
Estética: a lógica da arte e do poema.Trad. Miriam Sutter Medeiros. Petrópolis: Vozes, 1993.
PARTE I
Meditações filosóficas sobre alguns tópicos referentes à essência do poema
Desde o início da adolescência, o gênero da literatura não só nos agradou, a ambos', de modo extraordinário, como também nunca o desprezamos, seguindo assim o conselho de homens extremamente sábios aos quais era conveniente obedecer; já naquele tempo decidimos experimentar publicamente nossas forças, quaisquer que fossem no campo literário. Efetivamente, desde a época em que comecei a formar-me nas humanidades – incentivado por aquele que foi o guia de extrema habilidade dos meus primeiros anos de estudos, que não posso nomear sem que a minha alma se inunde da mais alta gratidão: refiro-me a Christgau, digníssimo vice-reitor do próspero liceu de Berlim - não passei um dia sequer sem me aplicar à poesia. À medida que avançava pouco a pouco em anos, embora tivesse sido forçado, desde o tempo da
escola, a voltar cada vez mais meus pensamentos para assuntos mais austeros, e a vida acadêmica no final parecesse exigir outros trabalhos e outras preocupações, dediquei-me não obstante à literatura, que me era necessária; assim, nunca pude me obrigar realmente a renunciar à poesia, que considerava inteiramente recomendável, tanto por sua pura beleza, quanto por sua evidente utilidade. Entrementes, pela vontade divina, que venero, ocorreu que me fosse conferido o encargo de ensinar a poética, juntamente com a assim chamada filosofia racional, à juventude que devia se formar para as universidades. O que haveria de mais propício neste momento, exceto pôr em prática os preceitos da filosofia, quando a primeira ocasião se oferecia? Por outro lado, o que havia de mais indigno ou de mais difícil para um filósofo, que asseverar em palavras alheias e relatar, com voz estentórica, os escritos dos mestres? Eu precisava me preparar para refletir a respeito daquilo, que conhecia apenas historicamente e por experiência, por imitação cega ou pelo menos por suspeita e pela expectativa de casos semelhantes. Enquanto me encontrava nestes embaraços, minha situação mudou novamente, e me vi, num fechar de olhos, na luz da Fridericiana.
Tenho violenta aversão por aqueles que entregam ao público pensamentos ainda imaturos e mal ponderados, e que, infelizmente, desonram mais que dignificam a primorosa atividade dos cálamos no círculo literário. Isto explica, não o nego, o fato de não ter cumprido mais cedo o dever que exigem de mim as santíssimas leis da Universidade. Porém agora, para que seja cumprido este dever, escolhi um assunto que na verdade é considerado pouco profundo e alheio ao discernimento dos filósofos, mas que me pareceu suficientemente importante, face à fraqueza das minhas
forças, e que, no que se refere à dignidade do assunto, me pareceu suficientemente adequado para exercitar os espíritos que se dedicam a procurar as razões de todas as coisas.
De fato, desejo demonstrar que é possível, a partir do conceito único de poema (que há muito me está gravado na alma), provar numerosas afirmações sustentadas cem vezes, mas que mal foram comprovadas uma só vez: desejo, pois, mostrar claramente que a filosofia e a ciência da composição do 'poema, freqüentemente consideradas muito afastadas uma da outra, constituem um casal cuja união é totalmente amigável. Desta forma, até o § 11, dedicar-me-ei a desenvolver a noção de poema e dos termos a ele associados; em seguida, do § 13 ao § 65, esforçar-me-ei por formar alguma imagem dos pensamentos poéticos. Depois disto, do § 65 ao § 76, desvendo o método lúcido do poema, à medida que o mesmo é comum a todos os poemas; por último, do § 77 ao § 107, proponho-me a considerar os termos poéticos e a avaliá-Ios com cuidado. Pareceu-me oportuno, após haver evidenciado a fecundidade da minha definição, compará-Ia com algumas outras, e, finalmente, acrescentar três palavras sobre a poética geral.
A natureza do projeto não permitiu mais, nem a limitação do pensador permitiu melhor; talvez no futuro, DEUS, o tempo, a aplicação hão de me conceder pensamentos mais importantes e mais maduros.
§1. Quando enunciamos a palavra DISCURSO (oratio), entendemos uma seqüência de palavras que designam representações associadas.
§2. A partir do discurso devem ser conhecidas as representações associadas (§ 1).
§3. As REPRESENTAÇÕES obtidas através da parte inferior da faculdade cognitiva são SENSITIVAS.
O desejo é chamado sensitivo enquanto provém de uma representação confusa do bem; mas a representação confusa, assim como a representação obscura, é obtida através da parte inferior da faculdade de conhecer; então, a denominação "sensitiva" também poderá ser aplicada às próprias representações, para, deste modo, serem distinguidas das representações intelectuais distintas, segundo todos os graus possíveis.
§ 4. Suponha-se que um DISCURSO que se compõe de representações sensíveis seja sensitivo.
Como nenhum filósofo alcança tamanha profundidade que lhe permita contemplar todas as coisas com o intelecto puro, sem se deter no nível do conhecimento confuso; do mesmo modo, quase nenhum discurso chega a ser tão científico e intelectual que não se encontre uma só idéia sensível ao longo do seu encadeamento. Por conseqüência, aquele que se dedica antes de tudo ao conhecimento distinto pode encontrar quaisquer representações distintas num discurso sensitivo; este último, no entanto, permanece sensitivo, assim como o discurso científico permanece abstrato e intelectual.
§5. As representações sensíveis associadas devem ser conhecidas a partir do discurso sensitivo (§ 2,4).
§6. Os diversos elementos do discurso sensível são: 1) as representações sensíveis; 2) a sua associação; 3) as palavras, isto é, os sons articulados, resultantes das letras, que são os signos das representações sensíveis (§ 4, 1).
§7. O DISCURSO SENSÍVEL PERFEITO é aquele cujos elementos contribuem para o conhecimento das representações sensíveis (§ V).
§8. Quanto mais um discurso sensível admitir elementos que suscitem representações sensíveis, tanto mais perfeito ele será (§ 4,7).
§9. O discurso sensível perfeito é o POEMA; o conjunto das regras às quais o poema deve se submeter é a POÉTICA; a ciência da poética é a POÉTICA FILOSÓFICA; a aptidão para elaborar um poema é a arte da POESIA; aquele que possui esta aptidão é um POETA.
§11. Diremos que é POÉTICO tudo que pode contribuir de alguma maneira à perfeição do poema.
§ 12. As representações sensíveis são elementos do poema (§, 10.); logo, são poéticas (§ 11, 7). Mas como as representações sensíveis podem ser obscuras ou claras (§ 3), as representações obscuras e as representações claras são poéticas.
Uma mesma coisa pode sem dúvida motivar representações das quais uma primeira seria obscura; uma segunda, clara; e por último, uma terceira, distinta; mas quando falamos de representações que um discurso deve expressar, referimo-nos àquelas representações que o locutor pretende comunicar. Pergunta-se, portanto, quais são as representações que o poeta pretende exprimir em seu poema.
§ 13. As representações obscuras não contêm tantas representações de marcas distintivas quantas possibilitem reconhecer o objeto representado e distingui-Io dos outros; por outro lado, as representações claras contêm-nas (por definição); logo, os elementos que permitem a comunicação das representações sensíveis são mais numerosos quando as mesmas são claras que quando são obscuras. Um poema, portanto, cujas representações são claras, é mais perfeito que aqueles cujas representações são obscuras; e as representações claras são mais poéticas (§ 11) que as obscuras. Assim refuta-se o engano daqueles que crêem falar tanto mais poeticamente quanto mais o seu palavreado se torna obscuro e complicado. Mas não concordamos de modo algum com aqueles que ousam negar os melhores poetas, pela simples razão de que os seus olhos baços só pensam distinguir trevas escuras e uma noite profunda nos poemas dos mesmos. Tomamos como exemplo os versos 45 e 46 da IV Sátira de Pérsio:
Se, cauteloso, fustigares os agiotas do Puteal,/terás emprestado em vão os ouvidos ao povo.
Estes versos serão acusados levianamente de extrema obscuridade por quem ignora a história de Nero; mas aquele que terá feito a relação, a não ser que ignore o latim, compreenderá o significado e terá a experiência de representações bastante claras.
§14. As representações distintas, completas, adequadas, e profundas, em todos os graus, não são sensíveis; logo, não são poéticas (§ 11).
A verdade desta proposição tornar-se-é evidente, se a vivenciarmos a posteriori, como por exemplo, se dermos a algum filósofo, não totalmente ignorante em poesia, os seguintes versos repletos de representações distintas:
Aqueles que demonstram que os outros estão errados os refutam./Então ninguém refutará se não demonstrar-lo erro dos outros;aquele que deve demonstrar que um erro existe/deve dominar a lógica; logo, aquele que refuta/sem ser um lógico, não refuta conforme as regras (segundo o verso 1).
O nosso filósofo maI os tolerará, embora a métrica de cada um deles seja perfeita. No entanto, talvez não saiba por que motivo estes versos, que não pecam nem pela sua forma nem pelo seu conteúdo, lhe parecem rejeitáveis. Aliás, temos aqui a principal razão pela qual se considera quase impossível a filosofia e a poesia permanecerem no mesmo nível: de fato, a primeira procura com extrema obstinação a distinção dos conceitos, enquanto a segunda não se preocupa com a mesma, que se situa além da esfera poética. Supondo porém que um indivíduo muito competente em ambas as partes da faculdade de conhecer e que saiba usar cada uma no devido tempo, de tal modo que se dedique a afinar uma sem prejudicar a outra; este indivíduo perceberá que Leibniz, Aristóteles e outros tantos, que uniram a toga dos filósofos aos louros do poeta, eram prodígios e não miragens.
§ 15. As representações claras são poéticas (§ 13); por outro lado, as representações claras podem ser distintas ou confusas; mas já sabemos que as representações distintas não são poéticas (§ 14); logo, as representações confusas são poéticas.
§ 16. Se uma representação A representar um número maior de coisas que outras representações B, C, D, etc., mas se apesar disso as representações que ela contém forem todas confusas, nesse caso A é MAIS CLARA que as outras sob o PONTO DE VISTA EXTENSIVO.
Tivemos que acrescentar esta restrição para distinguir estes graus extensivos da clareza daqueles outros graus muito conhecidos que, pela distinção das marcas da percepção, levam à profundeza do conhecimento e acarretam uma representação mais clara que a outra, sob o ponto de vista intensivo.
§17. Existem mais representações sensíveis nas representações que são muito claras sob o ponto de vista extensivo que naquelas que são menos claras (§ 16) e, portanto, nelas existem mais elementos que contribuem para a perfeição do poema (§ 7). Por conseguinte, as representações muito claras sob o ponto de vista extensivo são extremamente poéticas (§ 11).
§ 18. Quanto mais determinadas as coisas, tanto mais elementos contêm as suas representações; porém, quanto mais rica é uma representação confusa, mais clara é sob o ponto de vista extensivo (§ 16); conseqüentemente, tanto mais poética (§ 17). Logo, é poético que as coisas a serem representadas em um poema sejam determinadas o mais possível (§ 11).
§ 19. Os indivíduos são seres absolutamente determinados; logo as representações singulares são totalmente poéticas (§ 18)',
§ 23. Um conceito A, cuja representação, juntando-se àquela das marcas distintivas de um conceito B, acompanha este conceito, está associado a este conceito. Nomeia-se COMPLEXO o CONCEITO ao qual se associa um outro conceito; o oposto dele é o conceito SIMPLES, ao qual não se associa nenhum conceito. Um conceito complexo representa mais coisas que um conceito simples; logo, os conceitos complexos e confusos sãomais claros sob o ponto de vista extensivo que aqueles que são simples (§ 16) e, portanto, mais poéticos que os simples (§ 17).
§ 24. As REPRESENTAÇÕES das mudanças atuais daquele que se representa alguma coisa são as SENSAÇÕES; elas são sensíveis (§ 3), e, portanto, poéticas (§ 3).
§ 25. Uma vez que os afetos são graus particularmente relevantes do prazer e do desprazer, as suas sensações realizam-se num sujeito que se representa, de maneira confusa, alguma coisa como sendo boa ou má. Os afetos, portanto, determinam representações poéticas(§ 24); logo, é um procedimento poético provocar os afetos.
§ 26. O mesmo pode ser demonstrado da seguinte maneira: quando nós representamos uma coisa como boa ou má, nós representamos mais a respeito dela do que se não a representarmos como se afirmou; logo, as representações das coisas que, de maneira confusa: nos parecem boas ou más, têm mais clareza extensiva do que se não fossem propostas deste modo (§ 16) e, portanto, são mais poéticas (§ 17). Ora, tais representações geram afetos· logo é um procedimento poético provocar os afetos (§ 11).
§ 27. As sensações mais fortes são mais claras; portanto, mais poéticas que aquelas que são menos claras e fracas (§ 17). Ora, as sensações que acompanham um afeto mais intenso são mais fortes que aquelas que acompanham um afeto menos intenso (§ 25); logo, é um procedimento sumamente poético provocar afetos muito intensos. Esta mesma proposição pode ser demonstrada como segue: segue: as coisas que nos representamos de maneira confusa como sendo o que há de pior ou de melhor são representadas com mais clareza extensiva que se fossem representadas como menos boas ou menos más (§ 16); são, pois, representadas de modo mais poético (§ 17). Mas a representação confusa de uma coisa como sendo o que há de pior ou de melhor para nós provoca afetos muito intensos. Logo, é mais poético provocar afetos intensos que provocar afetos menos intensos.
§ 28. As imaginações (phantasmata) são representações sensíveis (§ 3); portanto, são poéticas (§ 12).
Denominamos imaginações as reproduções das representações dos sentidos; e se com isso nos afastamos, de acordo com os filósofos, do significado vago desta palavra, não nos afastamos nem do uso da língua, nem das regras da gramática: quem se atreveria, efetivamente, a negar que as imaginações são o que imaginamos? De fato, no próprio dicionário de Suda, a faculdade de imaginar é descrita como "aquela que extrai das sensações as formas dos objetos sentidos e as reproduz em si mesma” O que são então as imaginações, a não ser as repetições (as reproduções), as imagens (das representações) dos objetos dos sentidos, que foram extraídos das sensações ( como já indica o conceito “extraído das sensações”).
§ 29. As imaginações são menos claras que as idéias advindas da sensação; logo, são menos poéticas (§ 17).
Quando, porém, os afetos provocados determinam idéias advindas das sensações, o poema que gera afetos e mais perfeito que aquele que está repleto de imaginações mortas (§ 8,9); portanto, é mais poético gerar afetos do que produzir imaginações diferentes.
Não basta que os poemas sejam lindos .. ./Também devem conduzir o espírito do ouvinte aonde queiram (HOR. Ep. ad. PIS.,99-100).
§ 30. A representação da imaginação parcial de um objeto faz ressurgir a sua imaginação total, que, portanto, constitui um conceito complexo; este, se for confuso, será mais poético que se fosse simples (§ 23). Logo, é quando ocorre uma imaginação parcial, é um procedimento poético representar a imaginação total, que possui uma clareza extensiva maior (§ 17).
§ 33. A representação de uma imaginação de certa espécie ou de certo gênero provoca o ressurgimento de outras imaginações da mesma espécie ou do mesmo gênero. Se representarmos essas últimas ao mesmo tempo que o seu gênero ou a sua espécie, o conceito que surge se torna, por um lado, complexo e confuso; logo,
torna-se um conceito mais poético (§ 23); por outro lado, a espécie ou o gênero são mais determinados; portanto, a sua representação torna-se mais poética (§ 20, 19).
§ 34. Se representarmos a imaginação que pretendemos representar de modo confuso e, ao mesmo tempo, a espécie ou o gênero dos quais depende (juntamente com outras imaginações), vamos obter uma clareza extensiva maior do que se não o fizermos (§ 16); logo, é um procedimento poético representar o gênero e a espécie dos quais depende, juntamente com outras, a imaginação que tenho a intenção de representar (§ 17).
§ 35. Se representarmos simultaneamente uma determinada imaginação e aquilo que pertence ao mesmo gênero e à mesma espécie - com o fim de representar o gênero e a espécie eles próprios -, a representação torna-se mais poética que se procedermos de modo diferente (§ 33). Mas é poético representar o gênero e a espécie ao mesmo tempo que a representação que pretendemos representar (§ 34). Logo, é um procedimento extremamente poético representar simultaneamente a imaginação que queremos representar e as imaginações do mesmo gênero ou da mesma espécie.
§ 39. É próprio da pintura representar o que é composto; e este procedimento é um procedimento poético (§ 24). A representação pictórica deve ser muito semelhante a idéia sensível do objeto que queremos pintar; e esta mesma tarefa cabe a poesia (§ 38).
Logo, um poema e uma pintura são semelhantes (§ 30).
Uma poesia é como uma pintura (HOR. Ep. ad Pis., 361). Neste ponto, uma certa necessidade hermenêutica impõe àquele, que saiba aquilatar a conseqüência, entender por "poesia" "poema", e por "pintura" não a arte de pintar, mas sim o seu produto. Apesar disso, não há motivo para duvidar do conceito autêntico de poesia, que definimos e estabelecemos corretamente no § 9. Com efeito, em relação à confusão miscelânea de palavras quase sinônimas, Horácio e outros poetas.
Sempre ousaram legitimamente o que queriam (HOR. Ep. ad Pis., 10).
§ 40. A pintura representa as imaginações somente na superfície; portanto, sua tarefa não inclui representar toda a situação, nem representar o movimento; em compensação esta tarefa cabe a poesia: efetivamente, quando representamos uma situação e a sua evolução, a representação do assunto torna-se mais rica – mais clara sob o ponto de vista extensivo - que quando não representamos a situação e a evolução da mesma (§ 16). Logo, nas imagens poéticas há mais elementos contribuindo para a unidade das mesmas que nas imagens pictóricas. Conseqüentemente, um poema é mais perfeito que uma pintura.
§ 41. Embora as imaginações expressas pelas palavras e pelo discurso sejam mais claras que aquelas que se apresentam à visão, não é por isto, todavia, que afirmamos a primazia do poema sobre a pintura. De fato, a clareza intensiva, que dá ao conhecimento simbólico, efetuado pelas palavras, uma primazia sobre o conhecimento intuitivo, não contribui de modo nenhum à clareza extensiva; ora esta última é a única clareza poética (§ 17, 14).
§ 42. O reconhecimento confuso de uma representação deve-se à memória sensível; logo, enquanto sensitiva (§ 3), a memória também é poética (§ 12).
§ 43. Numa representação, a ADMIRAÇÃO (admiratio) é a intuição de um grande número de elementos, que muitas séries de nossas percepções não contêm.
Concordamos com Descartes, que define a admiração como "uma surpresa súbita da alma, que leva a mesma a considerar cuidadosamente os objetos que lhe parecem raros e extraordinários" (Tratado das paixões, art. 70); mas desejamos adaptar esta definição à nossa linha demonstrativa, suprimindo os elementos que nos pareceram supérfluos. Alguns consideram um erro, salvo em caso da ignorância, julgar que a raridade seja suficiente para tornar uma coisa admirável. Certamente não recomeçaremos a discussão que intentaram contra Descartes; mas ressaltamos que o termo "extraordinário" subentende alguma coisa relativamente inconcebível. Em todo caso, tentamos indicar com clareza a dupla origem da admiração.
§ 44. Já que o conhecimento intuitivo pode ser confuso, ele também pode estar fundamentado na admiração (§ 43); portanto, a representação das coisas admiráveis é poética (§ 13).
§ 45. Costumamos concentrar nossa atenção no que contém alguma coisa admirável. A representação confusa daquilo em que prestamos atenção tem mais clareza extensiva do que a representação daquilo em que não prestamos atenção (§ 16). Logo, as representações que contêm coisas admiráveis são mais poéticas que aquelas que não as contêm.
§ 46. Quando ocorre a admiração, há muitas coisas que não provocam um reconhecimento confuso (§ 43); estas coisas, portanto, provocam uma representação menos poética (§ 42).
§ 47. A representação das coisas admiráveis é poética em certos aspectos (§ 45), mas em outros não o é (§ 46): donde resulta o conflito entre as regras e a necessidade da exceção.
§ 48. Logo, se for preciso representar coisas admiráveis (§ 45), a representação das mesmas há de conter certos elementos que provoquem um reconhecimento confuso. Em outras palavras, é um procedimento extremamente poético mesclar habilmente o conhecido e o desconhecido, nas próprias coisas admiráveis (§ 47).
§ 50. As representações confusas que surgem das imaginações divididas e compostas são imaginações; logo, são poéticas.
§ 51. Os objetos destas representações são ou possíveis no mundo existente ou impossíveis. Podemos denominar estas últimas INVENÇÕES e as primeiras, INVENÇÕES VERDADEIRAS.
§ 52. Os objetos das invenções tanto são impossíveis no único mundo existente, quanto impossíveis em todos os mundos possíveis. Digamos que estes últimos objetos, absolutamente impossíveis, são UTÓPICOS; digamos que os primeiros são HETEROCÓSMICOS. Por conseguinte, não existe nenhuma representação, confusa ou poética, dos objetos utópicos.
Alexander Baumgarten (1714-1762)






