
Ensaio sobre a maneira correta de tocar teclado. Trad. F. Cazarini. Campinas, Editora da Unicamp, 2009.
(Excertos)
Parte I -Prefácio
"Não se espera de um tecladista apenas o que se exige de todo instrumentista, isto é, a capacidade de executar uma peça composta para seu instrumento, de acordo com as regras da boa execução. Além disso, exige-se do tecladista que ele faça fantasias de todo tipo; que desenvolva de improviso um tema dado, seguindo as rígidas regras da harmonia e da melodia; que toque em todas as tonalidades com a mesma facilidade; que transponha instantaneamente e sem erros de uma tonalidade para outra; que toque tudo, indistintamente, à primeira vista, sejam ou não peças escritas para seu instrumento; que ele tenha completo domínio da ciência do baixo-contínuo, realizando-o de maneira variada, ora de acordo com a severa harmonia, ora no estilo galante*, ora com poucas vozes, ora com muitas, ora com baixos muito cifrados, ora com baixos pouco cifrados, ou cifrados incorretamente ou mesmo sem nenhuma cifra;"
*Estilo galante (nota do tradutor): Durante o século XVIII o estilo galante se fez representar como atributo estilístico que correspondia a um gosto artístico que, na música, significava predomínio de linhas melódicas simplificadas exuberantemente ornamentadas e menos privilegiadas em termos de construção harmônica. Em geral, tal estilo era acusado de superficial e redundante.
Capítulo 3 - Execução
§. 1. (...) A experiência nos mostra frequentemente que os tocadores e os executantes rápidos de profissão não possuem nada menos que essas qualidades, sabem como nos impressionar por meio de seus dedos, mas não oferecem nada à alma sensível do ouvinte. Eles surpreendem o ouvido, sem agradá-lo, e confundem a razão, sem satisfazê-la. Ao dizer isso, não estou desfazendo da habilidade de tocar à primeira vista. É uma habilidade muito recomendável para todos. Mas um simples tocador não pode de maneira alguma reivindicar as verdadeiras qualidades daqueles que sabem preencher com os sentimentos mais doces o ouvido, e não o olho, e, mais que o ouvido, o coração; aqueles que sabem levar o ouvinte aonde quiserem. Pois raramente é possível tocar uma peça à primeira vista, de acordo com o caráter e o afeto que lhe são próprios.
(...) Mas não pensem que com isso quero justificar aqueles que com mãos rígidas e inertes só nos adormecem; aqueles que pretendem fazer o instrumento cantar, mas nem sabem dar-lhe vida; aqueles cujo espírito adormecido se traduz por uma execução monótona merecem mais críticas que aqueles que tocam com velocidade excessiva. Ao menos estes últimos são suscetíveis de progresso; seu fogo pode ser abafado pedindo-se-lhes expressamente que toquem lentamente, enquanto o caráter dos hipocondríacos, que acabam por nos incomodar com seus dedos muito moles, só pode, ou nem isso, ser melhorado pela medida contrária. Aliás, ambos praticam seu instrumento mecanicamente. Tocar com emoção requer boas cabeças que se submetam a certas regras racionais para poder executar uma peça.
§. 2. Mas em que consiste a boa execução? Em nada mais que a faculdade de, ao cantar ou tocar um instrumento, tornar o ouvido sensível a ideias musicais, de acordo com seu caráter e afeto próprios. Pois sua diversidade pode transformar uma ideia a ponto de que o ouvido não possa mais reconhecê-la.
§.4. A boa execução, portanto, reconhece-se imediatamente, ao fazer ouvir com facilidade todas as notas e seus ornamentos na hora certa, com a força convincente e um toque que corresponde ao verdadeiro caráter da peça. É aí que nascem o redondo, o puro e o contínuo no toque, que se torna claro e expressivo.
§. 8. Para adquirir um bom conhecimento do verdadeiro caráter e do afeto de uma peça, na falta dos sinais necessários para decidir se as notas que aí ocorrem devem ser em staccato ou ligadas etc., e para definir a que se deve atentar na execução dos ornamentos, é bom que se procure ouvir músicos solistas, bem como conjuntos completos de musicistas. Isso é tanto mais necessário quanto mais as circunstâncias casuais a que essas belezas estiverem submissas. Devem-se executar os ornamentos com uma força de acordo com o afeto.
§. 10. Pode-se deduzir o andamento de um movimento principalmente a partir do caráter da peça. Pode-se indica-lo por certos termos italianos conhecidos. Também as notas e os trechos rápidos determinam isso. Tal observação fará com que não se apresse no Allegro e não se adormeça no Adagio.
§. 12. (...) não se deve perder a oportunidade de ouvir bons cantores; é assim que se aprende a pensar cantando, e sempre é bom começar cantando para si uma frase, para encontrar a boa execução. Isso sempre será muito útil que procurar em livros e tratados volumosos, algo que é questão de natureza, gosto, canto, melodia, sem que seus autores consigam compor duas notas que sejam precisamente naturais, de bom gosto, cantantes e melódicas. Eles atribuíram esses dons e qualidades arbitrariamente, geralmente com uma péssima escolha.
§. 13. Uma música não provoca emoções se não estiver emocionado: é indispensável que ele se coloque em todos os afetos que quer evocar nos seus ouvintes e dê a entender seus sentimentos, para poder compartilhá-las melhor. Em trechos doces e tristes, ele deve ficar doce e triste. Deve-se ver e ouvir isso. Deve-se tomar cuidado aqui para não retardar e arrastar demais. Facilmente se incorre nesse erro, através de muito afeto e melancolia. O mesmo ocorre com trechos animados, alegres, ou de outros tipos, em que o músico deve se colocar nesses afetos. Logo que ele exprimiu uma ideia, surge outra, sem cessar, ele deve transformar suas paixões. Tal tarefa ele deve desempenhar sobretudo nas peças expressivas, compostas por ele ou por outros. Neste último caso ele terá que experimentar as mesmas paixões que o compositor da peça teve ao compô-la. É com as fantasias de composição própria e de improviso que o tecladista melhor domina as emoções de seus ouvintes. Que tudo isso ocorra sem o mínimo gesto só pode ser exigido por aqueles que, pela insensibilidade, são obrigados a ficar sentados diante de um instrumento como estátuas. Por mais inconvenientes e prejudiciais que sejam as horríveis expressões faciais, as boas expressões são úteis, pois ajudam os ouvintes a perceber nossas intenções. Aqueles, apesar da sua destreza, não honrem nem suas próprias composições, que de resto não seriam ruins. Nem sabem de que elas consistem, pois são incapazes de executá-las. Basta que um outro, que tenha uma sensibilidade mais refinada e que domine bem a execução, toque essas mesmas peças, para que eles percebam, estupefatos, que suas obras continham bem mais do que eles achavam. Uma boa execução pode contribuir para realçar uma composição medíocre, valendo-lhe mesmo certa aprovação.
§. 14. Da quantidade de afetos que a música pode evocar, percebem-se os dons especiais que um músico perfeito deve possuir e a grande sensibilidade com que ele os deve empregar se quiser levar em conta os ouvintes, a percepção que eles terão do verdadeiro caráter de sua execução, o lugar e outros fatores. A natureza deu tal diversidade à música, que todos podem participar dela; portanto, todo músico deve, tanto quanto possível, satisfazer todo tipo de ouvinte.
§. 31. (...) Constantemente se devem observar as passagens precedentes e seguintes e ter uma ideia da peça como um todo, para não alterar nada no equilíbrio entre o brilhante o simples, entre o fogo e a doçura, entre o triste e o alegre, entre o vocal e o instrumental. Nas peças para teclado, o baixo também pode ser modificado nas variações, desde que a harmonia continue a mesma. Deve-se, sobretudo, apesar da moda que consiste em se fazerem muitas variações, ter cuidado para que o desenho fundamental da peça, no qual se reconhece o afeto, não seja obscurecido.
Parte II – Introdução
§. 18. O gosto atual introduziu um uso totalmente novo da harmonia. Nossas melodias, ornamentos e a maneira de execução requerem, frequentemente, uma outra harmonia, diferente da habitual. Essa harmonia às vezes é forte. Consequentemente, hoje em dia os deveres de um acompanhador são bem mais abrangentes do que antigamente, as regras conhecidas do baixo-contínuo não são suficientes e, frequentemente, também sofrem modificações.
Capítulo 32 – Certos requintes do acompanhamento
§. 3. A expressão mais comum usada para descrever um bom acompanhador costuma ser: ele acompanha com discrição. Esse elogio tem um significado amplo e com isso se quer dizer muita coisa: o acompanhador sabe distinguir bem e assim realiza o acompanhamento de acordo com o caráter da peça, o número de vozes, os outros executantes, principalmente o executante da voz principal, os instrumentos ou as vozes, o lugar, os ouvintes etc. Com estrema modéstia, ele procura ajudar àqueles que acompanha a receber o aplauso desejado, ainda que às vezes o acompanhador seja melhor que os outros instrumentistas. Ele mostra-se modesto principalmente em relação a executantes que são amadores. Deixa que estes se destaquem em vez de querer encobri-los. Além disso, ele sempre procura estar de acordo com as intenções do compositor e dos executantes de uma peça, procurando melhorar e colaborar com essas intenções; emprega todas as belezas possíveis da execução e do acompanhamento, desde que o caráter de uma peça exija, mas, ao fazê-lo, toma cuidado para não causar restrições a ninguém. (...).
§. 5. Acompanhar com discrição também quer dizer adaptar-se a certas liberdades exercidas às vezes pelos executantes da voz principal. Estes costumam introduzir na melodia ornamentos ou variações que divergem do que está indicado. O competente executante da voz principal pode fazer isso quando sabe que seu acompanhador é capaz, e assim aquele se pode dedicar com toda liberdade à expressão do afeto da peça. Essas liberdades não devem, portanto, originar-se de incerteza, mas do domínio racional e referem-se apenas a certos detalhes, que não custam a um acompanhador experiente mais do que um pouco de atenção.
Capítulo 35 – A necessidade da cifragem
§. 2. Tentou-se com muito esforço sistematizar a realização de baixos não cifrados, e não posso negar que eu mesmo, às vezes, também tentei isso. Mas quanto mais, reflito sobre isso, tanto mais rica em usos se mostra a harmonia, usos esses que a cada dia podem ser ampliados de tal forma, através dos requintes do gosto, que se torna impossível a formulação de regras fixas que abranjam a criação livre de um compositor que, graças à natureza, é inesgotável.
Capítulo 40 – O tema no baixo
§. 4. O acompanhamento de um tema no baixo pode ser de dois tipos, e sempre dá a um acompanhador habilidoso uma boa oportunidade de mostrar sua ciência. Quem tem conhecimento adequado de composição, um espírito inventivo e bom discernimento pode, nas pausas da voz principal, e em certas notas simples ou na sustentação dessas notas, inventar uma melodia e executá-la com a mão direita, em vez da melodia usual. Essa melodia deve ser adequada ao conteúdo e ao afeto da peça e não deve, jamais, restringir a voz principal.
Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788)






