
CASTANHEIRA, Carolina Parizzi. De Institutione Musica, de Boécio, Livro 1. Tradução e Comentários. Mestrado em Letras: Estudos Clássicos. Universidade Federal de MInas Gerais. Belo Horizonte, 2009.
Link: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/ECAP-7QRGC9
DE INSTITUTIONE MUSICA, LIBER PRIMUS FUNDAMENTOS DA MÚSICA, LIVRO 1
1. Proêmio: a música está naturalmente a nós associada, e pode enobrecer ou corromper o caráter
A percepção através de todos os sentidos está presente em certos seres vivos de forma tão espontânea e natural, que o animal não pode ser concebido sem eles. Mas um conhecimento e uma sólida percepção dos próprios sentidos não são adquiridos imediatamente com uma investigação feita pelo intelecto. É indiscutível que aplicamos os sentidos para perceber a realidade sensível, mas qual seria a natureza desses mesmos sentidos segundo os quais agimos e qual seria a essência da realidade sensível, isso não é facilmente explicável ou óbvio para nenhuma pessoa, a não ser que uma adequada investigação dirija alguém na contemplação da verdade.
A visão, por exemplo, está presente em todos os homens: de fato, discute-se entre os sábios se esta se forma por figuras que chegam até os olhos ou por raios emitidos sobre objetos sensíveis; mas essa mesma discussão escapa ao leigo. E mais, quando alguém vê um triângulo ou um quadrado, reconhece facilmente o que vê através dos olhos; mas deve-se perguntar ao matemático qual é a natureza do quadrado ou do triângulo.
O mesmo se pode dizer do resto das coisas sensíveis e, acima de tudo, do arbítrio dos ouvidos, cuja força capta de tal modo os sons, que não só forma um juízo a partir deles e reconhece suas diferenças, mas também, com bastante frequência, encontra prazer se os modos são doces e coerentes, e se angustia se, dispersos e incoerentes, ferem os sentidos.
Disso resulta que, sendo quatro as disciplinas matemáticas, as outras se dedicam precisamente à busca da verdade, enquanto a música não só está associada à especulação, mas também à moral. Nada é tão típico da humanidade como relaxar-se com modos doces ou tornar-se tenso com os contrários. E esse fato não se restringe a uma ocupação ou a uma idade específica, mas se difunde por todas as ocupações; além disso, as crianças, os jovens e até mesmo os velhos são ligados aos modos musicais com espontânea disposição, de forma tão natural que, sem exceção, não há idade que seja contrária ao encanto de uma doce canção.
Daí, então, pode-se perceber que não é desarrazoado o dizer de Platão: a alma do mundo foi unida de acordo com uma harmonia musical. Consequentemente, quando nosso interior está coeso e convenientemente ajustado, percebemos o que nos sons está ajustado de forma exata e conveniente e nos deleitamos com isso; também comprovamos que nós mesmos somos regidos pela mesma semelhança. Essa semelhança é, sem dúvida, agradável, e a dessemelhança é odiosa e repulsiva.
Assim, do mesmo modo, surgem as maiores transformações, inclusive nos comportamentos: um ânimo lascivo ou se compraz com modos mais lascivos ou, ao ouvi-los frequentemente, torna-se mole e corrompido; pelo contrário, uma mente mais rude ou tem prazer com modos mais incitados, ou se endurece com eles. É por isso que os modos musicais são designados também com nomes de povos, como o modo lídio, modo frígio... Efetivamente, da mesma forma, a maneira com a qual se compraz cada povo é designada com o mesmo termo: um povo se compraz com os modos apropriados aos seus costumes. Não pode acontecer que o suave se encaixe e simpatize com o austero e o austero com o suave, mas, como foi dito, a semelhança produz o amor e o deleite. Assim, Platão considera também que é preciso evitar ao máximo que se altere algo em torno da música de bom caráter. Ele nega haver, em uma sociedade, maior subversão de costumes do que perverter progressivamente uma música moral e mensurada. Se, através de modos mais lascivos, infiltra-se nas mentes algo desavergonhado ou através dos mais rudes, algo feroz e brutal -, imediatamente os ânimos dos ouvintes sentem também o mesmo e, paulatinamente, se desviam e não conservam nenhum vestígio de honestidade ou retidão.
De fato, nenhuma via ao entendimento acolhe mais princípios do que a dos ouvidos. Portanto, quando os ritmos e os modos penetram no ânimo através dos ouvidos, não se pode duvidar que afetam e modelam as mentes da mesma maneira. Isso pode ser observado também nos povos: os mais selvagens se comprazem com os modos mais rudes dos Getas, enquanto os pacíficos, com modos mais moderados, ainda que, nesses tempos, isso quase não exista. Assim, porque a raça humana é lasciva e mole, acaba cativada, sem exceção, com os modos cênicos e teatrais.
Existiu, em contrário, uma música poderosa e modesta, quando elaborada com instrumentos mais simples; no entanto, quando executada de forma promíscua e variada, perdeu o modo da serenidade e da virtude e, quase caindo na indignidade, conservou muito pouco as suas antigas formas. Por esse motivo, assinalou Platão que de nenhuma forma convinha que as crianças fossem instruídas em todos os modos, senão preferencialmente nos viris e simples. E se deve ter em conta encarecidamente que, se de alguma forma se altera algo nos modos por meio de mínimas variações, no momento pouco será notado; depois, no entanto, surgirá uma grande mudança, que se infiltrará na alma através dos ouvidos. Por essa razão, Platão defende que constitui grande defesa de uma sociedade uma música prudentemente ajustada e de mais alta moral, de forma que seja modesta, simples e viril, e não efeminada, rude ou variada. (...)
2. Existem três músicas; a influência da música
Portanto, parece que, por agora, deve-se dizer isto àquele que examina a música: quantos tipos de música descritos pelos estudiosos podemos descobrir. São três: a primeira, a cósmica; a segunda, a humana; a terceira, a produzida por certos instrumentos, como a cítara, o aulos e outros que acompanham as canções.
Em primeiro lugar, a cósmica é perceptível sobretudo pelo que é visto no próprio céu, ou na combinação dos elementos, ou na sucessão de estações, pois como é possível que uma máquina tão veloz como a do céu se mova em uma trajetória muda e silenciosa? Ainda que seu som não chegue aos nossos ouvidos, porque por muitas causas é necessário que assim seja, não é possível, contudo, que um movimento tão veloz de corpos assim volumosos não produza absolutamente nenhum som, principalmente porque os cursos das estrelas estão ajustados em uma harmonia tão grande, que nada tão perfeitamente unido, nada tão perfeitamente ajustado pode ser concebido. De fato, umas órbitas se deslizam mais acima, outras mais abaixo, e de tal forma giram todas com o mesmo impulso que, por meio de distintas desigualdades, a ordem desses cursos se conduz invariável. Assim, não pode faltar a essa revolução celeste a ordem invariável de uma fixa sequência de sons.
Além do mais, se uma determinada harmonia não unisse as forças diversas e contrárias dos quatro elementos, como poderiam viver em um só corpo e máquina? Toda essa diversidade produz tanto a sucessão de estações quanto de frutos, de modo a perfazer a estrutura do ano. Por isso, se for arrancado do ânimo e do pensamento algum desses elementos que determinam tão grande variedade da realidade, todas as coisas se dispersariam e, por assim dizer, não permaneceriam consoantes.
Nas cordas graves, a afinação do som é tal que a gravidade não baixa até o silêncio; nas agudas, mantém-se cuidadosamente a afinação da altura, de forma que as cordas, demasiado esticadas, não se rompam com a fragilidade da nota; e tudo é congruente e harmonioso consigo mesmo. Igualmente, observamos que na música cósmica nada pode ser tão excessivo que destrua outra coisa com seu próprio excesso. Em verdade, qualquer coisa é assim: ou produz os seus frutos ou ajuda as outras para que os produzam. O que o inverno confina, a primavera liberta, o verão aquece e o outono amadurece. As estações, uma atrás da outra, ou produzem frutos por si mesmas ou alimentam outras para que os produzam. Esses temas devem ser discutidos adiante, com maior profundidade.
Qualquer um que entre dentro de si mesmo percebe a música humana. De fato, o que é que mistura ao corpo essa incorpórea vivacidade da razão, senão uma certa coerência e uma espécie de equilíbrio de sons graves e agudos que produzem como que uma única consonância? Que outra coisa poderá ser o que une entre si as partes da própria alma que, de acordo com Aristóteles, é constituída pelo racional e pelo irracional? Que outra coisa poderá ser o que combina os elementos do corpo ou mantém unidas suas partes com uma ligação firme? Mas sobre esta também falarei depois.
A terceira é a música que, segundo se diz, apóia-se em certos instrumentos. Esta é produzida por tensão, como nas cordas, ou pelo sopro, como no aulos ou nos instrumentos que se ativam hidraulicamente, ou pela percussão, como os instrumentos que recebem os golpes nas câmaras de ar, e dessa forma se produzem sons diversos46. Sobre a música instrumental, creio que devemos discutir na primeira parte desta obra. Mas isso já é suficiente para um preâmbulo. Agora é preciso dissertar sobre os próprios princípios musicais.
34. O que é um músico
Agora se deve considerar que toda arte e toda disciplina têm a razão como naturalmente mais honrável do que a habilidade, porque esta última é praticada pela mão e pela obra dos artífices. É muito melhor e mais nobre saber o que faz cada um do que executar com as próprias mãos o que alguém sabe. Assim, as habilidades corporais servem como um escravo, enquanto a razão domina como senhor. A não ser que a mão opere de acordo com o que a razão determina, agirá em vão.
Quão mais grandiosa é a ciência musical, o conhecimento da razão, do que a composição e a performance! Evidentemente, tanto quanto o corpo é superado pela mente. Alguém privado da razão permanece na servidão. A razão impera e conduz ao caminho reto. A não ser que o corpo obedeça à autoridade, a obra privada de razão vacilará.
Daí decorre que a especulação racional não depende do ato de fazer. De fato, nenhuma obra das mãos existiria se não fosse guiada pela razão. É possível entender quão grandes são o mérito e a glória da razão a partir do fato de que os outros artífices, por assim dizer, de habilidades físicas, tomam seus nomes não da disciplina, mas dos seus próprios instrumentos. Então o citarista toma seu nome da cítara, o auletés do aulos, e os outros são chamados com os nomes dos seus instrumentos. Pelo contrário, é músico aquele que recebe para si a ciência do canto, ponderando com a razão, não através da servidão do trabalho, mas através da autoridade da especulação. Sem dúvida, nós vemos isso na construção dos monumentos e na recompensa das guerras, na contrária atribuição do vocábulo. Os monumentos são gravados ou os triunfos são celebrados com os nomes daqueles sob cuja autoridade e razão são obtidos, não com os nomes daqueles por cujo trabalho e servidão foram executados.
Assim, há três tipos de pessoas que estão envolvidas com a arte musical. Um tipo é o dos que se apresentam em instrumento, outro compõe as canções e o terceiro avalia a performance dos instrumentos e as canções. Mas aqueles que se ocupam de instrumentos e aí consomem todo o seu esforço como os citaristas ou aqueles que provam suas habilidades no órgão ou outro instrumento musical -, estão afastados do entendimento da ciência musical, porque agem como escravos, como foi dito: nenhum deles chega à razão, mas estão totalmente afastados da especulação.
O segundo gênero dos que praticam música é o dos poetas, que não tanto pela especulação e razão, mas por um certo instinto natural, são levados para a canção. Por esse motivo, esse gênero é separado da música.
O terceiro é aquele que adquiriu a habilidade de julgar, de forma que possa examinar os ritmos, as melodias e as canções como um todo. Essa classe, porque está evidentemente baseada por completo na especulação e na razão, reputar-se-á estritamente musical.
Uma pessoa dessa classe é um músico que apresenta a faculdade de emitir um julgamento determinado e apropriado à música, de acordo com a especulação e a razão, sobre os modos e os ritmos, sobre os tipos de canções, sobre as consonâncias e todas as coisas que serão explicadas posteriormente e sobre as canções dos poetas.
Boécio (481-524)






