princípio bastante simples para ser apreendido prontamente e bastante amplo para absorver todas essas pequenas regras de detalhe que conhecemos suficientemente pelo sentimento e cuja teoria não faz senão incomodar o espírito sem esclarecê-lo. Esse princípio fixaria de uma só vez os verdadeiros gênios, e os libertaria de mil escrúpulos vãos para submetê-los apenas a uma única lei soberana que, bem compreendida, seria a base, o compêndio e a explicação de todas as outras.(...)
Após tantas buscas inúteis e não ousando entrar sozinho em uma matéria que, vista de perto, parecia tão obscura, atrevia-me a abrir Aristóteles, do qual eu havia escutado exaltarem a Poética. Eu acreditava que ele tinha sido consultado e copiado por todos os mestres da arte, mas vários nem mesmo o haviam lido, e quase ninguém tinha tirado algo dele, com exceção de alguns comentadores que, tendo constituído em doutrina somente o que era necessário para esclarecer mais ou menos o texto, só me deram começos de idéias; e essas idéias eram tão sombrias, tão encobertas, tão obscuras que eu quase me desesperava de encontrar em algum lugar a resposta precisa àquela questão que eu me propusera, e cuja solução me parecera inicialmente tão fácil de resolver.
Entretanto, o princípio da imitação, que o filósofo grego estabelece para as belas-artes, me atingira. Eu havia sentido sua justeza para a pintura, que é uma poesia muda. Aproximava-o das idéias de Horácio, de Boileau e de alguns outros grandes mestres. Acrescentei-lhe vários traços extraídos de outros autores sobre essa matéria. A máxima de Horácio se achou verificada pelo exame: ut pictura poësis [como a pintura assim a poesia]. Constatou-se que a poesia era em tudo uma imitação, assim como a pintura. Eu ia mais longe: tentava aplicar o mesmo princípio à música e à arte do gesto, e espantou-me a justeza com a qual ele lhes convinha. Foi isso que produziu esta pequena obra, onde se pressente que a poesia deve ocupar a posição principal, tanto por causa de sua dignidade, quanto por ter sido sua ocasião.
Ela está dividia em três partes. Na primeira parte, examina-se qual pode ser a natureza das artes, quais são as suas partes e as suas diferenças essenciais, e mostra-se pela qualidade mesma do espírito humano que a imitação da natureza deve ser seu objeto comum, e que elas só diferem entre si pelo meio que empregam para executar essa imitação. Os meios da pintura, da música e da dança são as cores, os sons e os gestos; o da poesia é o discurso. De modo que se vê, de um lado, a ligação íntima e uma espécie de fraternidade que une todas as artes, todas elas rebentos da natureza propondo-se o mesmo fim, regrando-se pelos mesmos princípios e, de outro lado, suas diferenças particulares, o que as separa e as distingue umas das outras. Após ter estabelecido a natureza das artes pelo gênio do homem que as produziu, era natural pensar nas provas que poderiam ser tiradas do sentimento, sobretudo porque o juiz nato de todas as belas-artes é o gosto, e porque a razão mesma não estabelece suas regras senão em relação a ele para lhe agradar. Se ocorresse que o gosto estivesse de acordo com o gênio e concorresse a prescrever as mesmas regras para todas as artes em geral e para cada uma delas em particular, tratar-se-ia de um novo grau de certeza e de evidência acrescentado às primeiras provas. Foi isso que formou a matéria de uma segunda parte, onde se prova que o bom gosto nas artes está absolutamente conforme às idéias estabelecidas na primeira parte, e que as regras do gosto são apenas consequências do princípio de imitação pois, se as artes são essencialmente imitadoras da bela natureza, segue-se que o gosto da bela natureza deve ser essencialmente o bom gosto nas artes. Essa consequência se desenvolve em vários artigos onde se trata de expor o que é gosto, do que ele depende, como ele se corrompe etc. E todos esses artigos sempre se tornaram prova do princípio real da imitação, que abarca tudo. Essas duas partes contém as provas do raciocínio.
Parte I - Onde se estabelece a natureza das artes pela do gênio que as produz
Reina pouca ordem na maneira de tratar as belas-artes. Julguemos pela poesia. Acreditamos dar idéias justas a seu respeito ao dizermos que ela abarca todas as artes, pois dizem que se trata de um composto de pintura, de música e de eloquência. Como a eloquência, ela fala, ela prova, ela narra. Como a música, ela tem uma marcha regrada, tons, cadências, cuja mistura forma um tipo de concerto. Como a pintura, ela desenha os objetos; ela esparge as cores, funda todas as nuanças da natureza; em uma palavra, ela faz uso das cores e do pincel; ela emprega a melodia e os acordes; ela mostra a verdade, e sabe tornÁ-la amada.
A poesia abarca todas as espécies de matéria. Ela se ocupa do que há de mais brilhante na história, ela entra nos campos da filosofia, se arroja aos céus para admirar a marcha dos astros, ela mergulha nos abismos da terra para examinar os segredos da natureza, ela penetra até junto aos mortos para ver as recompensas dos justos e os suplícios dos ímpios – ela compreende todo o universo. Se esse mundo não lhe basta, ela cria mundos novos, que ela embeleza com moradas encantadas e que povoa de mil habitantes diversos. Lá, ela compõe os seres à sua maneira, nada gerando que não seja perfeito, superando todas as produções da natureza. Trata-se de uma espécie de magia: ela provoca ilusão nos olhos, na imaginação, e mesmo no espírito, e consegue até proporcionar aos homens prazeres reais com suas invenções quiméricas. Foi assim que a maior parte dos autores falaram da poesia, e falaram quase o mesmo das outras artes. Plenos do mérito daquelas às quais se entregavam, delas nos deram descrições pomposas em lugar de nos dar tão-somente uma definição precisa, como lhes fora pedido; ou, se tentaram defini-la para nós, como a natureza é em si mesma muito complicada, tornaram às vezes o acidental pelo essencial, e o essencial pelo acidental. Às vezes até mesmo, levados por um certo interesse de autor, aproveitaram-se da obscuridade da matéria, e, nos deram idéias formadas segundo o modelo de suas próprias obras.
Cap. 1 Divisão e origem das artes
Não é necessário começarmos aqui pelo elogio das artes em geral. Seus benefícios anunciam-se o bastante por eles mesmo: todo o universo está repleto deles. Foram elas que construíram as cidades, que reuniram os homens dispersos, que os tornaram polidos, os suavizaram, os tornaram capazes de sociedade. Destinadas, umas a nos servir., outra a nos encantar, algumas a fazer ambos ao mesmo tempo, elas se tornaram de certo mofo para nós uma segunda ordem de elementos, cuja criação a natureza havia reservado para a nossa indústria. Podemos dividi-las em três espécies, em relação aos fins a que elas se propõem.
Algumas têm como objetivo as necessidades do homem, o qual a natureza parece abandonar à própria sorte tão logo tenha nascido: exposto ao frio, à fome, a mil males, ela quis que os remédios e os preservativos que lhes são necessários fossem o preço de sua indústria e de seu trabalho. Então nasceram as artes mecânicas.
Outras têm como objetivo o prazer. Estas só puderam nascer no seio da alegria e dos sentimentos que produzem a abundância e a tranquilidade. Chamam-nas belas-artes por excelência. Tais são a música, a poesia, a pintura, a escultura e a arte do gesto ou a dança.
A terceira espécie contém as artes que têm como objeto a utilidade e o encanto ju8ntos: tais são a eloqüência e a arquitetura. Foi a necessidade que as fez eclodir, e o gosto que as aperfeiçoou. Elas mantêm-se como que entre as outras duas espécies, partilhando com elas o encanto e a utilidade.
As artes da primeira espécie empregam a natureza tal como ela é, unicamente para o uso. As da terceira espécie a empregam polindo-a, para o uso e para o encanto. As belas-artes não a empregam, mas somente a imitam, cada uma à sua maneira. (...)
Falaremos aqui apenas das belas-artes, isto é, daquelas cujo primeiro objeto é agradar. (...)
Primeiramente, que o gênio, que é o pai das artes, deve imitar a natureza. Segundo, que ele não deve imitá-la tal como ela é. Terceiro, que o gosto, para o qual as artes são feitas e que é o juiz delas, dele ser satisfeito quando a natureza é bem escolhida e bem imitada pelas artes. Assim, todas as novas provas devem tender a estabelecer a imitação da bela natureza: 1) pela natureza e pela conduta do gênio que as produz; 2) pela do gosto, que é seu árbitro. Essa é a matéria das duas primeiras partes. Acrescentaremos uma terceira, na qual a aplicação do primeiro princípio às diferentes espécies de arte, à poesia, à pintura, à música e à dança.
Cap. 2 - O gênio apenas pode produzir as artes pela imitação: o que é imitar
O espírito humano som pode criar impropriamente: todas as suas produções carregam a marca de um modelo. Mesmo os monstro, que uma imaginação desregrada desenha em seus delírios, não podem ser compostos senão de partes tomadas na natureza. Se o gênio, por capricho, faz destas partes um conjunto de contrários às leis naturais, degradando a natureza, ele degrada-se a si mesmo e vira uma espécie de loucura. Os limites estão marcados e assim que os ultrapassamos, perdemo-nos. Fazemos antes, um caos e não um mundo, e causamos horror mais do que prazer.
O gênio que trabalha para agradar não deve, portanto, nem pode, sair dos limites da própria natureza. Sua função consiste não em imaginar o que não pode ser, mas em encontrar o que é. Inventar nas artes não é dar existência a um objeto, mas reconhecê-lo onde ele está e como ele é. Os homens de gênio que mais investigam descobrem apenas aquilo que já existia anteriormente. Eles só são criadores por terem observado e, reciprocamente, só são observadores por estarem em condições de criar. Os menores objetos os incitam, e eles entregam-se a eles pois lhes proporcionam sempre novos conhecimentos, ampliando o cabedal de seu espírito e preparando sua fecundidade. O gênio é como a terra que não produz nada de que não tenha recebido a semente. Essa comparação, muito longe de empobrecer os artistas, serve apenas para fazê-los conhecer a fonte e a extensão de suas verdadeiras riquezas que, por isso, são imensas. Já que todos os conhecimentos que o espírito pode adquirir na natureza tornam-se o germe de suas produções nas artes, o gênio não tem outros limites, do lado de seu objeto, senão daqueles do universo. O gênio deve, então, ter um apoio para se elevar e se sustentar, e esse apoio é a natureza. Ele não pode criá-la e não deve destruí-la, ele só pode, então, segui-la e imitá-la e, consequentemente, tudo o que ele produz só pode ser imitação.
Imitar é copiar um modelo. Esse termo contém duas idéias. 1) O protótipo que traz os traços que ser imitar. 2) A cópia que os representa. A natureza, isto é, tudo o que existe, ou o que nós concebemos facilmente como possível, eis o protótipo ou o modelo das artes. É preciso, como acabamos de dizer, que o industrioso imitador tenha sempre os olhos pregados nela, que ele a contemple incessantemente: por quê? Porque ela abrange todos os planos das obras regulares e os desígnios de todos os ornamentos que podem nos agradar. As artes não criam suas regras: elas são independentes de seu capricho e invariavelmente traçadas a exemplo da natureza.
Qual é então a função das artes? É a de transportar os traços que estão na natureza e apresentá-los em objetos que não são naturais. É assim que o cinzel do escultor mostra um herói em um bloco de mármore. O pintor, com suas cores, faz sobressair da tela todos os objetos visíveis. O músico, com sons artificiais, faz bramir a tempestade, embora tudo esteja calmo; e o poeta, enfim, com sua invenção e com a harmonia de seus versos, preenche nosso espírito de imagens fingidas e nosso coração de sentimentos artificiais frequentemente mais encantadores do que seriam se fossem verdadeiros e naturais. Donde concluo que as artes, naquilo que é propriamente arte, são apenas imitações, semelhanças que não são a natureza, mas que parecem sê-lo; e que, assim, a matéria das belas-artes não é o verdadeiro, mas somente o verossímil.
Essa consequência é bastante importante para ser desenvolvida e provada prontamente pela aplicação. O que é a pintura? Uma imitação dos objetos visíveis. Ela nada tem de real, nada tem de verdadeiro. Tudo nela é aparência, e sua perfeição só depende de sua verossimilhança com a realidade.
A música e a dança podem até regrar os tons e os gestos do orador na cátedra e do cidadão que relata em uma conversa, mas não é ainda por isso que as chamamos propriamente de artes. Elas podem perder-se também, uma em caprichos, onde os sons se entrechocam sem desígnio, a outra em tremores e saltos de fantasia; contudo, nenhuma delas se encontra ainda em seus limites legítimos. Para que sejam o que devem ser, é preciso, portanto, que elas retornem à imitação, que elas sejam o quadro artificial das paixões humanas. É somente então que as reconhecemos com prazer e que elas nos dão a espécie e o grau de sentimento que nos satisfaz. (...)
Assim, todas as artes, em tudo o que têm de verdadeiramente artificial, são apenas coisas imaginárias, seres fingidos, copiados e imitados segundo os verdadeiros. É por isso que se coloca incessantemente a arte em oposição à natureza, que se escuta em todo lugar apenas este grito, que é a natureza que é preciso imitar, que a arte é perfeita quando a representa perfeitamente, enfim, que as obras-primas da arte são aquelas que imitam tão bem a natureza que as tomamos pela natureza mesma.(...)
Essa doutrina não é nova. Encontramo-la por toda parte nos antigos. Aristóteles começa sua poética com este princípio: que a música, a dança, a poesia e a pintura são artes imitativas. É aí que todas as regras de sua poética se encontram. Segundo Platão, para ser poeta não basta relatar, é preciso fingir e criar a ação que se relata. Em sua República, ele condena a poesia porque, sendo essencialmente uma imitação, os objetos que ela imita podem comprometer os costumes. (...)
(...) Por imitação, entendeu-se, não uma cópia artificial da natureza, que consiste precisamente em representá-la, em arremedá-la [...]; mas toda espécie de imitação em geral. De modo que esses termos, não tendo mais a mesma significação que outrora, deixaram de ser apropriados para caracterizar a poesia, e tornaram a linguagem dos antigos ininteligível para a maior parte dos leitores.
De tudo o que acabamos de dizer, resulta que a poesia só subsiste por imitação. O mesmo ocorre com a pintura, a dança, a música: nada é real em suas obras, tudo é imaginado, forjado, copiado, artificial. É o que faz seu caráter essencial em contraposição à natureza.
Cap. 3 - O gênio não deve imitar a natureza tal como ela é
O gênio e o gosto têm uma ligação tão íntima nas artes que há casos em que não se pode uni-los sem que pareçam confundir-se, nem separá-los sem quase lhes subtrair suas funções. É o que se experimenta aqui, onde não é possível dizer o que deve fazer o gênio, ao imitar a natureza, sem supor o gosto que o guia. (...)
Aristóteles compara a poesia com a história: sua diferença, segundo ele, não está na forma nem no estilo, mas ao conteúdo das coisas. Mas como assim? A história pinta o fato, a poesia pinta o que poderia ter sido. Uma está ligada ao verdadeiro, ela não cria nem ações nem atores. A outra só se atém ao verossímil: ela inventa, imagina como quer, ela pinta de memória. O historiador dá os exemplos tais como são, frequentemente imperfeitos. O poeta os dá tais como deveriam ser. E é por isso que, segundo o mesmo filósofo, a poesia é uma lição muito mais instrutiva do que a história.
Sobre esse princípio, é preciso concluir que, se as artes são imitadoras da natureza, deve ser uma imitação sábia e esclarecida, que não a copia servilmente; mas que, escolhendo os objetos e os traços, apresenta-os com toda a perfeição da qual são suscetíveis. Em uma palavra, uma imitação onde se vê a natureza, não tal como ela é em si mesma, mas tal como ela pode ser, e tal como pode ser concebida pelo espírito.
O que fez Zêuxis quando quis pintar uma beleza perfeita? Fez o quando de alguma beleza particular, da qual sua pintura fosse a história? Não. Ele reuniu os traços separados de várias belezas existentes. Ele formou em seu espírito uma imagem artificial que resultou de todos esses traços reunidos, e essa imagem foi o protótipo ou o modelo de seu quadro, que foi verossímil e poético em sua totalidade, e só foi verdadeiro e histórico em suas partes tomadas separadamente.
Eis o exemplo dado a todos os artistas: eis o caminho que eles devem seguir, e essa é a prática de todos os grandes mestres sem exceção. Quando Molière quis pintar a misantropia, não buscou em Paris um original do qual sua peça fosse uma cópia exata. Ele fez apenas uma história, um retrato; ele apenas em parte a tomou como lição. Mas ele recolheu todos os traços de humor negro que pôde notar nos homens: acrescentou a isso tudo o que o esforço de seu gênio pôde lhe fornecer no mesmo gênero; e de todos esses traços aproximados e irmanados ele figurou um caráter único, que não foi a representação do verdadeiro, mas do verossímil. Sua comédia não foi a história de Alceste, a mas a pintura de Alceste foi a história da misantropia tomada em geral. E desse modo ele fez algo muito melhor do que teria feito um historiador escrupuloso que tivesse contado alguns traços verdadeiros de um misantropo geral.
Esses dois exemplos bastam, por enquanto, para dar uma idéia clara e distinta do que se chama bela natureza. Não se trata do verdadeiro que é, mas do verdadeiro que pode ser, o belo verdadeiro, que é representado como se existisse realmente e com todas as perfeições que ele pode receber. Isso não impede que o verdadeiro e o real possam ser a matéria das artes. É assim que as musas se explicam em Hesíodo.
(...) A arte constrói então sobre o fundo da verdade, e deve misturá-la tão habilmente com a ilusão que ambas formam um todo da mesma natureza: atque ita mentitur, sic veris falsa remiscet, primo ne medium, medio ne discrepet imum [e deste modo mente, assim mescla falsas com verdadeiras, para que o meio não difira do começo, nem o meio do fim]. É o que se pratica ordinariamente nas epopéias, nas tragédias, nos quadros históricos. Como o fato não está mais nas mãos da história, mas esta se encontra livre no poder do artista – a quem é permitido tudo ousar para chegar à sua meta -, o artista molda o fato novamente, se ouso dizer, para lhe atribuir uma nova forma: ele acrescenta algo, subtrai, inverte.
Se é um poema (dramático), encerra-se a intriga e prepara-se o desenlace etc., pois é suposto que o germe de tudo isso está na história, e que se trata apenas de o fazer eclodir. Se nela não está, a arte então goza de todos os seus direitos, em toda a sua extensão, ela cria tudo de que tem necessidade. Trata-se de um privilégio que lhe é conferido, pois ela é obrigada a agradar.
Cap. 5 - Da maneira como as artes fazem sua imitação
(...) Em relação às belas-artes, podemos dividir a bela natureza em duas partes: uma que aprendemos pelos olhos e outra pelo emprego dos ouvidos, pois os outros sentidos são estéreis para as belas-artes. A primeira parte é objeto da pintura que representa sobre um plano tudo o que é visível. É também o da escultura que o representa em relevo e, enfim, o da arte do gesto, que uma ramificação das duas outras artes que acabo de nomear, delas só diferindo quanto àquilo que abarcam, porque o tem ao qual os gestos na dança se vinculam é natural e vivo, ao passo que a tela do pintor e o mármore do escultor não o são.
A segunda parte é o objeto da música considerada sozinha e como um canto e, em segundo lugar, o da poesia, que emprega a palavra, mas a palavra medida e calculada em todos os seus tons.
Assim, a pintura imita a bela natureza pelas cores, a escultura pelos relevos, a dança pelos movimentos e pelas atitudes do corpo. A música imita pelos sons inarticulados e a poesia, enfim, pela palavra medida. Eis os caracteres distintivos das artes principais. Se ocorre às vezes que essas artes se misturem e se confundam, como por exemplo na poesia, se a dança fornece gestos aos atores no teatro, se a música da o tom da voz na declamação, se o pincel decora o local da cena, são serviços que eles se prestam mutuamente em virtude de sua finalidade comum e de sua aliança recíproca, mas sem prejuízo aos seus direitos particulares e naturais. Uma tragédia sem gestos, sem música, sem cenário, é sempre um poema. Trata-se de uma imitação expressa pelo discurso medido. Uma música sem palavras é sempre música. Ela exprime a queixa e o gozo independentemente das palavras, que a auxiliam em verdade, mas que não lhe trazem nem lhe subtraem nada que altere sua natureza e sua essência. Sua expressão essencial é o som, como a da pintura é a cor, e a da dança, o movimento do corpo. Isso não pode ser contestado. Mas há aí uma coisa a considerar: é que, assim como devem escolher os desígnios da natureza e aperfeiçoar as expressões que elas emprestam da natureza. Elas não devem empregar todos os tipos de cor, nem todos os tipos de som: precisam fazer destes uma escolha justa e uma mescla requintada. É preciso aliá-los, proporcioná-los, nuançá-los, colocá-los em harmonia. As cores e os sons possuem entre si simpatias e repugnâncias. A natureza tem o direito de uni-los segundo suas vontades, mas a arte deve fazê-lo segundo as regras. Não somente é preciso que ela não fira o gosto, mas que o deleita, e o deleito tanto quanto possa deleitado.(...)
Definiremos a pintura, a escultura e a dança como uma imitação da bela natureza expressa pelas cores, pelo relevo, pelas atitudes; a música e a poesia, a imitação da bela natureza expressa com sons ou pelo discurso medido.
Seção III – Sobre a música e a dança
Cap. 1 – Deve-se conhecer a natureza da música e da dança pela dos tons e dos gestos
Os homens têm três meios para exprimir suas idéias e seus sentimentos: a palavra, o tom da voz e o gesto. Entendemos por gesto os movimentos exteriores e as atitudes do corpo: gestus, diz Cícero, est conformario quaedam et figura totius oris et corporis[1]. Designei a palavra como a primeira porque ela está de posse da primeira posição, e porque os homens ordinariamente lhe dão mais atenção. Entretanto, os tons da voz e os gestos têm sobre ela muitas vantagens: seu uso é mais natural. Recorremos a eles quando nos faltam as palavras. De modo mais amplo, trata-se de um intérprete universal que nos segue até as extremidades do mundo, que nos torna inteligíveis às nações mais bárbaras, e mesmo aos animais. Enfim, eles são consagrados de uma maneira especial ao sentimento. A palavra nos instrui e nos convence, ela é o órgão da razão; mas o tom e o gesto são órgãos do coração: eles nos comovem, nos envolvem, nos persuadem. A palavra só exprime a paixão por meio das idéias às quais os sentimentos estão ligados e isso pela reflexão. O tom e o gesto chegam ao coração diretamente, e sem nenhum rodeio. Em resumo, a palavra é uma linguagem de instituição, que os homens fizeram para comunicarem mais distintamente suas idéias. Os gestos e os tons são como o dicionário da simples natureza. Eles contêm uma língua que conhecemos desde o nascimento e da qual nos servimos para anunciar tudo o que tem relação com as necessidades e com a conservação do nosso ser. Além disso, ela é viva, breve, enérgica. Que terreno para as artes cujo objeto é comover a alma! Que linguagem da qual todas as expressões são antes da própria humanidade do que dos homens!
A palavra, o gesto e o tom da voz têm graus, pelos quais respondem às três espécies de arte que indicamos. No primeiro grau, eles exprimem a natureza simples, somente para a necessidade. Trata-se do retrato ingênuo de nossos pensamentos e de nossos sentimentos: tal é, ou deve ser, a conversação. No segundo grau, trata-se da natureza polida graças à arte para acrescentar o divertimento à utilidade. Escolhe-se com algum cuidado, porém, com discrição e modéstia, as palavras, os tons e os gestos mais próprios e mais agradáveis: trata-se do discurso e da narrativa segundo o estilo elevado. No terceiro, só se tem em vista o prazer. Essas três expressões têm aqui, não apenas todas as graças e toda a força natural, mas ainda toda a perfeição que a arte pode acrescentar-lhes, quero dizer, a medida, o movimento, a modulação e a harmonia, e é a versificação, a música e a dança que constituem a maior perfeição possível das palavras, dos tons da voz e dos gestos.
Donde concluo: 1) que o objeto principal da música e da dança deve ser a imitação dos sentimentos ou das paixões, ao passo que o da poesia é principalmente a imitação das ações. Entretanto, como as paixões e os atos são quase sempre unidas na natureza, e devem também encontrar-se juntas nas artes, haverá essa diferença para a poesia, e para a música e a dança: na primeira, as paixões serão empregadas como meios ou motivos que preparam a ação e a produzem; na música e na dança, a ação será somente uma espécie de tela destinada a carregar, sustentar, conduzir e ligar as diferentes paixões que o artista quer exprimir.
Concluo: 2) que, se o tom da voz e os gestos tinham uma significação antes de se fazer algo, eles devem conservá-la, eles devem conservá-la na música e na dança, assim como as palavras conservam a sua na versificação; por consequência, toda música e toda dança devem ter um sentido;
3) que tudo o que a arte acrescenta aos tons da voz e aos gestos deve contribuir para aumentar esse sentido e para tornar sua expressão mais enérgica. Parece que a primeira conseqüência não tem necessidade de ser provada. Iremos desenvolver as duas últimas nos capítulos que se seguem.
[1] Gesto é um tipo de conformação voluntária de todo o rosto e corpo.
Charles Batteux (1713-1780)






