
In: TOMÁS, L. À procura da música sem sombra: Chabanon e a autonomia da música no século XVIII. Trad. e notas L. Tomás. São Paulo: Ed. UNESP/Cultura Acadêmica, 2011
Link: http://www.culturaacademica.com.br/_img/arquivos/A_procura_da_musica_sem_sombra.pdf
Da Música em si e em suas relações com a palavra, as línguas, a poesia e o teatro, 1785 (primeira parte)
Reflexões preliminares
A obra que hoje publicamos é a mesma que foi publicada há alguns anos, mas com um título menos extenso do que o da obra, naquela ocasião, ainda incompleta. Nela, tratávamos da música em si, sem estudar as relações com as artes as quais ela se associa. Hoje, nosso plano mais vasto compreende todas as relações e traçaremos, inicialmente, a seqüência e a progressão de nossas idéias.
O que é a música? A arte dos sons. Aqui examinamos as propriedades individuais dos sons, elementos primeiros da arte musical, material frio e sem vida que esta arte anima e vivifica. Por quais procedimentos ela lhes confere essa existência que proporciona um prazer tão vivo e tão comovente aos nossos sentidos?
Uma vez esclarecido esse ponto, a natureza da arte torna-se mais evidente: primeiramente, nós a reduziremos à idéia mais simples que possamos conceber. Separaremos a arte de tudo o que seja apenas acessório; nós a despojaremos de todo ornamento, a consideraremos em toda a sua nudez, ou melhor, em seu esqueleto anatomizado, e procuraremos identificar se os efeitos que ela produz se dirigem diretamente ao espírito ou aos sentidos, ou ainda, a ambos simultaneamente.
A música, por sua instituição natural, é obrigada a imitar? O que ela imita, de preferência? Como e até que ponto ela imita?
O exame dessas questões nos conduz a olhar a música como uma linguagem natural ao homem e, considerando-se tal relação, poderíamos nem mesmo chamá-la de Arte. Com que intenção a natureza teria concedido essa linguagem natural ao homem e aos animais? Podemos atribuir a ela o mérito da universalidade? Seria verdade que o canto tenha sido único em todo o mundo; que, como resultado das proporções harmônicas que são uma lei invariável da natureza, sua principal constituição também tenha sido invariável? Achamos que sim; e se tal fato pode ser reconhecido como verdadeiro, existe, para os homens de todos os tempos e de todos os climas, uma língua comum cujas diferenças mais marcantes de um país ao outro, não impedem que ela seja perfeitamente inteligível.
Após a severa análise da música em sua natureza primitiva, é chegado o momento de elevá-la à nobre condição das artes, de classificá-la entre elas, designando seus pontos de semelhança e de diferença.
O momento no qual a música torna-se arte é aquele em que, elevando-se acima do instinto bruto que a produziu, ela se torna uma propriedade do espírito, que o adorna e o enriquece com os mais brilhantes acessórios.
Anteriormente, o ouvido já lhe havia emprestado o acessório da harmonia propriamente dita, ou seja, sons simultâneos que, sendo escutados ao mesmo tempo, se deixam distinguir uns dos outros, produzindo apenas a impressão de um som principal.
Este mistério da harmonia foi ignorado durante milhares de anos; não se suspeitava sequer sua existência: o canto subsistia sozinho; ele encantava os homens e efeitos quase sobrenaturais lhe eram atribuídos. A harmonia é descoberta e, sem desnaturar a melodia, lhe proporciona um novo atrativo; ela fornece, de certo modo, sua razão geométrica, pois a simpatia dos sons que faz com que elas co-existam (simpatia submetida às leis do cálculo) também constitui a relação melódica dos sons que torna sua sucessão agradável: o resultado disso é que não há canto que não traga consigo o baixo e as parte do acompanhamento.
A música, alinhada sob o domínio do espírito, se associa prontamente à palavra; podemos até mesmo considerar essa associação como uma emanação do instinto, anterior às combinações do espírito.
O que ganhamos em falar cantando, o que perdemos? O exame das línguas e de suas propriedades musicais é resultado dessa questão. O que se segue, de imediato, é o exame das diversas formas de discurso, verso ou prosa; verso elaborado com essa ou aquela medida, poesia com esse ou aquele caráter.
Após ter refletido sobre a união do canto com a palavra, passaremos a uma operação mais complexa: estudaremos as relações do canto com a ação. Esse é o maior passo que a música pode fazer; ele a transporta ao teatro: a música posta em cena se impõe a lei de ser, onde quer que seja, imitativa; vemos como o estudo preliminar de suas propriedades essenciais pode servir à direção do uso imitativo que ela deve fazer.
Entretanto, o teatro também possui suas leis, seus estatutos e convenções que, em mais de um ponto, contrariam os procedimentos da música. É nesta luta (quase inimiga) de duas artes associadas para produzir um único e mesmo efeito, balancear suas prerrogativas, regular os sacrifícios que ambas devem fazer reciprocamente e estabelecer um pacto de união, cujo resultado é a perfeição do espetáculo, que se encontra a tarefa mais difícil de ser cumprida.
A tragédia tem seu caráter próprio, a comédia o seu; a ópera cômica difere, em algumas nuanças, de ambas; procuramos tornar próprio a cada um destes gêneros o que melhor lhes convêm.
Tal é o plano de nossa obra; ela engloba, se não estiver enganado, tudo o que se refere à música. Em um simples olhar, vemos que esta não é uma obra técnica, nem um tratado elementar. Nosso livro não deve ensinar música àqueles que não a conhecem, nem aperfeiçoar os talentos musicais daqueles que já os possuem: ele se dirige ao pensamento e à reflexão dos que conhecem a arte e dos que a ignoram, daqueles que a amam e daqueles que por ela têm apenas aversão: para ser mais exato, trata-se de uma obra de filosofia feita à ocasião da música. (...)
Esta exposição dos meus trabalhos em música não é uma afetação de saber, plana e ridícula. Antes de tratar de uma arte, julguei não ser inútil expor os cuidados que tive para me instruir: o que significa justificar a formação que tenho para falar desse assunto; e mesmo isento do desejo de fazer profecias, é bom não pregar completamente sem missão. Aqueles, dentre os leitores que rejeitarão nossas opiniões, dirão, com toda justiça: “Ele refletiu durante mais de trinta anos sobre aquilo que ele expõe em princípio: com uma apreensão momentânea, terei o direito de abalar e demolir sua doutrina?”
Neste século fecundo em opiniões extraordinárias, poderíamos nos reprovar o gosto do paradoxo de algumas das nossas. A defesa que temos contra tal imputação é o protesto baseado em uma boa fé plena e íntegra. Nós não temos a consciência de nossos erros, de nossos enganos; consciência que, de uma asserção ocasional, constrói uma mentira ambiciosa, uma decisão fraudulenta.
Algumas das idéias consignadas neste escrito, outros escritores já as publicaram antes de nós. A propriedade de tais idéias nos é comum e se tivermos que pedir absolvição do plágio, chamaremos como testemunhas as pessoas que viram nascer e começar esta obra. Uma brochura do abade Morellet[ publicada há oito ou dez anos, e uma outra do senhor Boyé, mais recente, são os escritos nos quais se encontram opiniões conformes às nossas e poderíamos nos reprovar por tê-las emprestado ao invés de tê-las concebido.
Eu me congratulo por publicar este livro em um tempo no qual as querelas sobre a música parecem apaziguadas. Tenho ainda o direito de esperar ser lido com a mesma imparcialidade que me impus ao escrever. Quando a primeira parte desta obra foi publicada, os espíritos estavam repletos do fogo da disputa; entretanto, pareceu-me que eu não me havia indisposto com aqueles cuja opinião (pelo exagero que eles colocaram) me era estranha. Na parte desta obra que publicamos pela primeira vez, seremos considerados ainda mais moderados do que na primeira, embora ela tenha sido mais suscetível a julgamentos e asserções sobre as diferentes obras modernas. No entanto, tais decisões podem sugerir um excesso de pretensão por parte daquele que as pronuncia e apagar o brilho daqueles aos quais elas se referem. É apenas sobre os mortos que temos o direito de nos explicar livremente; queiram os Céus que essa moda permaneça e que uma justiça perfeita coloque enfim em seu lugar os talentos daqueles que não produzem mais! Mas vejo que, em última instância, as reputações se fixam, algumas vezes, por um tipo de fantasia inexplicável, e outras, por um ódio póstumo que se agrega ao nome depois de ter dilacerado a pessoa; de tempos em tempos, pelo respeito de uma pessoa viva, em favor de quem sacrificamos aqueles que nunca foram por ela amados; quase sempre, enfim, por uma cega prevenção, que não permite mais que vejamos os defeitos daqueles que queremos admirar com abundância e sem restrição.(...)
A partir do momento em que nos pusemos a refletir sobre a música e a ela dedicamos uma parte de nossas leituras, nos vimos obrigados a extrair uma extensa lista de passagens relativas à nossas opiniões. Teríamos tido, portanto, material suficiente para abarrotar este volume de inúmeras citações: entre este abuso e aquele de não citar jamais, encontramos um meio termo conveniente à nossa situação. Este escrito, destinado a ser publicado com o apoio e aprovação de uma companhia científica, não teve que se distanciar inteiramente do gênero de seus trabalhos. Tivemos a intenção de mostrá-lo ao público como o testemunho de nosso zelo respeitoso por esta ilustre companhia e por suas doutas ocupações. Decerto devemos nos ater mais às verdades intrínsecas de uma opinião do que às citações que a tornam recomendável. Mas como se privar de uma disposição favorável com relação ao que nos chega dos melhores espíritos dos séculos passados? O quanto a opinião proveniente desses espíritos não extrai dessa antiga e nobre origem um caráter augusto que lhe confere o respeito e a confiança? Se preferimos crer mais nos velhos do que nos jovens porque eles possuem mais experiência e menos temeridade, uma proposição provada e amadurecida pelos séculos não deve então participar deste privilégio da velhice?
Eu terminarei estas reflexões com um conselho endereçado aos músicos. É desejável que acrescentem outros conhecimentos e um espírito de observação à prática de sua arte, de modo que possam se libertar da rotina dos prejulgamentos. Eu sei, e direi isso no decorrer dessa obra, que todo homem que possui um talento tem também o sentimento interior dessa aptidão que o guia, quase sempre, de modo inequívoco. Porém, este instinto é iluminado por meio da reflexão. Aliás, atualmente, todas as artes ressaltam o tribunal do espírito. É como se ele tivesse outorgado a si a supremacia e este império não é uma usurpação. O espírito, inábil para julgar, de modo profícuo, os procedimentos de cada arte em particular, é um juiz competente de suas mútuas alianças. Ele tem o papel de mediador e de negociador entre essas potências.
Os músicos, tendo o cuidado de adquirir os conhecimentos acessórios e mesmo estranhos a seus talentos principais, atrairão para si e para sua profissão uma consideração maior; recolherão assim os frutos em meio à sociedade na qual sua aptidão os faz serem comumente desejados. Nesse sentido, os pintores me parecem gozar de uma grande vantagem. Entre eles, encontramos, com freqüência, homens instruídos com relação à história, ao teatro e à poesia. Além disso, embora o talento do pincel seja um talento solitário, um talento de gabinete e de atelier, não é incomum que aqueles que o exercem com sucesso sejam aceitos e procurados pela sociedade. Esperemos que os músicos ambicionem essa honra, feita para inspirá-los a buscar a decência dos costumes e a dignidade da alma, a única que merece ser buscada. Talvez fosse uma boa contribuição para a prática das abordagens que proponho acrescentar algo mais ao sábio manifesto que acabamos de fazer em favor da música. Porque não elevá-la completamente ao nível de Academia, dedicando-lhe dias de assembléia nos quais serão lidos os trabalhos e as obras relativas às artes? Através dessas sessões, os músicos se encontrariam naturalmente mais próximos dos Homens de Letras, nos quais devem procurar a iluminação que se reverterá sobre eles, todas as vezes que se tratar dos mistérios próprios da música. Que tal associação possa ser efetuada e produzir os felizes efeitos que prevejo! Que a obra que publico possa ser agradável (não ouso dizer útil) aos músicos de profissão, classe de homens em direção à qual meu gosto me conduziu desde tenra idade e junto à qual minha estima e minha afeição quase nunca encontrou ingratos; elogio provavelmente raro e que, por sua própria raridade, eu me considero autorizado a torná-lo público.
Capítulo III
Continuação do mesmo exame
Atribuamos ao princípio que acabo de estabelecer toda a extensão que lhe cabe: levemo-lo até o exagero. Nenhum passo que dermos além da verdade será perdido para nossas pesquisas: ultrapassar desse modo os nossos limites é reconhecer o exterior do lugar onde procuramos nos tornar inacessíveis.
Ao tomar as palavras em sua significação rigorosa, o canto só pode imitar aquilo que canta. Mas o que estou dizendo? Seu poder nem sempre se estende até esse ponto. O canto dos pássaros jamais poderia ser bem reproduzido por nossa música porque ela se submete às leis e às relações da harmonia e os pássaros, melodistas incorretos, encadeiam seus sons de acordo com uma ordem que a harmonia não reconhece. Além disso, desde que os poetas líricos começaram a evocar os pássaros na execução de sua arte, essa arte, impotente em seus meios de imitação, não se aproximou um passo do objeto que, com tanta freqüência, lhe impingiram imitar. Agradável arte da imitação: toma as coisas que lhe são mais análogas, de modo que a cópia nunca se parece com o modelo!
Não posso deixar de mencionar a resposta que o abade Morellet forneceu para esta dificuldade que ele mesmo se propôs; quanto mais engenhosa, maior o nosso dever de citá-la[1].
“Todas as artes fazem uma espécie de pacto com a alma e com os sentidos que elas envolvem: este pacto consiste em solicitar licenças e prometer prazeres que não seriam dados sem essas felizes autorizações.... A música possui licenças semelhantes: ela exige que sua marcha seja cadenciada e seus períodos arredondados, que se sustente e fortifique a voz pelo acompanhamento, o que certamente não se encontra na natureza. Isso talvez altere a verdade da imitação, mas, ao mesmo tempo, aumenta sua beleza e doa à cópia um charme que a natureza recusou ao original. Nada se parece tanto ao canto do rouxinol como o canto deste pequeno apito que as crianças enchem de água e que gorjeia quando elas sopram. Qual prazer obtemos dessa imitação? Nenhum. Mas se escutamos uma voz ligeira e uma sinfonia agradável que exprimem (menos sensivelmente, sem dúvida) o canto do mesmo rouxinol, o ouvido e a alma tornam-se radiantes. É que as Artes possuem algo além da imitação exata da natureza”.
Eu percebo tudo o que há de engenhoso e de verdadeiro nessa resposta; mas que me seja permitido perguntar ao abade Morellet por que a poesia, a pintura e a escultura têm o compromisso de nos oferecer imagens fiéis, exatas ou semelhantes aos objetos que elas imitam, e por que a música é dispensada desse dever. Não seria porque esta arte é menos que as outras uma arte da imitação? O apito das crianças que tomamos pelo próprio rouxinol não nos oferece nenhum prazer e a sinfonia ligeira, que em nada se parece com o canto do pássaro, nos seduz e nos alegra: não podemos deduzir desses dois fatos que a imitação tem uma participação bem reduzida no prazer que a música proporciona e que este depende, quase inteiramente, do charme da melodia?
O instinto do homem é prodigiosamente imitador: ele se mostra como tal desde a infância: porém, salvo engano de minha parte, a imitação não o diverte muito, ao menos não tanto quanto a produção que envolve alguma dificuldade e cujo sucesso o surpreende: uma criança que apenas com sua boca imita o rouxinol tão perfeitamente quanto com o apito, proporcionaria mais prazer e despertaria maior interesse do que o próprio apito. É portanto um equívoco não considerar, na teoria das artes, a dificuldade vencida; ela deve ser levada em grande conta no que concerne o prazer que as artes proporcionam. A grande impressão do sublime nasce, em parte, da surpresa que nos causa uma concepção bem distante de nós. Aquilo que consideramos de fácil execução, apreciamos muito pouco.
Mas, poderíamos nos perguntar: se a música não é a imitação da natureza, o que é então? Estranha necessidade do espírito humano de se atormentar com dificuldades que cria para si mesmo e que ele não pode resolver porque são desprovidas de sentido! A música representa para os nossos ouvidos o que representam para cada um de nossos sentidos os objetos que os afetam agradavelmente. Portanto, por que não desejais que, assim como a visão e o olfato, o ouvido tenha seus gozos imediatos, suas sensações voluptuosas? Existiriam outras sensações para ela além daquelas que resultam dos sons harmoniosamente combinados? Pelo fato de ter vos parecido conveniente nomear a música uma arte, pretendeis subjugá-la a todas as propriedades das artes? Sabeis até que ponto essa denominação de arte convêm à música? Examinaremos este ponto na seqüência, mas, por hora, concluamos nossa tentativa de provar que ela agrada independentemente de toda imitação.
Capítulo IV
A música agrada independentemente de toda imitação
Os animais são sensíveis à música; portanto, ela não tem necessidade de imitar para agradar, pois a imitação mais perfeita nada significa para o animal. Apresentai a ele sua imagem sobre uma tela: não ficará nem tocado e nem surpreso. Só se pode apreciar a imitação na medida em que é possível conceber a dificuldade; ora, tal concepção ultrapassa a inteligência dos animais.
As crianças que se regozijam com os cantos de suas amas-secas não estão buscando nada de imitativo: eles os apreciam do mesmo modo que o leite do qual se nutrem.
O selvagem, o negro, o marinheiro e o homem do povo repetem as canções que lhes agradam sem mesmo conciliar o caráter da canção com a disposição real de sua alma.
Uma mão hábil que preludia a harpa ou o cravo, conquista os ouvidos mais eruditos. A imitação não tem nenhuma função na formação de um prelúdio.
A música acalmou e até mesmo curou pessoas enfermas: tal fato foi atestado pela Academia de Ciências e eu mesmo pude comprová-lo. Uma jovem, sangrada seis vezes por causa de uma dor aguda nos olhos, esqueceu seus sofrimentos durante duas horas enquanto ouvia tocar um cravo. Será em virtude da imitação que este encanto se opera? Um espírito abatido pelo sofrimento encontra-se em condições de usufruir um prazer que exige reflexão?
A música age, portanto, imediatamente sobre nossos sentidos; mas o espírito humano, inteligência atenta, ativa, curiosa e reflexiva, se mistura ao prazer dos sentidos: ele não pode ser o espectador ocioso e indiferente. Que participação ele pode ter na execução de sons que, não tendo por si mesmos nenhuma significação determinada, jamais oferecem idéias claras e precisas? Neles procura relações, analogias com diversos objetos, com diferentes efeitos da natureza. O que ocorre então? Nas nações cuja inteligência foi aperfeiçoada, a música, ávida, de certo modo, pela aprovação do espírito, esforça-se para lhe apresentar essas relações, essas analogias que o aprazem; ela imita na medida do possível e pelo expresso comando do espírito que, levando-a ainda mais longe do que sua finalidade primeira, lhe propõe a imitação como finalidade secundária. Mas o espírito que, por sua vez, julga a precariedade dos meios que a música emprega para alcançar a imitação, se torna pouco exigente neste ponto. As mínimas analogias, as mais ligeiras relações satisfazem-no. Ele considera essa arte imitativa enquanto, de fato, ela imita muito pouco. Ele leva em conta os esforços que ela faz para agradá-lo e se contenta com a parte que lhe é destinada, com prazeres que parecem feitos unicamente para os ouvidos.
Quando não somos cegados pelo espírito de sistema, quando não queremos impor nem a nós, nem aos outros, não devemos silenciar as objeções contrárias ao sentimento que professamos. Apresento-vos uma que, no início, intimidou minha opinião.
“Se o prazer da música é para o ouvido a mesma coisa que um belo rosto para os nossos olhos, por que temos necessidade de tornar uma dessas sensações mais imitativas que a outra?” Aristóteles, em seus Problemas, levantou, em outros termos, praticamente a mesma questão: eis como ele responde.
“Nenhuma sensação produzida por um objeto sem movimento pode ser imitativa, ela não pode ter nenhuma conformidade com as nossas ações, os nossos hábitos, os nossos caracteres. Tentai emitir apenas um som aos ouvidos e manter sua duração, vereis então que essa sensação morta e inativa nada descreve ao espírito. Ao contrário, promovei a sucessão de vários sons, assim como o faz a música e vereis que sua progressão, lenta ou rápida, uniforme ou variada, lhes atribuirá um caráter e os tornará suscetíveis de serem assimilados a outros objetos”.
Assim, um belo rosto, apresentando apenas um único espetáculo e um único objeto é, no máximo, suscetível de ser comparado a um outro objeto dotado de beleza. Porém, na ausência de alteração e de disparidade, não induz ao espírito a dele fazer o emblema de ações e de efeitos variados.
Gostaria de assinalar que apenas a música possui a capacidade de encadear as sucessivas sensações que ela nos causa, de modo que influenciam e modificam umas às outras; tratemos de tornar mais evidente tal concepção. Experimentai sensibilizar a visão, o olfato e o tato com a presença de diversos objetos que se substituem uns aos outros; essas sensações não se ligarão umas às outras e aquela que cessar não influenciará a subseqüente. Mas na música, o som que não mais ouvimos se liga, pela lembrança, àqueles que o sucedem; eles formam um único corpo; são as partes de um todo; e para alterar a frase que ouvimos, bastaria, em certos casos, separá-la daquela que a precede.
Capítulo V
De que modo a música produz suas imitações[2]
Aqui, já nos encontramos bem distantes do paradoxo que, inicialmente, parecíamos querer sustentar, ou seja, o de que a música carece de meios próprios para a imitação; retirando dessa asserção o que havia de exagero, somos levados ao exame dos meios pelos quais a música imita. Ela assimila (na medida do possível) seus ruídos a outros ruídos, seus movimentos a outros movimentos e as sensações que ela proporciona a sentimentos que lhe sejam análogos. Este último modo de imitar será o tema de um outro capítulo.
A imitação musical só é sensivelmente verdadeira quando seu objeto é o canto. Na música imitam-se verdadeiramente as fanfarras guerreiras, as árias de caça, os cantos rústicos, etc. Trata-se apenas de atribuir a uma melodia o caráter de outra melodia. Nisso a arte não sofre nenhuma violência. Distanciando-se desses casos, a imitação se enfraquece em razão da insuficiência dos meios que a música emprega.
Trata-se de descrever um riacho? O ondular moderado e contínuo de duas notas vizinhas faz ondular o canto quase como a água que se escoa. Essa relação, que se apresenta primeiramente ao espírito, é a única que a arte apreendeu até o momento, e duvido que alguém descubra algo mais vívido. Portanto, a intenção de descrever um riacho aproxima, necessariamente, todos os músicos – que têm ou que terão a intenção de fazê-lo – de uma forma melódica conhecida e quase trivial. A disposição das notas está, de certo modo, prevista e dada de antemão. A melodia, escrava dessa exigência, terá menos graça e novidade. De acordo com esse cálculo, o ouvido perde nessa pintura, quase tudo o que ganha o espírito.
Se acrescentarmos à pintura dos riachos o trinado dos pássaros, o músico imitador fará com que a voz e os instrumentos sustentem longas cadências; misturará ainda a essas cadências algumas roulades, mesmo que não exista nenhum pássaro que possa fazer isso com seu canto. Essa imitação possui o duplo inconveniente de ser, de uma parte, muito imperfeita e, de outra, de sujeitar o músico a formas freqüentemente empregadas. O abade Morellet elogia muito a ária italiana cujas palavras são se perde l’ussignuolo. Mesmo sem me lembrar claramente dessa ária, eu poderia garantir que a parte mais agradável não é aquela que tenta imitar o canto do rouxinol.
Se nos depararmos com um hábil compositor que necessite das palavras para descrever a onda que murmura e o pássaro que trina, ousaríamos reprová-lo se raciocinasse do seguinte modo? “Minha arte não pode transpor verdadeiramente os efeitos esperados por meu poeta: esforçando-me para consegui-lo, corro o risco de parecer com todos aqueles que executaram o mesmo quadro. A pintura das águas, das flores, dos zéfiros, dos campos, só é julgada tão lírica porque a vista de uma paisagem risonha e campestre produz sobre os nossos sentidos uma impressão doce e dispõe nossa alma a uma calma feliz. Se, portanto, abstendo-me de imitar o que eu não posso reproduzir, eu apenas imaginasse uma melodia suave e tranqüila, tal qual desejaríamos ouvir quando repousamos em uma sombra fresca, olhando as mais belas paisagens campestres, eu me esquivaria assim de meu poeta e de minha arte?”. Por menos que este artista racional fosse um homem de gênio, eu não sei em quê os partidários da imitação poderiam reprová-lo na execução de tal plano.
O céu se cobre de nuvens, os ventos assobiam, os trovões prolongam suas longas ressonâncias de um ao lado a outro do horizonte.... como a música é precária para descrever tais efeitos, sobretudo se o músico se atém aos detalhes e pretende fazer uma pintura análoga ao modelo! Aqui uma fusée de notas ascendentes ou descendentes, representará os raios, o esforço do vento ou o estrondo do trovão, pois ele pode escolher entre todos esses efeitos; todos possuem o mesmo traço pitoresco e lhe convêm igualmente. Suprimam todo esse quadro de detalhes que não descreve nada; descreveis grosseiramente. Que o estampido, o tumulto e a desordem da sinfonia descrevam a desordem e o ruído da tempestade e, sobretudo, que a melodia seja tal que não se possa dizer: tudo isso nada mais é do que ruído sem expressão e sem caráter.
Um dia, assisti um concerto noturno no boulevard; a orquestra era grande e muito ruidosa. Executavam a abertura de Pigmalion. O clima tendia ao temporal. Nos fortissimi da reprise, ouvimos um trovão. Todos sentiram, assim como eu, uma maravilhosa relação entre a sinfonia e a intempérie que crescia nos céus. Naquele momento, Rameau tinha acabado de elaborar um quadro do qual nem ele, nem ninguém podia prever a intenção ou a semelhança. Artistas músicos que refletis sobre vossa arte, este exemplo não vos ensina nada?
Há um efeito da natureza que a música reproduz com certa veracidade, é a agitação das ondas violentas. Muitos baixos tocando em uníssono e desenvolvendo a melodia como ondas que sobem e descem formam um ruído semelhante ao de um mar agitado. Nós escutamos outrora uma sinfonia na qual o autor, sem intenção pitoresca, havia colocado este uníssono. O efeito imitativo foi sentido unanimemente, a ponto de fazer com que esta sinfonia fosse chamada a tempestade, mesmo que não houvesse nada que pudesse justificar essa denominação. De acordo com tais fatos, não teríamos o direito de definir a música como a arte de pintar sem que dela se possa duvidar?
Falemos de uma outra imitação, daquela que pinta para um de nossos sentidos aquilo que é submetido a outro sentido, como ocorre com o som quando imita a luz.
Todos conhecem a história do cego de nascença, a quem foi apresentado um quadro no qual se viam homens, árvores e rebanhos. O cego, incrédulo, deslizava cuidadosamente sua mão sobre todas as partes da tela e, encontrando apenas uma superfície plana, não podia supor a representação de tantos objetos distintos. Este exemplo demonstra que um sentido não é capaz de julgar o que outro sentido experimenta. Do mesmo modo, não é propriamente aos ouvidos que, na música, pintamos aquilo que impressiona o olhar: é ao espírito que, colocado entre esses dois sentidos, combina e compara suas sensações.
Peçam ao músico para pintar a luz de modo abstrato e ele confessará a impotência de sua arte. Peçam-lhe para pintar o nascer do dia; ele perceberá então que os contrastes de sons claros e penetrantes, colocados em oposição aos sons surdos e dissimulados, podem assemelhar-se ao contraste da luz e das trevas. Desse ponto de comparação, ele constrói seu meio de imitação: mas o que ele pinta de fato? Não o dia e a noite, mas apenas um contraste qualquer: o primeiro que vier à nossa imaginação será tão bem expresso pela música quanto o da luz e das sombras.
Não tenhamos receio de repetir para a instrução dos artistas: o músico que produz tais quadros nada faz se não produzi-los com belos cantos. Pintar é apenas um dever secundário; cantar é o primeiro: se ele não satisfizer essa exigência, qual será o seu mérito? Pela precariedade de sua arte, ele pinta de modo imperfeito; pela precariedade de seu talento, ele fracassa nas principais funções de sua arte.
Como a música pinta o que impressiona o olhar, enquanto a pintura não tenta sequer reproduzir o que pertence ao domínio dos ouvidos? A pintura ocupa-se, por essência, da fiel imitação; se ela não imita, ela não é nada. Dirigindo-se apenas aos olhos, ela só pode imitar aquilo que impressiona a visão. A música, ao contrário, agrada sem imitar por meio das sensações que proporciona: uma vez que os quadros são sempre imperfeitos e consistem, algumas vezes, em uma simples e débil analogia com o objeto que pretendem descrever, tais relações se multiplicam facilmente. Em uma palavra, a pintura imita apenas aquilo que lhe é próprio porque ela deve imitar com rigor: a música pode pintar tudo porque aquilo que ela descreve é sempre exposto de modo imperfeito.
Capítulo X
Das sensações musicais aplicadas aos nossos diversos sentimentos e dos meios naturais de expressão próprios à música
Se tal canto vos agrada e vós gostais de ouvi-lo, isso só acontece porque ele produz sobre vós uma impressão qualquer. Estudais essa impressão, procure sua natureza e seu caráter; é impossível que vós não reconheceis se ela é áspera ou doce, viva ou tranqüila; o movimento por si só seria capaz de indicá-lo. Ela é doce e terna? Atribuí a essa expressão palavras do mesmo gênero e vós tornareis a música expressiva, de modo nunca dantes imaginado; de uma sensação quase vaga e indeterminada, vós criais um sentimento palpável.
Eu peço ao leitor que controle sua imaginação e não a deixe andar mais rápido do que o ritmo que esta discussão comporta: ele encontrará, um pouco mais adiante, os desenvolvimentos e esclarecimentos que tem o direito de esperar de nós.
A ária que chamamos de suave talvez não nos represente positivamente na mesma situação de corpo e espírito, na qual nos encontraríamos ao nos comover com uma mulher, um pai, um amigo. Porém, entre essas duas situações, uma afetiva, outra musical (que nos perdoem esse modo de falar) a analogia é tal que o espírito consente em tomar uma pela outra.
Porque quereis, dir-se-á, que o efeito de tal música seja apenas uma sensação e não um sentimento distinto? – Leitor, eu pretendo que seja assim porque, se eu vos perguntasse, ao final de uma ária sem palavras que teria sido de vosso agradado, que sentimento distinto se manifestou em vós, não saberíeis me dizer. Eu proponho uma ária suave e vos pergunto se é a ternura de um amante feliz ou infeliz que a ária vos inspira; se é a de um amante por sua amada, ou a de um filho por seu pai, etc., etc. Se todos esses diversos sentimentos convêm igualmente à ária em questão, estaria eu equivocado em nomear seu efeito mais como uma sensação um pouco vaga do que um sentimento determinado? Aliás, repito mais uma vez, não andemos mais rápido do que o necessário: o que aqui expomos de um modo geral e superficial, será calculado com maior exatidão mais adiante.
Quais são os meios naturais que dão à melodia um caráter de tristeza ou de felicidade, de indolência ou de determinação? Comprometendo-me a resolver tais questões, estou, por assim dizer, penetrando nas trevas cuja natureza cobre e rodeia todas as causas primeiras. Irei até os limites em que a experiência me conduzir e quanto mais obscura for a matéria, mais eu terei o dever de só estabelecer as asserções incontestáveis.
É da natureza dos sons trêmulos exibir um caráter de tristeza. Não pensai que isso seja um fato de convenção: não, os homens não fizeram um pacto entre si para considerar queixoso o grito da pomba e alegre canto do melro. Se o rouxinol entremear vários sons uns com os outros e executá-los em conjunto, vós atribuiríeis a essa linguagem musical uma idéia menos triste do que se o pássaro solitário produzir, durante a noite, um som que se arraste algum tempo. Não é fato comprovado que um ruído uniforme, tal qual o de uma voz que lê em um mesmo tom, nos provoca sono? Se o som opera sobre nós esse efeito imediato, porque negaríamos outros efeitos que não possuem nada de excepcional?
O modo menor produz geralmente uma impressão mais doce, mais lenta, mais sensível do que o modo maior. Não perguntem a razão disso; ninguém poderá vos responder; mas a passagem de um desses modos ao outro, torna sensível a todos os ouvidos musicais essa impressão diferente. No modo menor, a sexta nota da tonalidade é mais doce que todas as outras: todas as vezes que é representada, mesmo no allegro mais feliz, ela exige do executante uma inflexão mais relaxada e mais afetuosa: no modo maior, é a quarta nota da tonalidade que possui essa propriedade; é ela que, por sua virtude intrínseca, convida o executante a uma expressão patética, mesmo quando o resto da melodia o conduz a uma sensação diferente. Os sons agudos têm qualquer coisa de claro e de brilhante que parece convidar a alma à felicidade. Comparai as cordas agudas da harpa às cordas graves do mesmo instrumento, vós sentireis como elas dispõem mais facilmente a alma à delicadeza; quem sabe se as largas ondulações das cordas longas e pouco tensas não comunicam aos nossos nervos vibrações semelhantes e se esse hábito de nosso corpo não é aquele que nos doa sensações afetuosas? Acreditai, o homem é apenas um instrumento; suas fibras respondem aos fios dos instrumentos líricos que os atacam e os interrogam: todo som tem suas propriedades; todo instrumento também tem as suas, das quais a melodia se aproveita habilmente, além de controlá-las a seu bel prazer, pois o instrumento mais sensível pode articular com sucesso cantos felizes.
A música suave emprega movimentos sem rapidez: ela liga os sons, ela não utiliza contrastes, não os faz colidir uns com os outros. Nesse caráter de música a [nota] breve em staccato não controla imperiosamente a [nota] longa pontuada que está junto a ela; e o executante modifica esses sons por vibrações longas. Aqueles cujo gosto se inclina à tristeza, tremulam os sons (segundo a observação que fizemos anteriormente) e seu arco receia sair da corda; sua voz dá ao canto algo de indolente e preguiçoso. A música alegre pontilha as notas, faz os sons saltarem: o arco está sempre no ar e sua voz o imita.
Tais são mais ou menos os meios naturais que a música emprega e com a ajuda dos quais ele produz sensações em nós. O compositor, homem de gênio, que sentiu todos esses efeitos e que os aplica convenientemente às palavras e às situações, é um músico expressivo. O leitor vê com evidência que todos os meios de expressão são do domínio da melodia, não da harmonia.
Uma observação essencial, e que se encontra na própria base de nossa doutrina, é que a ária mais expressiva possui, quase sempre, eu diria mesmo necessariamente, traços e passagens contraditórias com o caráter de expressão que nela deve prevalecer. Citemos um exemplo. No primeiro verso do Stabat, eu não vejo um só verso, uma só palavra, que não exija a mesma nuança de tristeza.
Stabat Mater dolorosa
Juxta crucem lacrimosa
Dum pendebat Filius
A música apresenta, inicialmente, todos seus meios de expressão. O movimento é lento, os sons fracos e velados; eles se arrastam lentamente e se unem: eis a expressão bem estabelecida. No décimo compasso, tudo muda: um fortissimo sucede ao piano: os sons que se encontravam obscurecidos no baixo do diapasão, se elevam de um só golpe, se reforçam excessivamente e, por uma articulação firme e destacada, chocam e contradizem aqueles que os precederam. De onde veio esse contrate? Do fato de que a música, em sua essência, não é uma arte de imitação: ela se presta a imitar na medida do possível; mas esse ofício de complacência não pode distraí-la das funções que sua própria natureza lhe impõe. Uma dessas funções necessárias é variar a cada instante suas modificações, é aliar na mesma peça o delicado e o forte, o longo e o breve, a articulação frenética e a afetuosa. Esta arte, assim considerada, é de uma inconstância indisciplinável: todo seu charme depende de suas transformações rápidas; eu sei que cada trecho é retomado com freqüência, mas sem nunca parar. Ora, através de todas essas formas passageiras e fugidias, como quereis que a imitação seja única e marche a passos iguais? Ela segue de modo claudicante a música ligeira e mutante, alcançando-a algumas vezes e outras, deixando-a seguir sozinha. Se a prova do que exponho se encontra na primeira parte do Stabat, tão belo, tão expressivo, tão breve e composto com apenas duas idéias, em qual ária italiana essa prova não se mostrará com mais evidência ainda?
Neste momento, leitor, por menos músico que vós sejais, vós estais em condições de julgar o sistema dramático de Gluck; vós entendereis por que, tendo se dedicado à expressão, que considera, com razão, como o fundamento de toda ilusão teatral, ele só permite uma ária inteira quando a própria situação permite que a música faça seus desvios ou cometa seus ligeiros erros com os quais se compraz a melodia. Todas as vezes que um canto periódico e constante conduz à languidez da ação, transformando o ator em um cantor de púlpito, Gluck corta de imediato esta melodia iniciada e por outro movimento, ou por um simples recitativo, remete o canto à seqüência da ação e o faz correr, acompanhando seu ritmo. É inconcebível que um sistema tão verdadeiro, possa ter sido censurado em um país cuja arte do teatro é bem conhecida; é ainda mais inconcebível que entre esses detratores tenha havido homens que, por sua condição e suas luzes, tinham a obrigação de defender os direitos da cena sobre os da música. Na Itália, os Homens de Letras disseram que a música de teatro estava praticamente em desuso para as pessoas de espírito. Aqui, as pessoas de espírito, pouco músicos, sustentaram que as óperas de Gluck eram mais adequadas ao espírito do que aos ouvidos; e enquanto eles emitiam esse julgamento, os ouvidos mais delicados e os mais treinados se nutriram com as delícias da música de Gluck: eu não acredito que possa ter existido julgamentos que tenham causado maior espanto.
[1] O pequeno escrito no qual o abade Morellet trata da expressão musical está repleto de observações finas e precisas: não sei se alguém escreveu algo melhor sobre a música.
[2] Este capítulo é um daqueles nos quais nossas idéias estão de acordo com as do abade Morellet.
Michel-Paul Guy de Chabanon (1730-1792)






